A Tese da Legítima Defesa da Honra: o que é e por que é inconstitucional?

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Fonte: https://pebmed.com.br/violencia-domestica-uma-pandemia-dentro-da-pandemia/

A tese da legítima defesa da honra foi recentemente declarada, pelo Supremo Tribunal Federal, inconstitucional. Mas você sabe o que era essa tese, como ela surgiu e como era comumente utilizada no Brasil? Vem que nesse texto o Politize! te explica o necessário para compreender o tema.

O cenário de violência contra mulheres no Brasil

Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, em uma análise de 1995 a 2015, foi constatado que houve o aumento da violência contra mulheres, especialmente entre 2005 e 2015.

Ainda, conforme o Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil, a taxa de homicídios de mulheres no país de 2006 e 2013 aumentou em 12,5%, chegando a 4,8 vítimas de homicídio em cada 100 mil mulheres. Somente em 2013, por exemplo, foram registrados 4.762 homicídios de mulheres, o equivalente a 13 assassinatos por dia, em média.

Partindo para dados mais recentes, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos divulgou que só no ano de 2020, os canais Disque 100 e Ligue 180 registraram 105.671 denúncias de violência contra a mulher (o equivalente a um registro a cada cinco minutos), sendo que 72% dessas denúncias se tratavam de violência doméstica e familiar e os outros 22% registros de violação de direitos civis e políticos, como tráfico de pessoas, cárcere privado e condição análoga à escravidão.

Além disso, segundo levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSO), foi verificado um aumento dos casos de violência contra a mulher em 2020 em comparação com o ano anterior (cerca de 22% a mais) e, de acordo com o referido estudo, o isolamento social no Brasil, decorrente da pandemia da Covid-19, contribuiu para essa majoração. Contudo, é certo que não se deve atribuir isso apenas ao isolamento, uma vez que, conforme os dados acima mencionados, a alta já era verificada antes da pandemia.

E, para completar, no dia 8 de março (data em que se comemora o Dia Internacional da Mulher) deste ano, o Ministério da Justiça e Segurança Pública divulgou o resultado da Operação Resguardo, maior ação de combate a crimes de violência contra a mulher do país, que teve duração de mais de dois meses. A partir da Operação se soube que, desde 1° de janeiro, mais de 160 mil vítimas foram atendidas, cerca de 8,5 mil pessoas foram presas, 45 mil denúncias foram apuradas e aproximadamente 56 mil inquéritos foram instaurados em todos os estados e no Distrito Federal.

E o que todas essas informações denotam? Que, em que pese o desenvolvimento de políticas públicas e os avanços legislativos e institucionais visando o enfrentamento à violência contra as mulheres, essa questão continua relevante no contexto nacional.

Mas como isso tem relação com a tese da legítima defesa da honra?

Pois bem. É fato que a sociedade acaba por moldar várias esferas da vida, incluindo o Direito, já que este pode ser definido como uma ciência social que acompanha a sociedade.

E, como reflexo do cenário acima exposto, no mundo jurídico brasileiro havia uma tese que era comumente utilizada em processos que tratavam de casos de violência contra a mulher/feminicídio e ocasionava a diminuição de pena ou até mesmo a absolvição do réu pelos jurados, e esta tese era a da legítima defesa da honra.

E o que era a tese da legítima defesa da honra e como ela era utilizada?

A tese “legítima defesa da honra” era um recurso argumentativo utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para justificar o comportamento do réu.

A justificativa, a partir da tese, era no sentido de que era aceitável o comportamento do réu de assassinar ou agredir sua parceira (vítima) caso ela cometesse adultério, pois esta teria ferido sua honra, ou seja, era uma forma de o agressor atribuir o fator motivador de seu comportamento descontrolado e criminoso ao comportamento da vítima, culpando-a pelo que ele mesmo cometeu, imputando à mulher a causa de sua própria morte ou lesão.

Por isso, considerando o cenário acima mencionado do nosso país e os conselhos de sentença (nome dado ao conjunto de jurados que compõem o Tribunal do Júri, para o julgamento de crimes intencionais contra a vida) de antigamente que eram formados, em sua maioria, por homens (pois as mulheres donas de casa, pelo que previa a legislação, podiam ser dispensadas), é possível entender como a tese foi aceita por muito tempo.

