A crença como um direito humano no mundo

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A crença como um direito humano no mundo
07 jun 2022
07 / jun / 2022

A crença como um direito humano no mundo

A crença, como característica humana, nunca foi unânime e hegemônica entre as pessoas. Isto é, ao longo de toda a história, as crenças individuais e coletivas foram plurais e baseadas na diversidade de pensamento e religião.

Atualmente, a liberdade de crença é protegida como um direito humano no âmbito internacional, partindo do reconhecimento de que todos são livres para poder manifestar os seus credos e expressar as suas religiões.

Mas, assim como no passado, diversas pessoas ainda são perseguidas e têm os seus direitos fundamentais violados por conta de suas crenças e religiões. De acordo com o relatório Liberdade Religiosa no Mundo, elaborado em 2021 pela Aid to the Church in Need, cerca de 67% da população global vive em países onde a liberdade religiosa é ameaçada.

Sendo assim, neste texto do Equidade vamos entender como as convicções religiosas são protegidas no sistema internacional de proteção dos direitos humanos. Buscando assim, compreender de que forma as crenças, que refletem aspectos culturais e sociais, são asseguradas como um direito humano ao redor do mundo.

O projeto Equidade é uma parceria entre a Politize!, a Civicus e o Instituto Mattos Filho voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado(a) para entender sobre a crença como um direito humano no mundo? Segue com a gente!

Confira também o nosso podcast sobre o assunto, no qual conversamos com o José Marinho Séves Santos, advogado de Infraestrutura e Energia do escritório Mattos Filho:

O que crença quer dizer?

Para entendermos sobre a liberdade religiosa e de crença enquanto um direito humano, é importante inicialmente termos a noção sobre o que a crença significa.

Muitas vezes, existe uma certa confusão que coloca a crença como o oposto da razão, ou do pensamento racional, que seria a capacidade do ser humano em entender e explicar as coisas ao seu redor por meio do raciocínio dedutivo e lógico.

Na verdade, os conceitos de razão e crença partem de categorias epistemológicas (estudos filosóficos do conhecimento) diferentes. Dessa forma, esses conceitos (quando pensamos no âmbito filosófico) podem não ser vistos como totalmente contraditórios, ou seja, um significar apenas o oposto do outro. 

Vamos tentar simplificar: a razão pode ser vista como uma faculdade intelectual capaz de produzir o pensamento racional. Esse pensamento permite relacionar as informações/conhecimentos e fazer com que um indivíduo chegue à indução ou à dedução de algo.

Assim, considera-se razão como um instrumento para todo indivíduo que queira articular e expressar os seus pensamentos a respeito de qualquer coisa. Nesse sentido, esse instrumento pode ser utilizado pelo indivíduo até mesmo para produzir as suas crenças.

Isso porque a crença é um estado cognitivo no qual os indivíduos assumem algo como verdadeiro ou falso a partir de certas premissas ou proposições sobre o mundo. Com isso, pode-se entender que quando um indivíduo crê em algo, ele está afirmando que tal premissa ou proposição condiz com a realidade.

Nesse caso, para o indivíduo chegar a essa conclusão sobre a realidade, o raciocínio lógico pode ser o meio utilizado. Mas, ressalta-se que isso não ocorre no que pode ser chamado de “crença cega”. Isso porque ela seria uma crença com zero grau de justificativa para o pensamento racional. Ou seja, ela não estaria baseada em nenhum fato real.

A livre crença como elemento dos direitos humanos

Como vimos a partir do conceito de crença, a sua manifestação está diretamente ligada à liberdade de consciência e de pensamento. Isso porque o indivíduo precisa ser livre para pensar e interpretar a realidade ao seu redor para construir conscientemente as suas crenças.

Dessa forma, o controle e a repressão contra essas liberdades violam os princípios da igualdade e da dignidade humana, visto que a crença faz parte também do contexto interno do indivíduo. E, muitas vezes, torna-se um fundamento que guia suas atitudes e comportamentos.

Assim, a discriminação em relação à religião, bem como à crença, desrespeita a autonomia do indivíduo como ser consciente e livre para tomar suas decisões e acreditar naquilo que faz sentido para a sua vida. 

Por isso, desde 1948, com a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) pela Organização das Nações Unidas (ONU), após as crueldades feitas contra os judeus na Segunda Guerra Mundial, a liberdade religiosa é reconhecida como um direito humano no mundo.

Isso porque em seu artigo 18, a Declaração expressa que toda pessoa tem direito à liberdade religiosa, de pensamento e de consciência, em que o indivíduo é livre para manifestar a sua crença pelo culto, pela prática ou pelo ensino.

Imagem de um homem em posição de oração olhando para o horizonte montanhoso representando a crença como um direito humano

A partir desse reconhecimento, a comunidade internacional passou a produzir, tanto em nível global, quanto regional, instrumentos normativos para garantir a implementação desse direito nos países. 

Esses instrumentos, materializados em forma de tratados internacionais, nascem principalmente com o objetivo de proteger as pessoas contra a perseguição e a intolerância religiosa, assim como dos conflitos que delas podem surgir. Sendo assim, vamos falar melhor sobre cada um deles a seguir.

