Pela Constituição Federal brasileira, o meio ambiente é classificado como um bem de uso comum e essencial à qualidade de vida, sendo assegurado a todos o direito a um ecossistema ecologicamente equilibrado. Ademais, é um dever do Estado e da coletividade defende-lo e resguarda-lo.
Nos últimos anos, tem sido noticiado um aumento significativo de degradação ambiental no coração da biodiversidade mundial – a Bacia Amazônica. Sua fauna, flora e recursos minerais, vem sendo alvo de constantes ataques de organizações criminosas que ganharam força na exploração deste bioma.
Neste conteúdo, o Politize! te explica o que são as milícias ambientais e como elas atuam na Bacia Amazônica.
O que são “milícias”? Qual a origem do termo?
A palavra milícia assumiu inúmeras conotações ao longo dos anos e hoje preenche fortemente o imaginário popular.
Etimologicamente, milícia vem do latim “militia” que significa “serviço militar, campanha, guerra”. O termo surgiu para fazer referência a grupos organizados de integrantes e ex-integrantes do serviço militar que atuavam de forma paralela as forças de segurança pública do Estado. Em suma, consistia em um modus operandi característico da realidade urbana brasileira que vinha ganhando força principalmente nas comunidades do Rio de Janeiro a partir dos anos 1990.
No decorrer da história, houve profundas mudanças nos integrantes dessas organizações, o que levou a uma forte diversificação dos crimes cometidos. As milícias passaram a possuir chefias nos mais variados setores econômicos e até na vida política, fazendo com que o termo ganhasse um significado ainda mais abrangente.
Diante da realidade atual, conceitualmente, podemos definir a milícia como um poder paralelo ao Estado, com organização e estrutura própria, cujo objetivo é promover a prática de crimes em uma determinada região.
Essencialmente, uma milícia é uma “organização criminosa” que se confunde com a própria máfia (cuja etimologia surgiu para caracterizar uma cultura criminosa siciliana conhecida como “Cosa Nostra” e que ganhou diversas outras conotações ao longo do tempo), possuindo, portanto, o mesmo condão organizacional voltado ao mundo do crime.
E como o crime organizado está previsto na legislação brasileira?
A partir da Constituição de 1988, configurou-se no Brasil o “direito de livre associação”. Ele consiste em uma garantia fundamental que assegura aos cidadãos o direito de integrarem organizações para os mais variados fins, desde que sejam lícitos, estando vedado qualquer caráter paramilitar (art. 5º, inciso XVII, CF).
No decorrer dos anos seguintes, existiram várias tentativas de sancionar, através da legislação penal, tanto a existência dos ditos grupos “paramilitares” como as demais organizações voltadas às práticas delitivas.
Somente a partir do ano de 2013 – com o advento da Lei n ° 12.850 –, chegamos a uma satisfatória uniformização na legislação penal especial do conceito de “crime organizado” e dos parâmetros delimitariam sua penalização.
Segundo a Lei n° 12.850/13:
“Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional” (art. 1º, parágrafo 1º).
Ainda, a referida lei não só define seu como conceito como “dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado” (art. 1º, caput).
Em regra, portanto, “promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa” tem “Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas” (art. 2º).
É importante salientar que o “organiza-se com fim de praticar crime” tornou-se um tipo penal específico. Assim, fazendo jus ao caráter orgânico da topologia da legislação criminal no Brasil, responderão seus agentes tanto pela constituição da organização quanto pelos demais crimes que vierem a realizar.
A “Milícia” e o “Crime Organizado” podem ser, portanto, à luz da legislação penal brasileira, sinônimos em termos de previsão normativa e aplicação de pena.
Como atuam as “milícias ambientais” no Brasil?
O que conhecemos como “Milícias Ambientais” consiste em organizações criminosas cujo cerne da prática delitiva é o “meio ambiente juridicamente protegido”.
Contudo, a peculiaridade destes grupos reside no fato de que suas atuações não se restringem aos “crimes ambientais” propriamente ditos – ou seja, àquelas condutas que produzem algum grau de degradação no meio ambiente, previstas na legislação especial ambiental – a Lei n ° 9.605/98 (“Lei de Proteção ao Meio Ambiente”).
