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O lawfare na América Latina: o direito como arma de guerra

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“A guerra é a continuação da política por outros meios” (Clausewitz). Você provavelmente já ouviu essa frase ou, se não ouviu, deve concordar com a afirmação de que a guerra e a política estão intimamente relacionadas. Em outro texto, nós trouxemos a conceituação de lawfare, palavra que ganhou expressão no meio militar estadunidense, mas que se estendeu às discussões políticas contemporâneas. De forma simplista, lawfare significa o uso do direito como arma de guerra, normalmente em nome de um discurso de segurança nacional e proteção do Estado contra o inimigo. 

Neste texto, entenderemos o viés político que o termo carrega e o porquê da América Latina ser considerada terreno fértil para sua aplicação. Para isso, usaremos a versão inversa do bordão: a política é a guerra por outros meios. Afinal, os últimos anos mostraram que muitos conflitos armados foram substituídos por conflitos políticos igualmente mortais – mesmo em países democráticos, como os latinoamericanos. 

Por que lawfare é um conceito político?

O conceito de lawfare é explicado pelas mais diversas perspectivas. Dunlap, militar estadunidense, considerado o “pai” do termo, usava do lawfare com o fim de criticar o discurso do Direito Internacional dos Direitos Humanos que o descontentava, pois deslegitimava as intervenções militares estadunidenses e israelenses. Ele dizia, por exemplo, que o lawfare no contexto afegão assumiu a forma de manipulação de vítimas civis para fazer parecer com que os EUA violavam normas legais e éticas. 

Na contracorrente ao pensamento militar estadunidense, o casal Comaroff escreveu sobre o uso dos instrumentos do direito por grupos poderosos para se alcançar fins políticos. Há relatos, por exemplo, que ainda no século XVIII os povos de língua tsawana se referiam aos acessórios jurídicos dos ingleses – tribunais, papéis e contratos – como o modo inglês de guerrear. Assim, pode-se dizer que o instrumento legal foi usado coercitivamente para a conquista e controle dos indígenas. 

Uma terceira perspectiva é a do lawfare insurgente, quando um grupo minorizado utiliza dos instrumentos jurídicos contra os grupos poderosos em busca de transformações sociais. Siri Gloppen enxerga, por exemplo, indivíduos da sociedade civil que atuam “de baixo para cima”, utilizando do lawfare principalmente em grandes julgamentos. 

Desse modo, é impossível de se reconhecer uma única denotação para lawfare, pois o fenômeno se relaciona muito com o contexto em que se insere e quem o pronuncia. Há, portanto, variações na caracterização conceitual, com incidência dos mais diversos “olhares”. Definir o que é ou não lawfare depende da posição política em que se está. 

Todavia, sinteticamente, o conceito que hoje é mais utilizado, e que a partir de agora se adotará, é o da instrumentalização do direito voltada a fins estratégicos políticos que oferecem perigo às bases democráticas, como adiante se explicará. 

O uso da mídia no lawfare

Parte do cerne do fenômeno do lawfare é ocupado pela influência midiática. A grande mídia busca homogeneizar a opinião pública e traçar golpes a um inimigo, dilacerando qualquer imagem positiva que ele possua.

Aqui surge o que se denomina “pós-verdade”, quando crenças pessoais sobrepõem-se a fatos objetivos. A verdade perde a sua importância e dá lugar às “fake news”. Eugenio Raúl Zaffaroni, jurista argentino e juiz da Corte Interamericana de Justiça, comenta que “as notícias falsas criam realidade, porque a comunicação é um campo de luta onde cada um trata de criar a realidade conforme seus interesses”.

Não há dúvidas de que informações falsas sempre circularam, mas os últimos anos foram marcados por patamares jamais alcançados. Uma pesquisa realizada pelo Laboratório de Mídia do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e publicada na Revista Science, a partir da análise de rumores publicados no Twitter entre 2006 e 2017, concluiu que informações falsas dissipam-se seis vezes mais do que as verdadeiras. 

