A Rodovia Transamazônica (BR-230) é um dos legados mais controversos da ditadura militar brasileira.
Construída para conectar as regiões Norte e Nordeste, ela visava integrar a Amazônia ao restante do país, mas acabou simbolizando um exemplo de urbanização predatória e desastre ambiental.
Iniciada em 1970, a rodovia teve impactos negativos significativos no meio ambiente e nas comunidades tradicionais, em vez de promover o desenvolvimento.
Este artigo explora a construção da rodovia, seus efeitos ambientais e sociais e o legado de uma infraestrutura que, em vez de integrar, destruiu habitats, deslocou populações e deixou uma marca profunda na Amazônia.
Este conteúdo integra a trilha de conteúdos do Projeto Amazônia Urbana, uma iniciativa que busca aprofundar o entendimento sobre os desafios e transformações ambientais das cidades na região amazônica.
O projeto é realizado pela Politize!, em parceria com o Pulitzer Center.
- Contexto histórico da Rodovia Transamazônica e a ditadura militar
- A execução da Rodovia Transamazônica e as dificuldades enfrentadas
- Desmatamento e degradação ambiental durante a construção da Rodovia Transamazônica
- Mudanças no modo de vida das comunidades tradicionais
- Problemas de saúde e infraestrutura precária
- Cidades isoladas e mal planejadas ao longo da Transamazônica
- Referências
Contexto histórico da Rodovia Transamazônica e a ditadura militar
A construção da Rodovia Transamazônica se insere em um contexto histórico marcado pelo regime militar (1964-1985). Durante esse período, o Brasil passou a adotar políticas de integração nacional, com o intuito de expandir seu território e integrar a Amazônia ao restante do país.
A Amazônia, que na época era vista como um “deserto demográfico”, foi tratada como uma terra a ser ocupada e explorada, ignorando as complexas dinâmicas ambientais e sociais da região.
O regime militar acreditava que o desenvolvimento da Amazônia era necessário para garantir a soberania nacional, proteger as fronteiras e explorar os vastos recursos naturais da região.
A ideia de integrar a Amazônia ao Brasil passou a ser vista como um processo civilizador, no qual a rodovia seria a linha de frente da expansão da civilização na região.
A propaganda do governo Médici apresentava a Amazônia como uma terra rica e promissora, com a Rodovia Transamazônica sendo vista como a solução para os problemas do Nordeste, especialmente a seca.
Após a grande seca de 1969-70, Médici visitou o Nordeste, prometendo mudanças e pedindo apoio para a região. O governo então promoveu a colonização da Amazônia, alegando que resolveria a falta de terras no Nordeste e a necessidade de ocupar a Amazônia.

A expressão “terra sem homens” refletia o medo de interesses internacionais na região. O governo usava “integrar para não entregar” para reforçar a soberania nacional.
O projeto, no entanto, não tinha consenso, nem dentro do regime. Esse embate ocorreu entre Rodrigo Octavio Jordão Ramos, militar e político, acreditava que a Amazônia deveria ser integrada para evitar controle estrangeiro, enquanto o general Olympio Mourão Filho alertava para os riscos de destruição predatória da floresta e a necessidade de um planejamento científico para a região.
A promessa de progresso e o planejamento do projeto
Planejada como parte do Programa de Integração Nacional (PIN), a Transamazônica deveria ligar o Nordeste ao Norte do país, atravessando a floresta amazônica e conectando as regiões isoladas.
O programa de colonização e construção das rodovias na Amazônia teve início com a construção imediata da Transamazônica e da Cuiabá-Santarém.
A Transamazônica foi planejada para ter 8.000 quilômetros de extensão, com início simultâneo em João Pessoa (PB) e Recife (PE), aproveitando estradas já existentes no Nordeste.

A estrada cruzaria importantes rodovias como a Belém-Brasília e seguiria por áreas da Amazônia, passando pelos rios Xingu e Tapajós até Humaitá (AM), no rio Madeira.