Muitas dessas organizações criminosas utilizam-se das características da extensão territorial de certos biomas brasileiros para praticarem diversos outros ilícitos penais, guardando com os ecossistemas naturais uma relação de interdependência geográfica.
A partir desta complexa cadeia criminológica, encontramos tanto a prática dosilícitos ambientais, como o “desmatamento ilegal em áreas preservadas”, quanto os crimes de natureza diversa, como o “comércio ilegal de armas de fogo” (previsto nos artigos 17 e 18 da Lei. 10.826/03), o “cultivo e tráfico de entorpecentes” (previsto no artigo 33 da Lei 11.343/06) e o “financiamento e emprego do trabalho escravo” (previsto no artigo 149 do Código Penal).
A Bacia Amazônica
A região norte do Brasil concentra a maior extensão territorial do país e é o coração da Bacia Amazônica.
“Cobrindo mais de 670 milhões de hectares, a Bacia Amazônica abrange a maior floresta tropical do mundo – mais de 40% de toda essa vegetação – e é a fonte de 20% do suprimento global de água. Ela suporta múltiplos ecossistemas e abriga pelo menos 10% da biodiversidade conhecida do planeta. É também um dos maiores sumidouros de carbono; cerca de 90-140 bilhões de toneladas de carbono são armazenadas nas florestas tropicais da Amazônia. A região abrange partes de oito países: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, além da Guiana Francesa […] (WWF 2020)”
Rios na Floresta Amazônica. Foto: Gustavo Frazao / Shutterstock.com
No Brasil, ela corre pelos estados do Acre, Amazonas, Roraima, Rondônia, Mato Grosso, Pará e Amapá, e sua riqueza, tornou-se um dos principais alvos das “Milícias Ambientais”.
Nos últimos anos, observamos que a Bacia Amazônica vem ganhando as manchetes de jornais ao redor do mundo por comportar um elevado crescimento na participação de organizações criminosas em seu território.
Como veremos a seguir, essa longa lista de ilícitos penais está profundamente ligada ao bioma da região.
- O desmatamento ilegal
O desmatamento ilegal consiste na extração de árvores protegidas, em áreas proibidas, com ou sem autorização adequada para fazê-lo.
A Lei n ° 9.605/98 – “Lei de Proteção ao Meio Ambiente” – possui uma seção própria definindo quais são os “Crimes contra a Flora” no Brasil. A legislação buscou tipificar como ilícitas as mais variadas condutas que ensejem prejuízo a vegetação, ainda que se restrinjam as irregularidades em licenças ou autorizações.
Dentre os crimes previstos nos artigos 38 a 53 estão:
- “destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção ou sem permissão de autoridade competente”;
- “causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação”;
- “provocar incêndio em mata ou floresta”;
- “destruir ou danificar ou explorar economicamente vegetação nativas das terras de domínio público ou devolutas, sem autorização do órgão competente;
- “comercializar motosserra ou utilizá-la em florestas e nas demais formas de vegetação, sem licença ou registro da autoridade competente”.
Assim, qualquer extração de vegetação em desacordo com as diretrizes ambientais no Brasil é considerada crime ambiental e pode ser enquadrado no gênero do “desmatamento ilegal”.
Na região amazônica, esse ilícito vem possibilitando para o crime organizado não só as vantagens econômicas oriundas partir do comércio da madeira, como também um leque diverso de possibilidades de lucro sobre a terra.
Foto: Ibama via Fotos Públicas
A destruição da vegetação pode ser feita com a finalidade de promover a criação de gado ou a produção de latifúndios agrícolas – a dita “agropecuária industrial”; o terreno devastado pode ser voltado ao cultivo de substâncias entorpecentes (financiando o tráfico de drogas); pode ser destinado a promover a mineração de pedras preciosas; e além disso, pode servir a própria especulação imobiliária para posterior venda irregular da terra.
Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre agosto de 2019 a julho de 2020, o desmatamento na Amazônia aumentou 34%; levando a mais de 9.2 mil Km2 de florestas derrubadas.
