O Brasil, país que detém 12% da água doce superficial da Terra, estabeleceu na Constituição Federal de 1988 a água como bem público, mas somente em 1997, após crises hídricas e pressão de grupos interessados, instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), estabelecendo assim o marco legal mais importante para a gestão sustentável das águas no território nacional.
A água, um dos elementos mais preciosos e essenciais para a existência humana, a saúde do ecossistema global e o desenvolvimento socioeconômico, tem se tornado cada vez mais disputada em todo o mundo. À medida que a população cresce, há também uma necessidade crescente de equilíbrio entre as demandas da sociedade e da economia. Por isso, a gestão adequada desse recurso é uma questão estratégica para a humanidade.
Quer entender melhor como a PNRH funciona, e por que é importante? Então acompanhe a leitura!
Este conteúdo integra a trilha do Projeto Amazônia Urbana, uma iniciativa que busca aprofundar o entendimento sobre os desafios e transformações ambientais das cidades na região amazônica.
O projeto é realizado pela Politize!, em parceria com o Pulitzer Center.
- O que é a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH)?
- Qual era o contexto antes da Política Nacional de Recursos Hídricos?
- Instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos
- Como são vistos os instrumentos da PNRH?
- A importância da PNRH para o meio ambiente e o papel da sociedade
- O futuro da PNRH
- Referências
O que é a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH)?
A Política estabelecida pela Lei nº 9.433/1997, durante o Governo de Fernando Henrique Cardoso, conhecida como a Lei das Águas do Brasil, define um conjunto de diretrizes, normas e estratégias para a gestão integrada e sustentável dos recursos hídricos.
Ela tem o objetivo de assegurar à atual e às futuras gerações a disponibilidade de água adequada para seus diferentes usos, promover a utilização racional dos recursos hídricos, prevenir eventos críticos naturais ou ligados ao uso inadequado dela e incentivar a captação, preservação e aproveitamento de águas das chuvas.

Quais os fundamentos da Política Nacional?
Seis princípios fundamentais permeiam a política direcionando as normas e estratégias instituídas. Neles, a água é definida como bem de domínio público (o que significa que não pode ser entregue à iniciativa privada), além de um recurso natural limitado com valor econômico. Em uma possível situação de escassez, o consumo humano e a dessedentação de animais devem ter prioridade de uso.
Em relação à gestão dos recursos hídricos, os fundamentos definem que ela deve considerar aspectos ambientais, sociais e econômicos e que deve ser descentralizada, envolvendo diversos atores, desde o poder público até a sociedade civil.
As bacias hidrográficas brasileiras também são instituídas como unidades territoriais para implementação da PNRH e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Para completar esse sistema, foi criada em 2000, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), responsável pela implementação da lei, além de terem sido estabelecidos mais de 230 Comitês de Bacias que são importantes instrumentos da gestão descentralizada por reunirem interesses setoriais das grandes bacias e microbacias nacionais e transnacionais.

A política e esse sistema são considerados conquistas importantes para a preservação da água e para garantir que os recursos hídricos sigam disponíveis no futuro. Por isso, eles seguem sendo defendidos como o melhor instrumento para o avanço da gestão desse recurso e o enfrentamento de desafios, como as crises hídricas que vieram nos anos seguintes e geraram discussão sobre como priorizar o uso da água nessas situações, por exemplo.
O professor de Recursos Hídricos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Jerson Kelman, que já foi diretor da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), destaca que nela já estão as disposições mais importantes para a gestão da água e o enfrentamento de problemas como este e que não existe a necessidade de serem novamente discutidas prioridades:
“Não dá para admitir que haja um olhar predominante. Não pode ser privilegiado nem o setor elétrico nem o meio ambiente e a irrigação. Essa orquestração, porém, é extremamente complexa, porque há componentes técnicos e políticos”, aponta Kelman.
Por outro lado, a eficácia da PNRH é questionada por outros especialistas, como a geógrafa mestre em geografia humana da Universidade de São Paulo (USP), Ana Cristina Fonseca Tomaz, que defende a gestão centralizada que permita, ao mesmo tempo, a cooperação entre as diversas unidades federativas do país e a competição necessária para o desenvolvimento individual.
Qual era o contexto antes da Política Nacional de Recursos Hídricos?
Antes do estabelecimento da política, até o final do século XX, o país não tinha um sistema integrado de gestão de recursos hídricos e, com isso, a água era tratada como se fosse um recurso infinito.
Isso acabava facilitando o uso predatório, a poluição crescente e gerava grandes disputas pelo acesso às águas, como aconteceu nos entornos da Bacia do Rio São Francisco que é até hoje cercado de conflitos.
Na região, se estenderam as discussões sobre a prioridade do uso das águas (para irrigação ou abastecimento) e sobre a alteração do ciclo de natural das cheias (que altera as atividades reprodutivas dos peixes, por exemplo) e, principalmente, se ampliaram conflitos com as discussões sobre o megaprojeto de transposição das águas que poderia, na visão de grupos críticos, como as populações e os governos de Minas Gerais e da Bahia (onde nascem e correm a maior parte das águas), tirar a água de uns para levar a outros.