A origem da tese da legítima defesa da honra – isso estava mesmo previsto em lei?

A referida tese possui raízes no Brasil Colônia, quando existia a tradição da honorabilidade, sendo a honra masculina um bem jurídico protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro da época.

O título XXXVIII, do Livro V, das Ordenações Filipinas concedia ao marido o direito de matar sua esposa, se flagrada em adultério, assim agindo para garantir a manutenção de sua “honra”. Até que o primeiro Código Criminal Brasileiro, promulgado em 1830, retirou da legislação essa previsão.

Contudo, em 1890, a codificação penal posterior deixou de considerar crime quando se tratasse de homicídio cometido “sob um estado de total perturbação dos sentidos e da inteligência”, e, conforme o professor Cleber Masson, “Com base neste dispositivo legal, os passionais eram comumente absolvidos, sob o pretexto, de que, ao encontrarem o cônjuge em flagrante adultério, ou movidos por elevado ciúme, restavam privados da inteligência e dos sentidos.”.

Isso significa que, com base no referido dispositivo da lei, era justificável o assassinato de mulheres que estavam em flagrante adultério ou das quais simplesmente seus parceiros sentiam ciúmes, já que tal cenário os guiava para um estado de total perturbação dos sentidos. Assim, estes não eram devidamente responsabilizados pelo que cometiam, pois sempre havia uma justificativa para os eximir das responsabilidades.

Em outras palavras, a culpa, na maioria das vezes, ainda recaía sobre a mulher.

Em sequência, na década de 1940, a norma penal (atual Código Penal) eliminou a excludente relacionada à “perturbação dos sentidos e da inteligência”, com o entendimento de que: i) a traição está relacionada ao contexto de relações amorosas e tanto homens quanto mulheres estão sujeitos a praticá-la ou sofrê-la; ii) desvalor ou censura ao ato de traição é restrito aos âmbitos ético e moral; e iii) não existe o direito subjetivo de agir com violência contra uma pessoa que traiu.

Código Penal

Art. 28. Não excluem a imputabilidade penal:

I – a emoção ou a paixão;

(…).

Todavia, não foi um avanço significativo. Isso porque, apesar da mudança na legislação, o pensamento e os valores da sociedade naquela época permaneciam os mesmos, sendo que a igualdade entre gêneros só veio ganhar lugar em nosso Direito, efetivamente, com a Constituição Federal de 1988.

Isso significa que isso é somente o que foi positivado, porque na realidade ainda havia o que evoluir, uma vez que existia espaço para a tese da legítima defesa da honra, por exemplo. Tal tese, mesmo não mais prevista na legislação, continuou sendo utilizada por anos como um recurso argumentativo para justificar crimes em casos de traição, contribuindo assim para o crescimento e fortalecimento da violência contra a mulher.

Mas não existe a possibilidade de legítima defesa em nosso Código Penal?

Sim, existe! Mas a tese da legítima defesa da honra nada se relaciona com essa legítima defesa genérica amparada no direito brasileiro, que abrange uma situação excepcional em que se admite o afastamento da aplicação da lei penal se preenchidos alguns requisitos, veja:

Código Penal

Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.

Enquanto uma se justifica pela defesa da honra diante de uma traição (ou suposta traição) por parte da companheira, justificando-se, ainda, uma “defesa”, ainda que não haja “agressão injusta” atual ou iminente (por exemplo, era justificável que se executasse a companheira sob o fundamento de que ocorreu uma suposta traição meses atrás); a outra se justifica somente pela defesa da própria vida, por exemplo, ou de outrem, diante de uma real agressão injusta que seja atual ou iminente, e desde que se utilize moderadamente os meios necessários para essa defesa, caso contrário, poderá responder o indivíduo pelo excesso.

Diante disso, é possível constatar que a “legítima defesa da honra”, na realidade, não configura tecnicamente a “legítima defesa” atualmente prevista em nosso Código Penal.

E como o juiz aceitava tal tese se ela não estava prevista em lei?