A análise mais recente realizada pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), apontou que somente entre agosto de 2020 a junho de 2021, a Amazônia Legal brasileira já registrou uma devastação correspondente a 8.381km2.
Enquanto isso, uma das principais forças tarefas de combate ao desmatamento ilegal na Amazônia, a chamada “Operação Amazônia Viva”, coordenada pela Força Estadual de Combate ao Desmatamento (FECD) e divulgada pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), somente no dia 11 de junho de 2021 deflagrou “22 autos de Infração, 34 Termos de Apreensão, 18 Termos de Depósito, 7 Termos de Embargo, 5 Termos de Doação e 14 Termos de Inutilização/Destruição – 6 tratores, 2 caminhões, 130 litros de combustível, 194,72 m³ de madeira serrada e 82,28 m³ de madeira em tora”.
- A mineração
A prática da mineração consiste na extração, processamento e/ou exploração de minerais do subsolo sem as permissões apropriadas ou em desacordo com as regulamentações específicas.
A Lei n ° 9.605/98 – “Lei de Proteção ao Meio Ambiente” – também considera como crime ambiental em seu art. 55: “executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida”.
Atualmente no Brasil, a indústria de mineração está voltada para extração do alumínio, cobre, ferro, nióbio, manganês e ouro.
Além da Lei de Proteção ao Meio Ambiente, existe no ordenamento jurídico brasileiro o “Código das Minas” – Decreto lei n ° 1.985 de 1940 – o qual em seu artigo 1º: “define os direitos sobre as jazidas e minas, estabelece o regime do seu aproveitamento e regula a intervenção do Estado na indústria de mineração, bem como a fiscalização das empresas que utilizam matéria prima mineral”.
O Código contém em capítulos próprios os trâmites e requisitos que asseguram a legalidade e legitimidade da prática extrativista, desde a “Autorização de Pesquisa”; a “Autorização de Lavra”; a “Fiscalização”; até a “Faiscação e Garimpagem”.
Compreende-se também que a mineração, seja ela lícita ou não, regular ou irregular frente as exigências da legislação ambiental, acaba por provocar a contaminação do solo e da água (deteriorando leito de rios e corroborando a perda da biomassa e nutrientes da terra), prejudicando consequentemente o desenvolvimento da fauna e flora.
No âmbito das Milícias Ambientais na região amazônica, a mineração vem sendo a principal forma de abastecimento do comércio ilegal de ouro, além de financiar o emprego do trabalho escravo como mão de obra.
Em duas operações realizadas pela Policia Federal nos anos de 2018 e 2020, 77 trabalhadores mantidos em condição análoga à escravidão foram resgatados em garimpos ilegais.
Foto: Felipe Werneck – Ibama (arquivos públicos)
Entre o ano de 2015 até o ano de 2020, dados colhidos pelo Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), em parceira com o Instituto de Pesquisas Especiais (Inpe), apontam que os prejuízos causados pela mineração na região amazônica devastaram solos em uma área total de 405,36km2.
Além disso, em uma denúncia promovida pelo Ministério Público Federal (MPF), existe a apuração de que entre os anos de 2015 e 2018 uma única empresa negociou 610 quilos de ouro ilegal em Santarém, no estado do Pará. No mais, estimativas realizadas pelo Instituto Escolhas mostram que só em 2020 cerca de 29 toneladas de ouro foram extraídas no Brasil.
- A caça e o comércio ilegal de animais
Um relatório produzido pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), em conjunto com ONGs internacionais e a União Internacional para Conservação da Natureza (UICN), chamado “Wildlife Trafficking in Brasil”, analisou a caça e o comércio ilegal de animais silvestres no Brasil entre os anos de 2012 e 2019, e trouxe dados alarmantes.
O estudo apontou que cerca de 38 milhões de animais por ano foram retiradas de seu habitat pela caça e comércio ilegal durante esse período. Os principais seres afetados são as aves (das mais variadas espécies, as quais majoritariamente dirige-se ao mercado ilegal nacional), os répteis (dente os quais destacam-se as tartarugas, cobras e jacarés abastecendo o comércio ilegal no Oriente Médio), mamíferos (principalmente as onças e primatas abastecendo o mercado ilegal nos EUA) e peixes (através de pesca em locais e contra espécies proibidas).