Com a ausência de regulamentação, a exploração descontrolada da água (seja para uso industrial, para irrigação no campo ou para o abastecimento urbano) era mais comum do que deveria. Isso gerou uma série de impactos que se perpetuam até hoje com rios, lagoas e mares contaminados com esgoto doméstico e resíduos industriais, mudança significativa nas paisagens, impossibilidade de consumo de água, problemas de saúde pública e destruição de ecossistemas.
Em Belém, no Pará, é possível observar essa realidade pelos igarapés que foram sendo aterrados, canalizados e, em muitos casos, transformados em valões onde o despejo de resíduos é constante.
Veja também: Água potável e saneamento básico: como isso é abordado no ODS 6?
Instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos
Para acabar com esses problemas e alcançar seus objetivos, a PNRH se estruturou então em torno de instrumentos que têm, ao mesmo tempo, caráter técnico, regulatório, econômico e participativo.
Caráter técnico
Os planos de bacia hidrográfica se destacam como instrumentos estratégicos e funcionam como um guia de planejamento para uso sustentável da água em cada bacia, levando em consideração questões específicas de cada lugar, a disponibilidade de água, as necessidades da população, da agricultura, da indústria e de geração de energia.
A lógica é construir soluções sob medida, evitando conflitos e promovendo a conservação ambiental.
Caráter regulatório
Um mecanismo central é o sistema de outorgas, que regulamenta a concessão do direito ao uso da água. Por meio dele, atividades que demandam captação intensa de água (como irrigação, abastecimento urbano, uso industrial e geração de energia) precisam de autorização do poder público, o que permite ao Estado controlar a quantidade e evitar uma exploração que ultrapasse a capacidade natural de reposição.
Caráter econômico
Complementando essa lógica, existe a cobrança pelo uso da água, um instrumento econômico que dá valor à água como um bem que, mesmo sendo de domínio público, deve ser tratado como finito. A ideia é estimular o uso racional, ao mesmo tempo em que gera recursos financeiros para financiar projetos e ações de gestão nas próprias bacias.
Caráter participativo
O caráter participativo da PNRH se manifesta de forma mais clara nos comitês de bacias, reunindo poder público, setor privado, organizações sociais e comunidades. Nesses espaços, as decisões devem ser tomadas de forma colegiada.
Como são vistos os instrumentos da PNRH?
Os instrumentos para implementação da política são apontados como inovadores e fundamentais para uma gestão mais democrática, alinhada aos princípios de sustentabilidade.
Porém, recebem críticas de organizações sociais, como o Greenpeace e o WWF, que destacam que, na prática, muitos desses instrumentos ainda esbarram em limitações como a falta de fiscalização, a desigualdade regional, a falta de dinheiro e conhecimento técnico para o monitoramento e implementação as medidas previstas, além da dificuldade de garantir a participação representativa e equilibrada nos comitês.
A fragmentação também pode gerar ineficiência e sobreposição de responsabilidades. Um modelo híbrido, com coordenação centralizada forte e incentivos fiscais para iniciativas regionais eficientes, pode ser outra solução.
O excesso de regras, outorgas e exigências burocráticas pode retardar obras de infraestrutura hídrica e afastar investimentos privados, especialmente em regiões com grande demanda social por água potável e esgoto tratado.
A cobrança pelo uso da água é também apontada mais como um ônus para populações mais vulneráveis do que como um incentivo ao uso racional, além de aplicação de tarifas poder penalizar a competitividade, sobretudo em áreas rurais e indústrias de pequeno porte.
Quais os desafios na implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos?
Além dos pontos questionados na política, fatores geográficos e de infraestrutura dificultam a sua implementação.
A distribuição desigual da água pelo território brasileiro é um desafio: enquanto a região amazônica concentra a maior parte da água e regiões como o sul e o sudeste sofrem com enchentes históricas, regiões como o semiárido nordestino convivem historicamente com a escassez.
Outro desafio importante a considerar para o avanço da gestão de recursos hídricos é a falta de infraestrutura de saneamento básico no país. Hoje somente 62,5% dos lares têm acesso à rede de esgoto.

A falta de destinação correta de efluentes por quase 40% dos lares brasileiros afeta diretamente os ecossistemas e a qualidade da água disponível, seja para abastecimento, irrigação ou outros usos. Um exemplo crítico dessa realidade é Manaus, no Amazonas, onde mais de 70% do esgoto não tratado e é lançado in natura na vasta rede de igarapés que corta a cidade, contaminando o próprio Rio Negro.
A importância da PNRH para o meio ambiente e o papel da sociedade
A Política Nacional de Recursos Hídricos tem relevância indiscutível para a preservação do meio ambiente por estabelecer mecanismos para proteger ecossistemas aquáticos (rios, lagos, aquíferos e zonas úmidas), ao mesmo tempo em que concilia diferentes interesses sociais e econômicos.