Primeiro, embora não estivesse mais prevista em lei, também não estava proibida sua utilização. Dessa forma, os advogados de defesa criaram essa argumentação retórica, que passou a ser aceita pelos jurados no plenário do Tribunal do Júri, visando a absolvição de seus clientes ou mesmo uma pena mais branda do que a prevista.

Segundo, dada as circunstâncias e natureza do crime de feminicídio (maioria esmagadora dos casos em que era utilizada a tese), os casos são julgados pelo tribunal do júri e, nesse sistema, pode-se afirmar que o juiz tem dois papéis, quais sejam: i) o papel inicial de apenas averiguar e decidir se há ou não indícios de autoria e prova da materialidade (isto é, se há, de fato, indícios de que quem está sendo acusado cometeu o crime e provas de que o crime ocorreu, em suma, elementos que demonstrem a possibilidade de ter sido o acusado o autor de determinado crime) para que seja permitido o julgamento definitivo do caso pelo tribunal do júri; e ii) o papel de presidir o tribunal do júri, mas apenas para acompanhar e manter a ordem e o devido processo legal, sem poder decisório sobre o caso em si, o qual ficará a cargo dos jurados.

Destaca-se que, nessa primeira fase, o juiz não pode se aprofundar na análise do caso, sob pena de incorrer em eloquência acusatória, uma nulidade em nosso processo penal, que, em termos simples, significa um excesso cometido pelo juiz, ou seja, ele foi além do que a lei permite fazer, invadiu a competência dos jurados e, consequentemente, influiu na convicção desses, uma vez que eles terão conhecimento da decisão da primeira fase.

Desse modo, voltando ao cerne da questão, o juiz não tinha que aceitar, embora rechaçasse a argumentação e o possível acolhimento desta para eventual absolvição, e, sendo o conselho de sentença (jurados) composto, geralmente, por pessoas leigas e sem conhecimento técnico e jurídico, a tese era acolhida, já que em boa parte das vezes, tais pessoas eram guiadas por crenças pessoais, preconceitos ou pela emoção.

Soma-se a isso o fato de o conselho de sentença normalmente ser formado, antigamente, em sua totalidade ou majoritariamente por homens. Isso porque, como citado acima, as mulheres donas de casa, pelo que previa a legislação, podiam ser dispensadas de serem juradas.

Caso célere no qual foi usada a tese da legítima defesa da honra

Um caso em que houve a aplicação da referida tese e teve grande repercussão foi o caso do assassinato da socialite brasileira Ângela Diniz, a qual foi vítima de alguns disparos efetuados por seu companheiro, Raul Fernando de Amaral Street, ou “Doca Street”, em 1976, no Rio de Janeiro.

No primeiro julgamento, a defesa foi pautada na legítima defesa da honra e o advogado do réu esmiuçou a vida da vítima, mostrando-a como pessoa promíscua – colocando, assim, o réu como vítima e a real vítima Ângela como culpada pelo próprio homicídio que sofreu.

Na época, a defesa obteve bastante êxito e a tese da defesa, de legítima defesa da honra, foi acatada pelo júri. Assim, o réu, ao final, foi condenado a dois anos de detenção e com direito a suspensão da pena1, sendo, portanto, imediatamente solto.

Entretanto, com grandes revoltas e manifestações dos movimentos feministas, com várias mulheres que se sentiam injustiçadas e lutavam pela memória de Ângela, sob o lema “Quem Ama Não Mata”, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro anulou o julgamento e, em 1981, o caso foi submetido a um novo julgamento/júri. No novo julgamento, Doca Street foi condenado a 15 anos de reclusão por homicídio doloso qualificado, cumprindo três anos em regime fechado, dois no semi-aberto e, no restante, em liberdade, pois conseguiu liberdade condicional2.

Fonte: https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/

O evento se tornou um marco na história do feminismo no Brasil e símbolo de rechaço à tese da legítima defesa da honra.

Como indicação, segue abaixo o podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, que aborda toda a história do caso, incluindo o comportamento e a cultura da época, o crime e o julgamento etc.

E o que decidiu o Supremo Tribunal Federal sobre a Tese?

