As dificuldades da iniciativa popular

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Foto: Pixabay.

Você saberia citar de cabeça uma lei brasileira que surgiu da vontade do povo (ou seja, da iniciativa popular)? Uma resposta comum a essa pergunta, e isso acontece inclusive no meio jurídico, é a Lei da Ficha Limpa. Mas, tecnicamente, a Lei Complementar nº 135/2010, que estabelece casos de inelegibilidade, não pode ser considerada de iniciativa popular. O Brasil, desde que instituiu a iniciativa popular em sua Constituição (e lá se vão três décadas) só tem uma lei em que o povo seja formalmente o autor. As demais, que você pode conferir neste post do Politize!, tiveram que ser “apadrinhadas” por um deputado para saírem do papel. Isso acontece porque os requisitos para se propor uma lei de iniciativa popular são rígidos demais, o que faz com que alguns juristas a apelidem de “instituto decorativo”.

O QUE É PRECISO PARA PROPOR UMA LEI DE INICIATIVA POPULAR?

Foto: Leonardo Sá/Agência Senado.

O instituto da iniciativa popular surgiu com a Constituição Federal de 1988. O artigo 61, § 2º, estabelece:

  • 1% do eleitorado nacional;
  • distribuído pelo menos por cinco Estados;
  • com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

Trocando em miúdos, hoje, no Brasil, para apresentar um projeto de lei de iniciativa popular são necessárias cerca de 1,44 milhão de assinaturas, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2016. E esse, sem dúvida, tem sido o maior empecilho para o povo fazer valer seu direito.

Para entender por que os constituintes estabeleceram um modelo tão rígido de propositura, precisamos voltar a 1987/1988, pouco antes do nascimento de nossa atual Constituição. Na época, o Instituto da Emenda Popular, previsto no Regimento Interno da Constituinte, contou com grande adesão do povo. Foram formuladas 122 propostas de iniciativa popular, das quais 83 cumpriram as disposições regimentais (mínimo de 30 mil assinaturas e três entidades responsáveis), influenciando diretamente o texto constitucional. Possivelmente preocupados que toda essa mobilização pudesse influenciar a prática constitucional, os elaboradores da Constituição Cidadã tentaram protegê-la.

Passado tanto tempo desde sua publicação e, sabendo que o povo é de longe o último a ameaçar a legalidade constitucional, não seria tempo de nossos legisladores – principalmente se compararmos com os casos de sucesso de iniciativa popular, dentre os quais se destaca nosso vizinho Uruguai – proporem uma maneira mais viável de os cidadãos participarem da elaboração das leis de seu próprio país?

Leia também: quem pode propor uma lei no Brasil?

OS MODELOS DE INICIATIVA POPULAR NO MUNDO

Foto: Wikimedia Commons.

Existem dois grandes modelos de iniciativa popular: o semivinculante, em que se o Legislativo alterar ou rejeitar o projeto popular, deve obrigatoriamente convocar um referendo; e o modelo não vinculante, em que a iniciativa popular se esgota na proposição do projeto, e o Legislativo é livre para aprovar, emendar ou rejeitar, sem dar satisfações à população. O Uruguai adota o primeiro modelo; o Brasil, o segundo. Isso talvez explique por que 81% de todos os processos de democracia direta de iniciativa popular na América Latina, nos últimos 40 anos, aconteceram no Uruguai.

Para tentar diminuir a distância entre a soberania popular e a prática legislativa, começam a surgir algumas propostas interessantes. Uma delas é do advogado Márlon Reis, um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, que idealizou um aplicativo de celular, o Mudamos, que você confere neste post, para colher assinaturas digitais de apoio a projetos de iniciativa popular. A ideia do aplicativo é resolver um dos maiores entraves aos projetos de lei do povo: a conferência de quase um milhão e meio de assinaturas. De acordo com os criadores do aplicativo, cada celular será identificado e só poderá gerar uma assinatura com nome completo, número do CPF e do título de eleitor de cada apoiador do projeto.

Já o consultor legislativo do Senado Federal e mestre em Direito, João Trindade Cavalcante Filho, propõe uma solução na própria fonte, ou seja, corrigir os problemas nos requisitos da iniciativa popular em nossa Constituição. No estudo Iniciativa Popular e Desvirtuamento do projeto pelo Legislativo: limites e perspectivas de soluções no Brasil e no Direito Comparado, depois de discutir toda a problemática que envolve a iniciativa popular no Brasil e os requisitos que tornam o instituto praticamente inviável no país, ele propõe uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Nela, estabelece o referendo obrigatório, em caso de rejeição ou alteração substancial do projeto proposto pelo povo, e uma quantidade menor (e mais razoável) de assinaturas, de forma a viabilizar a tramitação.

Veja a proposta do consultor legislativo para facilitar o exercício da iniciativa popular:

  • Apresentação, no mínimo, de 200 mil assinaturas;
  • Tramitação em regime de urgência;
  • Não poderá tratar de mais de uma matéria;
  • Se o Congresso rejeitar o projeto, ou o aprovar na forma de substitutivo, precisa convocar referendo em até 6 meses, a fim de que o povo decida a questão.

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AFINAL, QUAL É A ÚNICA LEI DE INICIATIVA POPULAR JÁ APROVADA NO BRASIL?

Enquanto nossos representantes no Legislativo não se manifestam, projetos de lei originariamente populares precisarão continuar a receber a “autoria” de um deputado para que possam tramitar como um projeto de lei comum. Isso aconteceu com a Lei nº 8.930, de 1994, que alterou a Lei de Crimes Hediondos (caso Daniella Perez; autor: Poder Executivo); com a Lei nº 9.840, de 1999, a cassação de mandato por compra de votos (autor: Albérico Cordeiro – PTB/AL) e com a já citada Lei Complementar nº 135, de 2010, a Lei da Ficha Limpa (autor: Antonio Carlos Biscaia – PT/RJ e outros 21 deputados). O caso mais recente, o PL nº 4.850, de 2016, as “dez medidas contra a corrupção” (autor: Mendes Thame – PV/SP e outros), que, depois da desfiguração do conteúdo pela Câmara dos Deputados, e da decisão monocrática do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), deverá recomeçar do zero seu processo de tramitação na Câmara.

E você sabe qual é a única lei de iniciativa popular cuja autoria é formalmente do povo? A Lei nº 11.124, de 2005 (que cria o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social). O Projeto de Lei (PL) consta no site da Câmara dos Deputados como de autoria do deputado Nilmário Miranda – PT/MG, mas com a ressalva de que foi “apresentado nos termos do § 2º do art. 61 da Constituição Federal”. E no parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, há a expressa menção de ser o projeto “de iniciativa popular”. O PL foi iniciado em 1992, ou seja, entre tramitação e aprovação levou mais de dez anos.

Referências

David Altman: Direct Democracy Worldwide – João Trindade Cavalcante Filho (Senado/Consultoria Legislativa): Iniciativa Popular e Desvirtuamento do Projeto pelo Legislativo

Última atualização em 12 de maio de 2017.

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Conteúdo escrito por:
Jornalista de formação, cada vez mais apaixonada pelo Direito. Tem no jurista Paulo Bonavides fonte de inspiração na busca de um Direito de liberdade, igualdade e justiça.

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16 abr. 2024

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