Outro trecho seria construído pelo Exército, de Humaitá até Cruzeiro do Sul (AC), enquanto a intenção original era estender a estrada até Pucalpa, no Peru, ligando o Atlântico ao Pacífico. Porém, o último trecho construído conectou Humaitá a Lábrea, totalizando 4.223 quilômetros.
Além de ser uma via de conexão, a Transamazônica fazia parte de um amplo projeto de colonização, que visava assentar 100 mil famílias nas margens da estrada e em vicinais.
O governo planejou fornecer infraestrutura completa para esses assentamentos, incluindo crédito, ferramentas, sementes, assistência técnica, e serviços públicos como escolas e saúde.
Em seu discurso, o governo militar de Médici evocava a migração para a Amazônia como solução para a seca no Nordeste, muitas vezes comparando esse movimento populacional ao êxodo bíblico.
Uma das justificativas para a construção da estrada era a exploração mineral nas regiões que a via atravessaria. Havia a promessa de riquezas como ferro na Serra dos Carajás, diamantes no rio Tocantins, ouro e estanho no Tapajós, cobre e chumbo no Xingu, além da exploração de calcários e outros minerais.
Entretanto, o planejamento falhou em vários aspectos, como a falta de estudos adequados sobre os impactos ambientais da obra e a ausência de estratégias de sustentabilidade.
A rodovia foi idealizada sem levar em conta as características geográficas da região, como o solo instável, as chuvas intensas e a grande biodiversidade que ela abrigava.
A execução da Rodovia Transamazônica e as dificuldades enfrentadas
A construção da Transamazônica não foi uma tarefa fácil. A obra enfrentou enormes desafios técnicos e ambientais. O solo amazônico, muito instável e com grandes áreas de alagamento, dificultava a pavimentação da estrada.
Além disso, o regime militar não tinha experiência prévia na construção de rodovias em terrenos tão difíceis, o que resultou em várias falhas no planejamento e atraso na execução da obra.
O impacto ambiental imediato foi devastador. A rodovia cortava vastas áreas de floresta tropical, onde a vegetação densa foi destruída para dar lugar à estrada.
Além disso, as comunidades locais, especialmente os povos indígenas, foram forçadas a se adaptar a um novo modelo de ocupação, o que envolveu o deslocamento forçado de muitas famílias e o desaparecimento de suas terras tradicionais.
O projeto de integração, inicialmente tão promissor, acabou gerando uma série de conflitos sociais e ambientais, com indígenas e ribeirinhos sendo os principais prejudicados pela chegada da rodovia.
A partir de 1974, o governo militar mudou sua abordagem para a ocupação da Transamazônica, priorizando grandes empresários em vez da agricultura familiar.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) passou a vender terras públicas para fomentar o desenvolvimento, concedendo lotes de até 72.000 hectares para pecuária, em vez dos 100 hectares destinados à agricultura familiar.
Isso gerou conflitos entre grandes latifundiários e pequenos agricultores, além de impactos ambientais negativos.
A escolha pela pecuária foi impulsionada pelo fácil acesso a terras públicas e pela estabilidade do setor, que garantia lucros.
Especialistas alertaram que essas políticas precisavam de um estudo aprofundado sobre os impactos socioambientais, mas o governo não buscou diálogo, agravando os problemas das populações tradicionais e criando novos conflitos.
O jornalista Alberto Tamer apontou que os impactos socioambientais foram minimizados e vistos como sacrifícios necessários para o desenvolvimento, com a Amazônia sendo tratada como um território a ser explorado economicamente.
Desmatamento e degradação ambiental durante a construção da Rodovia Transamazônica
Um dos maiores impactos causados pela Rodovia Transamazônica foi o desmatamento acelerado da Amazônia.
Saiba mais: Amazônia: biodiversidade, extensão e riquezas naturais
A rodovia foi uma porta de entrada para atividades ilegais que devastaram a região de forma descontrolada, e possibilitou a expansão de projetos agropecuários, que passaram a desmatar vastas áreas de floresta tropical para a plantação de soja e pastagens, resultando em um aumento da pressão sobre os recursos naturais da Amazônia.
