Entendendo a estrutura das leis

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Interpretar uma lei não é o mesmo que interpretar um texto de jornal, de revista ou um romance. O ideal seria que a estrutura da lei fosse algo intuitivo, que não dependesse de qualquer conhecimento prévio. Afinal, a lei se aplica a todos e deve ser conhecida por todos, não é verdade? Inclusive, a princípio, ninguém pode alegar que desconhece a lei como desculpa para não cumpri-la.

A realidade, entretanto, não costuma ser esta, seja por conta da quantidade de leis; pela complexidade dos temas tratados nelas; pela necessidade de que elas se relacionem umas com as outras de uma forma sistemática; pela baixa qualidade de determinados textos legais elaborados por nossos legisladores; ou pelos vícios de linguagem dos advogados e juízes. O fato é que mesmo os juristas – que são as pessoas que dedicam a vida à interpretação das leis – não chegam a um consenso quanto a alguns dos aspectos mais importantes desse processo de interpretação.

O primeiro passo para você entender melhor um texto legal é compreender a estrutura formal de uma lei – e é essa estrutura que vamos explicar aqui. A lei não é escrita em texto corrido, como uma redação comum em prosa, e o formato que é utilizado nos textos legais tem um significado maior que a mera organização visual.

Não são comuns os textos que tratem desse assunto, porque o formato da lei é um formato tradicional, um costume que passa quase que por osmose entre aqueles que lidam de forma mais cotidiana com textos legais. Se você frequentar uma faculdade de direito, é bem provável que em nenhum momento essa questão seja formalmente tratada em sala de aula, como se todos já estivessem obrigados a conhecer esse assunto desde sempre.

Seria interessante que, para entender melhor o que estamos tratando neste texto e se familiarizar com os textos legais, você confira algumas leis e identifique nelas cada um dos elementos que forem descritos a seguir.

Sugerimos as seguintes: a Constituição, o Código Civil e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Você pode acompanhar alguma delas enquanto lê este texto.

Primeiro: quem fez a lei?

A primeira coisa a ser identificada numa lei é a sua entidade de origem. Existem leis federais (e nacionais, mas esta diferenciação fica para um próximo texto), estaduais (e distritais, no caso de Brasília) e municipais. Essa identificação vai indicar qual o espaço geográfico de incidência daquela lei. Uma lei federal, por exemplo, como o Código Civil, inicia com o brasão da República e com os dizeres “Presidência da República”, o que quer dizer que se aplica em todo o território nacional.

Em seguida, encontramos o número de referência daquela lei, bem como a data em que foi criada. Além disso, algumas leis são denominadas complementares, enquanto outras não (o porquê desta diferença você confere neste texto). Sabendo se a lei é federal, estadual ou municipal, se é de lei ordinária (identificada simplesmente como “lei”) ou complementar, bem como seu número e data de criação, podemos identificá-la sem chances de confusão. Por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal é a Lei Complementar Federal n° 101, criada em 4 de maio de 2000. Essa descrição é como uma impressão digital, inconfundível.

Ementa: a descrição da lei

Passada a identificação, as leis costumam ter uma descrição recuada à direita, chamada de ementa. Trata-se do resumo do que é tratado na lei. Se você estiver fazendo uma pesquisa a fundo, entretanto, não se apegue tanto ao resumo da ementa. Especialmente porque, na maioria dos casos, ela termina com a expressão “e dá outras providências”. Isso é uma verdadeira técnica de camuflagem normativa. É possível encontrar leis que ao final escondem alguma surpresa importante (que são essas tais “outras providências”) e que são colocadas pelo legislador assim justamente para não chamar a atenção da opinião pública. Isso acontece especialmente nas medidas provisórias (que ainda não são leis, mas têm a mesma estrutura e força das leis). Um exemplo de ementa é o da Lei de Responsabilidade Fiscal: “Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade da gestão fiscal e dá outras providências”.

Preâmbulo

A ementa é seguida do preâmbulo, que é, basicamente, um parágrafo introdutório que representa o “espírito” em que foi criada uma lei. A utilização do preâmbulo não é muito comum na técnica legislativa empregada no Brasil. Seu melhor exemplo é o preâmbulo da Constituição, que diz:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Enfim, o conteúdo

Em seguida, nos deparamos com o conteúdo propriamente dito da lei. Esse conteúdo pode estar organizado de forma temática em títulos, capítulos e seções, seguidos de números romanos (I, II, III, IV, etc.). Isso nem sempre acontece, apenas no caso de leis mais complexas e robustas, como os Códigos (civil, tributário, comercial, etc.). Trata-se apenas de um agrupamento temático, como os capítulos de um livro.

“Título” é um agrupamento mais amplo, que se divide em “capítulos”, que por sua vez são divididos em “seções”. Cada um deles tem uma denominação específica, que indicará a matéria de que trata. Por exemplo, o “Título I” da Constituição trata “Dos Princípios Fundamentais”.

Artigos

Muito bem. Essas subdivisões da lei estarão compostas por artigos. Os artigos estão numerados de forma sequencial em algarismos arábicos (1, 2, 3, 4 etc).