Do mesmo modo, uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas sobre o processo eleitoral brasileiro de 2018 evidenciou a proliferação de informações falsas:

“Com este tipo de manipulação, os robôs criam a falsa sensação de amplo apoio político a certa proposta, ideia ou figura pública, modificam o rumo de políticas públicas, interferem no mercado de ações, disseminam rumores, notícias falsas e teorias conspiratórias, geram desinformação e poluição de conteúdo, além de atrair usuários para links maliciosos que roubam dados pessoais, entre outros riscos.”

Portanto, na lógica do lawfare, para chegar ao poder, ou se manter nele, usa-se a mídia e a divulgação por redes sociais como principal instrumento. Para tal, aproveita-se de certa vulnerabilidade política da população, que anseia por mudanças e para que suas crenças sejam saciadas, a fim de que a informação seja ainda mais espalhada. Utiliza-se também de suposta legitimidade da mídia para que o inimigo presumidamente culpado seja perseguido. 

Assim, além do julgamento jurídico – que às vezes sequer ocorre – o sujeito submete-se ao julgamento midiático e ao julgamento pela opinião pública. Da mesma forma, é feita a representação de fotos horrendas, falas mal ditas e vestimentas inadequadas, capazes de gerarem repulsa contra o inimigo. Portanto, a mídia é o canal pelo qual o lawfare se infiltra para combater o inimigo.

Sobre o tema, Zanin, Martins e Valim explicam:

“Diante desse cenário, é preciso ter presente que grandes conglomerados de mídia podem ter interesses econômicos na deslegitimação ou destruição de um inimigo, seja ele comercial ou político. Assim, quando se fala de mídia como auxiliar da guerra jurídica, ou lawfare, esse aspecto também deve ser levado em consideração no conjunto da análise”

Vale lembrar que em democracias constitucionais verdadeiras o inimigo sequer deveria existir, pois não haveria distinção na atribuição de direitos às pessoas. É este o argumento levantado por Raul Zaffaroni, que enxerga o lawfare como a introdução da dinâmica de guerra no Estado de Direito. O pensador argentino, ao traçar a sua teoria da criminologia crítica, entende que o Direito sempre apartou os indivíduos reconhecidos como “hostis”, negando-lhes a condição humana.

Nesse sentido, na prática do lawfare, direciona-se todas as armas a um inimigo, que, com o auxílio da mídia, passa de inimigo de um grupo de pessoas para inimigo comum. Como escreve Andrew Korybko, analista político:

“Ela [guerra indireta] permite que um oponente derrote o adversário sem enfrentá-lo diretamente, economizando assim os recursos que seriam despendidos em um confronto direto”.

Ou seja, o êxito ocorre não mais pela destruição das unidades inimigas – aos moldes da guerra tradicional – mas sim com golpes indiretos que abalam e desequilibram o inimigo, até que seja visualizada a oportunidade de um ataque decisivo.

Lawfare na América Latina

Não é novidade que na América Latina os instrumentos de colonização deixaram cicatrizes que ardem há mais de quinhentos anos. A história colonizatória da região deixou um terreno fértil para o desenvolvimento de diversos processos não democráticos de poder. Um exemplo é o desdobramento dos inúmeros golpes militares, cujos efeitos podem ser sentidos na atualidade. 

Resquícios das ditaduras surgem como Estado de exceção, que indistingue o democrático do autoritário. Tais espaços de autoritarismo e de não-democracia – vácuos de Direito e de direitos – coexistem com a sociedade democrática. Como explica Pedro Serrano:

“(…) no interior das democracias ocidentais contemporâneas convive o Estado de exceção como uma permanência biopolítica, que tende a tratar amplos contingentes da população como ‘vida nua’, ou seja, viventes desprovidos da proteção política, jurídica e até teológica, reduzidos à mera condição da vida biológica.”

