Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
15 de outubro de 2019

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Inciso XXIII – Função social da propriedade

"A propriedade atenderá a sua função social”

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: UMA CONDIÇÃO AO DIREITO DE PROPRIEDADE NO BRASIL 

A função social da propriedade é descrita no inciso XXIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Nele, estão previstos direitos fundamentais, com objetivo de assegurar uma vida digna, livre e igualitária a todos os cidadãos do país. 

Observada pela primeira vez no Brasil na Constituição de 1934, a função social é uma condição ao direito de propriedade. Ela determina que a propriedade urbana ou rural deverá, além de servir aos interesses do proprietário, atender às necessidades e interesses da sociedade. Dessa forma, a função social condiciona o direito de propriedade ao respeito pelo bem coletivo

Este conteúdo é parte do projeto Artigo Quinto, fruto de uma parceria entre o Instituto Mattos Filho, a Civicus e a Politize!, que juntos explicam os direitos fundamentais descritos no artigo 5º da Constituição.

ANALISANDO O INCISO XXIII – FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

O artigo 5° da Constituição Federal de 1988 traz, logo após a garantia do direito de propriedade, um inciso que impõe uma limitação a esse direito:

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social

A função social é a utilização da propriedade urbana ou rural em consonância com os interesses sociais de determinada coletividade. Ela  impõe limites ao direito de propriedade para garantir que ele não prejudique o interesse coletivo. Isso significa que uma propriedade rural ou urbana não deve atender apenas aos interesses de seu proprietário, mas também aos da sociedade. 

O inciso XXIII estabelece apenas que a propriedade deve atender à sua função social, mas não descreve os requisitos para que isso ocorra. Contudo, estão em outros trechos da Constituição e diferem para cada tipo de propriedade. 

A função social da propriedade urbana é descrita no artigo 182:

  • 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. 

Assim, a propriedade urbana atende à sua função social quando respeita os critérios estabelecidos pelo plano diretor de cada município. 

Por sua vez, a função social da propriedade rural é descrita no artigo 186: 

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

I – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

O artigo 243 da Constituição também determina a expropriação de imóveis utilizados na prática de determinados crimes, que evidentemente violam a função social dessas propriedades:

Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.

Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.” (Redação dada pela EC nº 81/2014)

A função social da propriedade reaparece na Constituição Federal em outros dispositivos, tendo destaque ao previsto no artigo 170, que a eleva a um princípio da ordem econômica, com o objetivo de assegurar a justiça social e uma existência digna a todos. 

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […]

 III – função social da propriedade […]. 

Desta forma, a Constituição entende que a justiça social deve reger a ordem econômica. Logo, o direito de propriedade deve estar condicionado ao respeito pelo bem coletivo.

O HISTÓRICO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO BRASIL

Imagem de uma casa branca, com porta e janela verde | Função social da propriedade – Artigo Quinto
No Brasil, a primeira Constituição Federal a adotar uma ideia semelhante à função social foi a Constituição de 1934 | Função social da propriedade – Artigo Quinto

No Brasil, a primeira Constituição Federal a adotar uma ideia semelhante à da função social foi a de 1934. Nela, o direito de propriedade deixava de ser apresentado como um direito absoluto, com a previsão de que não deveria ser exercido contra o interesse social ou coletivo (art. 113, n. 17). 

Função social da propriedade e a demanda por reforma agrária

Com a chegada de Vargas à Presidência, iniciou-se a industrialização do país. Em função disso, muitos trabalhadores rurais migraram para as cidades em busca de melhores oportunidades e condições de vida. No entanto, ao chegar nas cidades, encontraram desemprego ou condições muito precárias de trabalho, tendo sido explorados e marginalizados. 

Nesse contexto, surgiu a luta pela reforma agrária, que pedia uma redistribuição das propriedades rurais para as pessoas poderem viver uma vida digna no campo. Tradicionalmente, a agricultura brasileira é caracterizada pelos grandes latifúndios, que prejudicam os pequenos produtores rurais. 

Em 1946, a nova Constituição reforçou que o direito de propriedade deveria respeitar o bem-estar social e foi além ao dizer que a lei poderia promover uma justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos (art. 147). 