Entre o primeiro e o nono artigo, a numeração costuma ser ordinal (1°, 2°, 3°, 4° etc). Por isso, se você disser “este direito está no artigo cinco da Constituição”, fica evidente que você não conhece a linguagem utilizada pelos operadores (ou conhecedores) das leis. Se você é um estudante de direito, estará cometendo uma gafe. Do artigo 10 em diante, a numeração é cardinal e você pode dizer, sem medo, “os direitos de nacionalidade estão previstos no artigo doze da Constituição”. Neste caso, evite usar “décimo segundo”.

Os artigos podem ter uma forma simples ou podem, também, conter subdivisões. Quando há subdivisões, chamamos a parte inicial do artigo (aquela que acompanha o número) de caput, que significa cabeça em latim. É, portanto, a cabeça do artigo. Ela é considerada sua parte mais importante e serve para a interpretação das demais subdivisões do artigo. A princípio, todas as partes do artigo devem ser interpretadas de modo que sejam compatíveis com o caput.

Parágrafos, incisos e alíneas

Além do caput, as outras partes dos artigos são parágrafos, incisos e alíneas. Se o artigo dispuser de apenas um parágrafo ele será denominado “Parágrafo único”. Se existirem múltiplos parágrafos, eles serão designados pelo símbolo “§” seguido da respectiva numeração.

Na numeração dos parágrafos, são utilizados algarismos arábicos (1, 2, 3, 4, etc.) e vale a regra dos números ordinais e cardinais, como nos artigos (apesar de que dificilmente um artigo tem mais do que nove parágrafos). Então, quando vir numa lei ou num texto “§1°”, você deve ler “parágrafo primeiro” e já sabe que existirão outros – senão ele seria um “Parágrafo único”. Normalmente, os parágrafos destacam aspectos importantes de um artigo que não estão diretamente explicitados em sua cabeça. Também podem trazer alguma exceção à aplicação da regra do artigo.

Os incisos, por outro lado, estão simbolizados por algarismos romanos e podem constar logo após a cabeça do artigo ou após o texto principal do parágrafo. Eles costumam ser utilizados para descrever as hipóteses em que a regra que está na cabeça deve ser aplicada. A cabeça do artigo ou o parágrafo descreve a regra e termina com o sinal “:”, ou “nos casos de:”, ou “nas seguintes formas:”. Essa descrição feita nos incisos pode ser exaustiva (contendo todas as hipóteses possíveis) ou pode simplesmente dar exemplos de hipóteses em que a regra é aplicável.

As alíneas, por sua vez, estão simbolizadas por letras minúsculas (“a”, “b”, “c”, “d” etc) e são subdivisões dos incisos. Normalmente cumprem a mesma função dos incisos, detalhando hipóteses de aplicação de uma regra prevista logo anteriormente.

E pra encerrar, a assinatura!

Após todos os artigos, parágrafos, incisos e alíneas que compõem uma lei, podemos encontrar a assinatura do chefe do Poder Executivo (Presidente da República, Governador de Estado ou Prefeito Municipal). Essa assinatura é a sanção do chefe do Poder Executivo. O Executivo deve avaliar o texto da lei antes que ela seja aplicável e pode determinar vetos, suprimindo determinadas partes do projeto de lei. Mas a palavra final sobre o texto da lei será sempre do Legislativo, que pode derrubar os vetos apresentados pelo Executivo. Essa é uma das formas de controle mútuo entre os poderes.

Para que você entenda ainda melhor, preparamos essa demonstração auto-explicativa sobre a estrutura de uma lei:


Que tal baixar esse infográfico em alta resolução?

Com essas informações, você conseguirá ler as leis (e textos normativos em geral) com um pouco mais de intimidade e, assim, será capaz de entender melhor seus direitos e deveres e exercer a cidadania de forma mais ativa. Essas instruções podem ser básicas, mas permitem que você seja capaz de elaborar projetos de lei e apresentá-los a seus representantes mais próximos (vereadores, deputados estaduais e federais), para que sejam levados ao Legislativo respectivo. Se aprovados, esses projetos virarão leis que criarão novos direitos e estabelecerão novas políticas públicas.

Alguns esclarecimentos complementares. As instruções que demos aqui valem também para a identificação da estrutura formal de decretos, medidas provisórias e outros textos normativos (mas não confunda, no seu conteúdo eles são diferentes das leis!). Além disso, você deve ter em conta que a estrutura formal das leis é típica de cada país. Ou seja, se você consultar uma lei da Alemanha, as instruções deste texto podem servir apenas como uma referência comparativa, mas você não encontrará uma correspondência exata.

E agora, ficou mais fácil entender o jargão das leis? Esperamos que este post ajude você a encarar com mais facilidade os textos jurídicos!

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4 comentários em “Entendendo a estrutura das leis”

  1. JOSÉ ALBERTO SOARES

    Que assunto rico e excelentemente muito bem explicado. Aprendi muito. Eliminei uma porção de dúvidas. Parabéns por essa matéria tão bem detalhada. Muito obrigado.

  2. TIBURCIO DANTAS

    Texto conciso e objetivo. Esclarecedor.
    Matéria de alta qualidade. Tenho a impressão de que o caro doutor não terá dificuldades para manter a primazia.
    Parabéns.

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Glassman, Guilhermo; Glassman, Guillermo. Entendendo a estrutura das leis. Politize!, 1 de fevereiro, 2017
Disponível em: https://www.politize.com.br/estrutura-das-leis-entenda/.
Acesso em: 11 de out, 2024.

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