O desmatamento foi tratado como um marco do desenvolvimento, sendo até celebrado como um esforço heroico para vencer a “selva” e promover o progresso na região.
A construção da rodovia causou danos ambientais graves, sendo um exemplo clássico de destruição provocada por rodovias em áreas florestais, como aponta o biólogo Filipe França.
O desmatamento inicial resultou na remoção de árvores e fragmentação da floresta, criando ilhas de vegetação isoladas, o que afetou ecossistemas, matou espécies e diminuiu a diversidade genética.
Com o tempo, estradas secundárias não oficiais aumentaram ainda mais a degradação, o que afetou diretamente a vida de populações locais, especialmente os povos indígenas.
Embora algumas áreas de floresta ainda existam, a biodiversidade foi severamente impactada.

O antropólogo Fred Lucio resume as consequências da Transamazônica, destacando a destruição de populações indígenas e transformando a região em um “lugar deplorável” com um “desenvolvimento fajuto”.
Mudanças no modo de vida das comunidades tradicionais
O governo não priorizou a proteção dos indígenas, e povos indígenas, como os Tenharim e Jiahui, viram seus territórios invadidos por colonos e exploradores.
A FUNAI, sob o comando de Oscar Jerônimo Bandeira de Mello, usou equipes volantes para lidar com os indígenas, o que resultou em contatos agressivos e muitas mortes, como no caso dos Panará, onde quase dois terços da população morreram.
A Transamazônica cortou terras de 29 etnias e abriu espaço para projetos agroindustriais, forçando o deslocamento das populações indígenas.
Veja também: O que é marco temporal de terras indígenas?
Com a rodovia, esses grupos enfrentaram conflitos com colonos e grileiros, além de perderem suas terras e fontes de subsistência.
A expansão da rodovia também causou o desaparecimento de suas práticas tradicionais, pois as terras foram convertidas para agropecuária e madeireiro.
Além disso, a rodovia facilitou a propagação de doenças tropicais como malária e febre amarela, devido à falta de infraestrutura de saúde nas novas cidades e à migração forçada.
Nesse contexto, a dificuldade de acesso ao atendimento médico agravou ainda mais a situação das comunidades deslocadas.
Problemas de saúde e infraestrutura precária
As cidades ao longo da rodovia, como Marabá e Altamira, enfrentaram problemas de infraestrutura precária devido à migração em massa. A urbanização foi desordenada, e a falta de serviços básicos, como saneamento, saúde e educação, piorou a situação.
A Operação Oswaldo Cruz foi criada para combater doenças, mas um relatório de 1973 do Ministério da Saúde, como aponta o trabalho A trajetória de uma estrada: análise de discurso de representações da rodovia Transamazônica em seus cinquenta anos de história (2021), indicou que a integração dos órgãos de saúde era desorganizada, o que resultou em mau uso dos recursos.
O foco do governo estava em medidas curativas, dificultando a implementação de programas preventivos, como a vacinação.
Embora o governo garantisse medidas preventivas, estudos, como o de Cardoso e Muller, mostraram que a exploração da Amazônia não trouxe melhorias significativas para a população, agravando a situação de saúde e criando um “regime de trocas de doenças”.
A rodovia também gerou exclusão e piora na vida das populações locais, como agricultores, ribeirinhos e indígenas.
Apesar disso, a rodovia contribuiu para avanços na pesquisa científica, como o estudo de arboviroses, gerando dados importantes sobre o controle de doenças, embora os impactos negativos para as populações locais persistissem.
Cidades isoladas e mal planejadas ao longo da Transamazônica
As cidades que surgiram ao longo da Transamazônica, como Marabá e Altamira, tornaram-se exemplos de urbanização mal planejada e isolamento social.
Essas cidades foram criadas com a promessa de infraestrutura e melhoria da qualidade de vida, mas, na realidade, enfrentaram sérios problemas de superlotação, falta de saneamento básico e dificuldade de integração com o restante do Brasil.