A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados

A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados foi o primeiro tratado internacional da ONU após a DUDH a deliberar sobre a questão da liberdade religiosa e a livre manifestação da crença. 

Publicada em1951 para a proteção dos refugiados ao redor do mundo, o Estatuto previu, dentre outras disposições, o direito à não discriminação das pessoas em situação de refúgio quanto à raça, religião e/ou origem.

Além disso, o Estatuto dos Refugiados estabelece que a pessoa que migrou em decorrência de perseguição por motivos religiosos pode ser considerada como em situação de refúgio. Assim, os Estados ficam obrigados a propiciar a liberdade dessa pessoa em praticar sua crença religiosa.

Ah, e aqui no Equidade temos um tema inteiro apenas sobre os direitos dos refugiados e migrantes, vale a pena conferir para entender mais sobre o assunto!

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

Com o objetivo de aprimorar e efetivar os direitos reconhecidos na DUDH, a ONU, em 1966, formulou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Nele, a liberdade religiosa e de crença é reforçada como um direito humano, exigindo dos Estados membros que suas normativas sejam implementadas dentro dos países.

Essa liberdade fica garantida nos artigos 18º e 27º, em que todo o indivíduo tem o direito de escolher e professar sua religião, não podendo ser privado de sua própria vida cultural e ficando protegido de qualquer repressão. 

Essa livre manifestação de crença, no entanto, fica apenas sujeita às limitações da lei, para manter a ordem e a segurança pública. Pensando em um exemplo hipotético, não é permitido cometer um homicídio, ou qualquer outro crime previsto em lei, em nome da livre expressão religiosa.

A Declaração sobre Eliminação de Todas as Formas de Intolerânica e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções

Elaborada em 1981 pela ONU, a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções foi a responsável por definir a discriminação religiosa no âmbito do direito internacional, expressando que: 

“[…] entende-se por “intolerância e discriminação baseadas na religião ou nas convicções” toda a distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na religião ou nas convicções e, cujo fim ou efeito seja, a abolição ou o fim do reconhecimento, o gozo e o exercício em igualdade dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.”

Assim, esse documento classifica a discriminação religiosa como uma ofensa à dignidade humana e uma violação de direitos humanos. Além disso, inova por compreender que escrever, publicar e difundir publicações sobre religiões são meios de exercício da liberdade religiosa.

A Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas

Aprovada em 1992 pela ONU, essa declaração tem como objetivo combater toda e qualquer forma de discriminação e proteger especialmente as minorias, visto que se encontram em uma situação de maior vulnerabilidade.

Sendo assim, apesar de não possuir um caráter obrigatório aos países, esse documento reforça que os Estados devem cumprir de boa-fé os compromissos assumidos nos demais tratados internacionais na garantia da liberdade religiosa.

Dessa forma, determina que as pessoas pertencentes a minorias, seja étnica, religiosa ou linguística, têm o direito de gozar de sua cultura e manifestar suas crenças. Tendo assim, o direito de participar efetivamente da vida cultural, social, econômica e política da sociedade.

A proteção regional à livre crença religiosa

Além dos documentos citados, válidos em nível global, é importante ressaltar que as organizações regionais também possuem mecanismos de proteção à liberdade religiosa. Os exemplos que mais se destacam são no continente europeu, no americano e no africano.

Na Europa, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950) preza pela liberdade de consciência, pensamento e religião. Assim, determina que os direitos e liberdades devem ser assegurados sem distinção de sexo, raça, cor, língua, religião, opinião política, origem, riqueza, ou qualquer outra situação.

Nas Américas, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), aprovada pela Organização dos Estados Americanos (OEA), prevê que todo indivíduo pode adotar e professar a sua crença, tendo o direito de livre associação com fins religiosos.

Na África, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1981), também chamada de Carta de Banjul, afirma que para garantir a verdadeira independência e liberdade dos povos africanos, é preciso eliminar o colonialismo, o neocolonialismo, o apartheid e qualquer forma de discriminação, incluindo a religiosa.

A aplicação dos tratados internacionais na prática

A existência de todos esses direitos referentes à crença e à religião talvez leve ao questionamento de como eles são implementados de fato na vida das pessoas. Trazemos a seguir alguns casos para ilustrar essa aplicabilidade:

Um dos casos ocorreu em 2009, na Itália, após uma mãe de origem finlandesa reclamar ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos que a escola pública na qual seus dois filhos  frequentavam possuía crucifixos dentro das salas de aula.

Para a mãe, isso correspondia a um desrespeito ao princípio da secularidade, em que o Estado deve ser neutro em matéria de religião, não podendo impor ou dar preferência a uma determinada religião ou crença.

Com isso, o Tribunal deu razão à reclamante, com base no Primeiro Protocolo da Convenção Europeia de Direitos Humanos, em que a responsabilidade estatal à educação não pode conflitar com o direito dos pais em instruir seus filhos a partir de suas próprias crenças.