Alguns anos depois, a EC n. 10/1964 estabeleceu o mecanismo da desapropriação por interesse social como instrumento de efetivação da reforma agrária. Ou seja, propriedades de terra que não cumprissem o que hoje se entende por sua função social poderiam ser desapropriadas pelo governo, mediante indenização ao proprietário, e redistribuídas. Nesse período foi editado o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964) que definiu o que seria a função social dos imóveis rurais.

No entanto, à época, a reforma agrária não chegou a sair do papel. Para dar um novo impulso à ideia, o Governo Federal lançou, em 1966, o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária. Mas também não teve sucesso na implementação das medidas necessárias para a redistribuição das terras.

A Carta de 1967 inovou ao usar a expressão “função social da propriedade” em nível constitucional, prevista no artigo 157, inciso III, no título dedicado à ordem econômica e social, que continuou a constar na EC nº 1/1969

Ainda durante a Ditadura Militar, em 1970, o governo criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Até hoje, o Incra é o principal responsável pela implementação das políticas de reforma agrária no Brasil.

Com a adoção da Constituição de 1988, a função social passou a constar não apenas entre os princípios reguladores da ordem econômica (art. 170, III), mas também no catálogo de direitos fundamentais, junto à previsão do direito de propriedade. Além disso, também está em outros dispositivos constitucionais (173, §1º, I; art. 182, §2º; art. 184; art. 185, parágrafo único, e no art. 156, §1º antes de sua alteração pela EC nº 29/2000).

A IMPORTÂNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Historicamente, a distribuição das terras no Brasil é extremamente desigual, resultado da estrutura latifundiária. Por essa razão, a função social da propriedade visa combater as desigualdades sociais provocadas por essa distribuição assimétrica das terras rurais e urbanas. 

O princípio da função social parte do entendimento de que não é benéfico para a sociedade ter propriedades de terra sem utilidade alguma. Por exemplo, imagine que uma propriedade de terra está sem uso, enquanto muitas famílias não têm acesso a uma propriedade, logo, não têm onde viver ou trabalhar. 

Nesse cenário, temos uma propriedade sem uso e várias famílias necessitadas. Tanto do ponto de vista econômico, quanto do social, seria mais benéfico redistribuir a terra para essas famílias. Assim, teríamos uma propriedade produtiva e, também, várias famílias com acesso à moradia e a condições de produzir. 

É visando transformar o primeiro cenário no segundo que foram estabelecidas a função social da propriedade, a desapropriação e a reforma agrária. No entanto, apesar da Constituição Federal adotar esses mecanismos, a realidade brasileira ainda é muito parecida com o exemplo fictício citado acima. 

No início de 2018, eram 6,69 milhões de famílias sem casa no Brasil e 6,05 milhões de imóveis vazios. O pior é que com o advento da pandemia de Covid-19 a população de rua aumentou cerca de 140%, atingindo 220 mil brasileiros. Esses dados demonstram a desigual distribuição da propriedade no país, onde milhões de pessoas não têm moradia ou vivem em condições precárias, enquanto milhões de imóveis estão desocupados. 

Dessa forma, a função social parte do entendimento de que a lei deve prezar pelo bem coletivo e pelos interesses da sociedade, o que às vezes se contrapõe ao interesse individual. 

A FUNÇÃO SOCIAL APLICADA NA PRÁTICA

Casa de madeira, já antiga, com uma bicicleta verde encostada na mesma | Função social da propriedade – Artigo Quinto
A função social das propriedades urbanas é definida no Estatuto da Cidade e no Plano Diretor de cada município, já a das urbanas é definida pelo Estatuto da Terra | Função social da propriedade – Artigo Quinto

Como mencionado anteriormente, os critérios para o cumprimento da função social diferem para propriedades rurais e urbanas. Por essa razão, vejamos separadamente como a função social é aplicada em cada situação. 