E por que tantas espécies seguem abastecendo mercados ao redor do mundo? Em síntese, porque o comércio ilegal de vida selvagem possui um vasto leque de serventia. Os mesmos podem ser utilizados para “domesticação”, “culinária exótica”, “medicina tradicional” ou servir de “fonte de insumos para indústrias químicas, estéticas e/ou cosmética”.
A Lei n ° 9.605/98 – “Lei de Proteção ao Meio Ambiente” – também possui uma seção que define os “Crimes contra a Fauna” no Brasil. Está previsto como crime nos artigos 29 a 37:
- “matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida”;
- “vender, expor à venda, exportar ou adquirir, guardar, ter em cativeiro ou depósito animais ou bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente”;
- assim como, “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”.
A base dos dados que alimentam esses indicadores foram as apreensões realizadas por operações da Policia Federal em parceira com Ibama, Polícia Militar Ambiental dos Estados e os indicadores nos Centros de Reabilitação de Animais.
Só no ano de 2021, a PMAM “registrou a captura de 153 animais silvestres, de janeiro a março deste ano. No período, foram resgatados em situações de maus-tratos 45 quelônios, 44 aves, 40 répteis e 24 mamíferos”.
Foto: Divulgação Pública da Policia Militar do Amazonas – 12/05/2021
- A agropecuária Industrial
A agropecuária industrial consiste na produção intensiva e em larga escala, seja do cultivo de alimentos, seja da criação de animais.
Sua atuação torna-se ilegítima quando: a utilização da terra extrapola os limites impostos por lei à propriedade; quando são utilizados métodos inadequados de conservação do solo; e quando comportam queima ou desmatamento da vegetação nativa.
Atualmente, a “agricultura industrial” da região direciona-se a ao cacau, açaí e a castanha de caju – cada dia mais requisitados pelo comercio internacional –, e a “pecuária industrial” é majoritariamente bovina.
Dentro destes latifúndios, a expansão irregular da terra torna-se uma prática de difícil controle do Estado e bastante comum. A partir dela, é possível estabelecer um paralelo com o aumento na caça de animais silvestres, na venda de terras ilegalmente ocupadas e até no próprio trabalho escravo.
Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (TEM), 66% dos flagrantes de empregadores que utilizam de mão de obra escrava pertencem a Amazônia Legal.
A partir de cruzamento de dados oficiais feito pela Comissão Pastoral da Terra entre 2003 a 2016, apenas do estado do Pará, 931 trabalhadores foram resgatados enquanto encontravam-se em situações análogas à escravidão, trabalhando na pecuária e extração de madeira.
REFERÊNCIAS
Rogerio Greco. Organização Criminosa: Comentários à Lei n 12.850/13 / Rogerio Greco, Paulo Freitas
Jo Durden Smith. – A História da Máfia. 2015
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Lei n 12.850 de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal.
BRASIL. Lei n 6.938 de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação.
InfoAmazônia: animais selvagens abastem tráfico internacional
OECO: relatório aponta Amazônia como epicentro do tráfico de animais silvestres
Conexão Planeta: milhões de aves, tartarugas, mamíferos e peixes estão sendo retirados da Amazônia
Elpais: desmatamento na Amazônia no mês de abril
Imazon: desmatamento chega a 810km
G1 Globo: desmatamento na Amazônia
Poder360: desmatamento na Amazônia
CNN Brasil: marco de 2021 tem recorde de desmatamento
MPMG: deflagra operação para apurar crimes de associação criminosa
Observatório: Conselho da Amazônia
Uol: como o crime organizado desmata a Amazônia
Igarape: crime ambiental Amazônia
The Intercept: crimes meio ambiente
Congresso 2021 UFBA : violência e desmatamento
Agência Pública: milicianos invadem área ambiental
Agência Pública: milícias avançam