Esses espaços de autoritarismo, contudo, podem ser de maior ou menor grau, dependendo do nível de desenvolvimento da democracia no local analisado. Países periféricos, a exemplo dos da América Latina, são alvos mais potentes para que se instale a exceção permanente. 

Nas veias abertas da América Latina, segundo Zaffaroni, correm dois modelos antagônicos: um da democracia formal constitucional, que se aplica aos poderosos e controladores do sistema; e o da exceção, do Estado de polícia, que suspende os direitos dos inimigos

Assim, em democracias jovens e pouco consolidadas seria mais fácil de operar as manobras da lei das instituições, sobretudo visando fins políticos e econômicos privados. Ou seja, esse cenário seria mais vulnerável à instauração e manutenção de regimes de exceção apoiados no lawfare. Isso significa que o Direito poderia passar a ser usado para legitimar práticas antidemocráticas e autoritárias mais facilmente. 

O lawfare latino-americano é caracterizado por negociações processuais penais, sobretudo acordos de delação premiada e prisões preventivas. Como é possível perceber pelos dados, a realidade latino-americana é de prisão de processados, não de condenados. O último relatório sobre a população prisional realizado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) apontou que 36% da população carcerária da América Latina ainda não foi sentenciada, o que significa falha no acesso à justiça. Elís Carranza ressalta os dados da Bolívia (79% da população penitenciária não sentenciada) e do Paraguai (71%).

A consequência disso são prisões superlotadas, que violam diariamente direitos dos indivíduos. Carranza aponta a situação penitenciária gravíssima vivida pelos países da América Latina e Caribe: 23 dos 32 países estavam com as celas superlotadas no período pesquisado, com atenção para El Salvador (298 presos para cada 100 vagas), Guatemala (190 presos para cada 100 vagas), Panamá (180 presos para cada 100 vagas), Nicarágua (179 presos para cada 100 vagas), República Dominicana (178 presos a cada 100 vagas) e Brasil (168 presos para cada 100 vagas).

É nesse sentido, portanto, que o lawfare é encarado como uma ameaça real às democracias latino-americanas, como também à construção histórica da democracia mundial. Para Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, por exemplo, o lawfare coloca a democracia em grave perigo de erosão e, por isso, deve ser combatido, a fim de que se “reafirmem os pilares do Estado democrático de Direito”.

REFERÊNCIAS

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminología: aproximación desde un margen

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal

TIEFENBRUN, Susan. Semiotic Definition of Lawfare

THE INTERCEPT BRASIL. Lawfare? O Judiciário Influenciando Eleições pela América Latina

SISTEMA DE JUSTIÇA E ESTADO DE EXCEÇÃO – PUCSP. Live-palestra: Neoliberalismo, Exceção e Lawfare – o direito como estratégia de guerra política

ROMANO, Silvina M. Lawfare: guerra judicial y neoliberalismo en América Latina

SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo Líquido e as Novas Modalidades de Prática de Exceção no Século XXI

SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: Breve ensaio sobre jurisdição e exceção

NUESTRAMERICA AUDIOVISUAL. La Guerra Judicial en Latinoamerica – Lawfare In the Backyard

MATOS, Erica do Amaral. Lawfare: uma introdução ao tema e uma aproximação à realidade brasileira

MARTINS, Cristiano Zanin; MARTINS, Valeska Teixeira Zanin; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução

KORYBKO, Andrew. Guerras Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes

GLOPPEN, Siri. Conceptualizing Lawfare: A Tipology & Theorical Framework

DUNLAP JR., Charles J. Law and Military Interventions: Preserving Humanitarian Values in 21st Century Conflicts 

CARRANZA, Elías. Situación penitenciaria en Amércia Latina y el Caribe

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Conteúdo escrito por:
Graduada em Direito pela UFPR, estudiosa dos Direitos Humanos e do Direito Internacional dos Refugiados. Acredita no acesso à informação crítica como forma de revolução.

O lawfare na América Latina: o direito como arma de guerra

23 abr. 2024

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