Propriedades urbanas

A função social das propriedades urbanas é definida no Estatuto da Cidade e no plano diretor de cada município. O Estatuto é uma lei federal, logo, estabelece diretrizes gerais da política urbana que devem ser respeitadas em todo o país. Contudo, os municípios têm liberdade para estabelecer, em seus planos diretores, regras específicas que os terrenos e os imóveis em seu território devem respeitar. 

No caso de não cumprimento da função social, o município pode aplicar sanções ao proprietário e, se necessário, a desapropriação. Geralmente, a sanção utilizada é uma multa com base em uma alíquota progressiva do IPTU. Ou seja, a cada ano aumenta-se a alíquota (percentual) do IPTU cobrado sobre o imóvel. O proprietário tem um prazo após o início da sanção para regularizar a situação da propriedade. Caso não o faça, o município pode desapropriar o imóvel, mediante indenização. 

Em 2014, a cidade de São Paulo implementou esse modelo. A prefeitura publicou novo Plano Diretor (Lei nº 16.050 de 31 de julho de 2014) que determinava a notificação de proprietários de imóveis em situação irregular. 

O Plano estabelecia que esses proprietários teriam o prazo de um ano para adequar suas propriedades aos critérios previstos. Aqueles que não regularizassem seus imóveis dentro desse prazo seriam sancionados com uma alíquota progressiva de IPTU. Em cinco anos após o início da sanção, os imóveis que ainda estivessem irregulares seriam desapropriados, mediante indenização aos proprietários, paga em títulos da dívida pública. 

Segundo o especialista Renato Cymbalista, entrevistado pelo Nexo Jornal, a aplicação da alíquota progressiva de IPTU em São Paulo surtiu efeito, pois muitos proprietários notificados passaram a alugar seus imóveis, antes sem uso, por preços abaixo do mercado. Embora este não seja um exemplo de política de habitação social, a sanção fez com que muitos imóveis se adequassem à função social, beneficiando famílias que passaram a ter acesso a aluguéis mais acessíveis.

Já em outubro de 2019, o município de São Paulo aprovou a Lei Municipal n⁰ 17.202/2019Lei de Regularização de Edificações, mais conhecida como Lei da Anistia de imóveis —, que prevê a regularização de construções irregulares construídas até a revisão do último Plano Diretor, em 2014. A medida advém da necessidade de regularizar inúmeras edificações que têm condições adequadas de segurança e acessibilidade, apesar de não terem as devidas autorizações do Município.

Propriedades rurais

A função social das propriedades rurais, por sua vez, é estabelecida no Estatuto da Terra, uma lei federal. De acordo com ela, a propriedade cumpre sua função social quando é explorada de forma sustentável, utiliza adequadamente os recursos naturais e respeita a legislação trabalhista. No caso de descumprimento, o Governo Federal pode efetuar a desapropriação e redistribuir a terra para fins de reforma agrária. 

Com a criação do Incra, a redistribuição de terras irregulares no Brasil avançou. De acordo com os dados do Instituto, já foram redistribuídos 87.702.072 hectares de terra, beneficiando 1.364.057 famílias. No entanto, nos últimos anos, a reforma agrária tem desacelerado. O Incra declara que, em 2017, nenhuma família recebeu terras. 

CONCLUSÃO

Como demonstramos, a função social é uma condição imposta ao direito de propriedade para impedir que na sua destinação o interesse individual ignore o interesse social. Ao estabelecer uma função social para a propriedade, o Estado brasileiro preza pela justiça social e pela utilidade da propriedade

Contudo, embora a Constituição brasileira estabeleça os mecanismos necessários para garantir o cumprimento da função social, a desigualdade na posse de propriedades urbanas e rurais  ainda é marcante no Brasil. 

  • Esse conteúdo foi publicado originalmente em outubro/2019 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.

Sobre os autores:

Camila Gomes

Advogada de Negócios imobiliários e Investimentos florestais

Isabela Moraes

Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.


Fontes:

BBC: 6 milhões de famílias sem moradia

Nexo Jornal: IPTU progressivo

CN Registradores: 6,9 milhões de famílias sem casa

INCRA: Reforma Agrária

Planalto: Estatuto da Terra

Planalto: Estatuto da Cidade

Planalto: Constituição Federal

Reforma Agrária em dados

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