Pelos seus fundamentos e instrumentos, ela contribui para a conservação da biodiversidade, a manutenção de ciclos ecológicos essenciais para a sobrevivência de inúmeras espécies da fauna e da flora e para a mitigação de impactos ambientais gerados por atividades produtivas e pela urbanização acelerada do país.
Permite um controle mais rigoroso da poluição e do uso da água, estabelecendo limites para o lançamento de efluentes e a captação de água. Isso reduz a degradação de áreas frágeis, ajuda a recuperar ambientes comprometidos por ações do passado, reduzir as pressões sobre mananciais já sobrecarregados e fortalece a resiliência dos ecossistemas.
No contexto das mudanças climáticas, a PNRH ganha ainda mais importância, uma vez que o Brasil enfrenta desafios crescentes relacionados à escassez hídrica ao mesmo tempo em que outras regiões sofrem com eventos extremos, como enchentes e inundações.
A política define instrumentos de planejamento essenciais, como os planos de bacias hidrográficas, para a adaptação às novas condições, permitindo tanto a antecipação de riscos quanto a formulação de medidas preventivas. Isso, apesar de não resolver por completo os desafios, contribui para que haja um processo de governança mais estruturado, capaz de reduzir os impactos dessas mudanças.
Por isso, a política é vista como uma ferramenta que fortalece a consciência coletiva sobre a finitude da água e promove um olhar sistêmico que relaciona cuidado com o meio ambiente, saúde pública, justiça social e desenvolvimento econômico. Por outro lado, questiona-se se os mecanismos implementados são suficientes para enfrentar o aumento da pressão sobre os recursos hídricos causado pelo crescimento populacional, pela intensificação agrícola e pela expansão industrial.
Nesse processo, o papel da sociedade é decisivo. A PNRH se diferencia de outras políticas públicas justamente por instituir um modelo participativo (por meio dos comitês de bacia hidrográfica), porém com a predominância de interesses técnicos ou econômicos, a falta de informação da população e a baixa representatividade da sociedade nesses comitês não há como garantir uma gestão justa e sustentável.
O futuro da PNRH
Apesar de representar o marco legal mais importante para a gestão sustentável das águas no Brasil e uma oportunidade para o país por seu poder de integração e por afetar toda a sociedade, a Lei das Águas tem espaço para aprimoramentos que facilitem a sua implementação. Para isso acontecer, é preciso que ela seja cada vez mais fortalecida.
A The Nature Conservancy, organização da sociedade civil que trabalha em mais de 81 países para a conservação do meio ambiente, aponta que os caminhos para o fortalecimento da PNRH passam por uma possível adequação de estruturas oficiais, pela ampliação da capacidade dos órgãos gestores, pela disponibilização de mais estrutura para funcionamento dos comitês de bacia e pelo estímulo ampliado à participação dos municípios, da sociedade, entre outros aspectos.
Além disso, é importante considerar que seus resultados seguirão dependendo da superação de gargalos estruturais e políticos. O desafio é transformar os princípios da lei em práticas efetivas, capazes de garantir segurança hídrica tanto para os setores produtivos quanto para o consumo humano e a preservação dos ecossistemas, especialmente diante das pressões crescentes impostas pela urbanização acelerada, pelas mudanças climáticas e pelas desigualdades sociais do país.
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Se você gostou do conteúdo, conheça o Projeto Amazônia Urbana, uma iniciativa da Politize! em parceria com o Pulitzer Center. O projeto busca ampliar o olhar sobre os desafios das cidades amazônicas, promovendo conteúdos acessíveis e didáticos sobre urbanização, justiça climática e participação cidadã na região. Acompanhe essa jornada!
Referências
- Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) – Cardernos de capacitação em recursos hídricos: Outorga de direito de uso
- Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) – Impacto da mudança climática nos recursos hídricos do Brasil
- Câmara dos Deputados – Especialistas defendem a Política Nacional de Recursos Hídricos para lidar com a falta de chuvas
- Faculdade de Filosofias, Letras e Ciências Humanas da USP – A Política Nacional de Recursos Hídricos e o Federalismo no Brasil
- Fundação Joaquim Nabuco (Ministério da Educação) – Rio São Francisco: conflitos nos usos de suas águas
- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Censo 2022: rede de esgoto alcança 62,5% da população, mas desigualdades regionais e por cor e raça persistem
- Jornal da USP – A complexa geografia da água no Brasil e no mundo
- Ministério das Cidades – Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento 2022
- Ministério do Meio Ambiente e da Mudança Climática – Site oficial
- Mundo Educação (UOL) – Distribuição da água no Brasil
- Presidência da República – Constituição Federal de 1988
- Presidência da República – Política Nacional de Recursos Hídricos
- Revista de Gestão de Água da América Lativa (Rega) v. 16, e9, 2019 – Panorama do enquadramento no Brasil: Uma reflexão crítica
- The Nature Conservancy – 25 anos da Lei das Águas no Brasil: conquistas, desafios e ameaças com o PL do Novo Marco Hídrico
- United Nations – Global Issues: Water