Fonte: https://pleno.news/brasil/stf-extingue-tese-da-legitima-defesa-da-honra-em-feminicidio.html

Em 06 de janeiro de 2021, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental3 (ADPF nº 779) pedindo para que o Supremo Tribunal Federal conferisse interpretação conforme à Constituição aos artigos 23, II, e 25 do Código Penal e o artigo 65 do Código de Processo Penal, e declarasse a impossibilidade jurídica de invocação da tese de legítima defesa da honra. O partido político alegou ainda que a mesma não é compatível com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero (artigos 1º, III, 3º, IV, e 5º, LIV, da Constituição Federal).

Assim, na data de 15 de março deste ano, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, confirmou uma liminar já concedida pelo Ministro Dias Toffoli em fevereiro, no âmbito da ADPF nº. 779, e decidiu que:

a) a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da proteção à vida e da igualdade de gênero;

b) deve ser conferida interpretação conforme à Constituição ao art. 23, II e 25, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa;

c) a defesa, a acusação, a autoridade policial e o juízo são proibidos de utilizar, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual e processual penais, bem como durante julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento;

d) em que pese o art. 483, III, § 2º, do Código de Processo Penal prever a possibilidade de, no Tribunal do Júri, ocorrer a absolvição genérica ou por clemência, o acusado de feminicídio não pode ser absolvido, na forma do referido artigo, com base na tese da “legítima defesa da honra”;

e) em regra, o Ministério Público não pode recorrer de decisão absolutória do tribunal do júri baseada em quesito de absolvição genérico (art. 483, III, c/c § 2º) alegando que a decisão foi manifestamente contrária à prova dos autos (art. 593, III, “d”, CPP), mas, se a defesa lançar mão, direta ou indiretamente, da tese da legítima defesa da honra no plenário do júri e o réu for absolvido, será possível que o Ministério Público interponha apelação, mas não com base no art. 593, III, “d”, do CPP (decisão manifestamente contrária à prova dos autos) e sim com fundamento na nulidade do julgamento (art. 593, III, “a”, do CPP).

Para os ministros do Supremo Tribunal Federal, tal tese nos crimes de feminicídio seria um ato inconstitucional, odioso, desumano e cruel, destacando o ministro Dias Toffoli que “A legítima defesa da honra é estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida, e totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir para a naturalização e perpetuação da violência doméstica e do feminicídio no país”.

1. Previsto no Código Penal, a suspensão condicional da execução da pena (sursis) é um instituto de política criminal que visa evitar o recolhimento à prisão do condenado à pena não superior a 2 anos, com a referida suspensão da pena por até 4 anos, desde que cumpridos(as) determinados(as) requisitos legais e condições estabelecidas pelo juiz, durante tempo por ele determinado, sendo que, após o cumprimento das condições, se não revogada a concessão, considera-se extinta a pena privativa de liberdade. Ou seja, com o fim do prazo de suspensão e mediante o cumprimento das condições o condenado obtém a extinção de sua pena.
2. Previsto da Lei de Execução Penal e também no Código Penal, o livramento condicional é o benefício que pode ser concedido a um condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 anos, desde que preenchidos alguns requisitos legais e condições estabelecidas pelo juiz, que permite o cumprimento da pena deste em liberdade.
3. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é uma ação por meio da qual se pode realizar um controle de constitucionalidade de normas que desrespeitam aos preceitos fundamentais da Constituição Federal, visando evitar ou reparar lesão a preceito fundamental. Sua regulamentação pode ser encontrada em nossa Constituição e na Lei nº 9.882/99. 

REFERÊNCIAS

IPEA: violência contra mulher

Senado: indicadores

Governo Federal: canais registram mais de 105 mil denúncias de violência contra mulher em 2020

G1 Globo: Brasil teve 105 mil denúncias de violência contra mulher

CNN Brasil: violência contra mulher no Brasil

Canal Ciências Criminais: afinal, o que é a legítima defesa da honra

Constituição Federal

Radio Novelo: praia dos ossos


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Graduanda em Direito, entusiasta da História e da Ciência Política, multiplicadora e redatora voluntária do Politize!.

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