A expansão desordenada das áreas urbanas, sem o devido planejamento, fez com que essas cidades se tornassem espaços de marginalização e degradação ambiental.
A falta de serviços essenciais, como educação e saúde, resultou em grandes desigualdades sociais e na perda da qualidade de vida das populações que foram trazidas para a região.
Em um episódio marcante durante a pandemia de Covid-19, a enfermeira Rebeka e o motorista de ambulância Wadson enfrentaram grandes dificuldades na Transamazônica (BR-230) ao ter que caminhar cerca de dois quilômetros a pé, empurrando a maca de um paciente, devido à obstrução da estrada por filas de caminhões.
A estrada de terra, sem acostamento, foi interrompida por esses veículos, que estavam aguardando para descarregar na Estação de Transbordo de Cargas de Miritituba.
O evento ilustra as graves dificuldades médico-sanitárias que ainda afetam essas comunidades, cujas condições de infraestrutura continuam precárias, mesmo após décadas da construção da rodovia.
Similarmente à experiência da Transamazônica, a BR-163, inaugurada na década de 1970, conectou Cuiabá (MT) a Miritituba (PA) com a promessa de desenvolvimento, mas causou grandes impactos socioambientais.
A rodovia facilitou o avanço do desmatamento e a expansão da pecuária, além de intensificar atividades ilegais como o garimpo, afetando negativamente a biodiversidade da região.
Embora tenha sido vista como solução para o escoamento agrícola, a infraestrutura ainda é precária, e as comunidades locais enfrentam sérios problemas de acesso a serviços essenciais.
E você, já sabia sobre a história da Rodovia Transamazônica? Se ficou alguma dúvida, deixe nos comentários!
Se você gostou do conteúdo, conheça o Projeto Amazônia Urbana, uma iniciativa da Politize! em parceria com o Pulitzer Center. O projeto busca ampliar o olhar sobre os desafios das cidades amazônicas, promovendo conteúdos acessíveis e didáticos sobre urbanização, justiça climática e participação cidadã na região. Acompanhe essa jornada na nossa página de trilhas!
Referências
- DW – Transamazônica: 50 anos entre o ufanismo e o desastre ambiental
- InfoAmazonia – Povos afetados pela Transamazônica lutam na justiça por reparação ao Plano de Integração da Ditadura Militar
- Portal Amazônia – Relembre a história da Transamazônica: a utópica rodovia na Amazônia
- Periódicos UFPA – A Transamazônica e seus impactos: uma análise geopolítica e social
- SciELO – Manaus: A rodovia Transamazônica e seus impactos socioambientais
- CARVALHO, Erika Marques de. Operação Oswaldo Cruz: as políticas médico-sanitárias para a viabilização da rodovia Transamazônica (1970-1974). Cadernos do CEOM, Chapecó, v. 34, n. 55, p. 123-134, dez. 2021. DOI: 10.22562/2021.55.09.
- MATOS, Felipe; CALDARELLI, Carlos Eduardo. Os Arara, seu território tradicional e a irrupção do “milagre econômico brasileiro” em Altamira: a Transamazônica atravessa o baixo e médio Xingu (1967-1987). Cadernos do CEOM, Chapecó, v. 34, n. 55, p. 135-150, dez. 2021. DOI: 10.22562/2021.55.10.
SOUZA, César Martins de; BATISTA SOUZA, Maria Cândida de Oliveira. Entre esperanças e desafios: os nordestinos na colonização da Transamazônica na década de 1970. Cadernos do CEOM, Chapecó, v. 34, n. 55, p. 99-112, dez. 2021. DOI: 10.22562/2021.55.07. - SOUZA, Matilde de; ELIAS, Guillermina; NASCIMENTO, Victor. A trajetória de uma estrada: análise de discurso de representações da rodovia Transamazônica em seus cinquenta anos de história. Cadernos do CEOM, Chapecó, v. 34, n. 55, p. 23-38, dez. 2021. DOI: 10.22562/2021.55.02.