Além disso, ressaltou que a liberdade religiosa também abrange o direito de não praticar nenhuma religião, sendo que o Estado tem o dever de ser imparcial. Isso implica que no espaço público de ensino infantil, seria preciso restringir a imposição de qualquer tipo de crença, mesmo que de maneira indireta.

No entanto, anos mais tarde o governo italiano conseguiu recorrer à sentença, que acabou sendo revogada. Esse exemplo demonstra que, nos ordenamentos jurídicos, a prerrogativa da liberdade religiosa não é absoluta, sendo um direito limitado em virtude de outros princípios.

Para além desse caso, no infográfico abaixo é possível ver outros exemplos de aplicação dos tratados internacionais em matéria de liberdade religiosa.

Infográfico sobre a aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos em relação a liberdade religiosa representando a crença como direito humano no mundo

Dados e informações sobre a liberdade religiosa no mundo

O mundo é marcado por uma grande diversidade religiosa e com uma alta identificação das pessoas com alguma religião ou crença. Segundo estudo de 2017 do Pew Research Center, mais de 6 bilhões de pessoas ao redor do mundo se identificam com alguma religião, enquanto um pouco mais de 1 bilhão não possui qualquer afiliação religiosa.

Isso significa que a maioria da população global é religiosa, sendo o maior grupo formado por cristãos (31,2%), seguidos pelos muçulmanos (24,1%), hindus (15,1%) e budistas (6,9%). 

Mas, essa identificação humana com a religião, quando levada ao extremo, pode ocasionar conflitos e casos de intolerância e perseguição. Historicamente, conflitos e guerras foram geradas em nome da religião, sendo que muitas perduram até os dias de hoje. 

Como é o caso da disputa entre Israel e Palestina; os conflitos na Nigéria que envolvem o grupo extremista Boko Haram; a repressão causada pelo Talibã no Afeganistão; a guerra civil na Síria com envolvimento do Estado Islâmico na perseguição de minorias religiosas, entre outros. 

Para além dos conflitos, uma análise feita em 2019 também pelo Pew Research Center indicou que 79 países possuem leis que criminalizam a blasfêmia em suas legislações (a maioria na Ásia e na África). Ou seja, leis que proíbem a difamação do que é considerado sagrado ou dos deuses referentes às religiões desses países.

O estudo ainda aponta que 22 países possuem leis contra a apostasia, isto é, leis que proíbem a renúncia ou a mudança de uma religião, indo contra princípios da livre manifestação da crença. Desses países, todos se localizam na África ou na Ásia.

Como consequência, muitas vezes a aplicação dessas leis resulta em medidas opressivas. Como no caso do Paquistão, destacado no próprio estudo, em que pelo menos 17 pessoas foram condenadas à pena de morte por blasfêmia no ano de 2019.

Conclusão

Poder decidir e expressar livremente aquilo que você acredita e que faz sentido em sua realidade em relação às questões religiosas e espirituais é, hoje, um direito inerente à pessoa humana.

Essa liberdade compreende não apenas o direito de ter uma religião, mas também de poder viver dignamente com base nas suas convicções, podendo manifestá-las desde que isso não viole o direito fundamental de outra pessoa ou grupo. 

Isso foi possível graças aos esforços da comunidade internacional em reconhecer a liberdade religiosa como uma condição diretamente ligada à dignidade humana e à autonomia.

Contudo, esse reconhecimento e as garantias previstas nos tratados internacionais ainda não conseguem proteger de forma efetiva todas as pessoas ameaçadas por discriminações e/ou perseguições religiosas. Como resultado, muitos países ainda repreendem a livre crença dos seus cidadãos.

Uma característica que grande parte desses países possuem é a existência de um Estado religioso como governo, que institui uma religião oficial a ser seguida. Ao contrário do Estado laico, que busca pela neutralidade em questões religiosas. 

Quer entender melhor sobre como funciona o laicismo estatal? Então não deixe de conferir o nosso próximo texto aqui no Equidade, em que vamos abordar sobre o laicismo e o papel do Estado nisso.

Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Liberdade Religiosa“, confere o vídeo abaixo!

Autores:

Bernardo Zahran Rache de Almeida
Eduardo de Rê
Felipe Lima Matthes
Giovanna de Cristofaro
Juliana Meneghelli de Barros
Mariana Carneiro Campos Niccoli
Mariana Carolina Rezende

Fontes:

1- Instituto Mattos Filho;

2- Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, 1981.

3- Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 1950.

4- Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969.

5-  Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, 1951.

6- Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções, 1981.

7- Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas, 1992.

8- Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.

9- MOURA, Raquel. A Contribuição do Direito Internacional na Proteção do Direito à Liberdade Religiosa. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), 2018. Disponível em: <https://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2018/09/raquel_moura.pdf>. Acesso em: 21 de março de 2022.

10- Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 1966. 

11- PIRES, Teresinha. Liberdade de consciência, liberdade de crença e pluralismo político. Revista de Informação Legislativa, Brasília, nº 195, 2012.

12- POLITO, Antony. Breve Ensaio acerca dos Conceitos de Crença e Razão, Ciência e Religião.  Physicae Organum, Brasília, vol. 7, nº 1, p. 7-25, 2021.

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