O que exatamente é contracolonialismo? Em que ele se diferencia do decolonialismo? Por que tem ganhado destaque nas discussões acadêmicas e sociais?
Você já parou para pensar em como as ideias dominantes no mundo ainda carregam traços do passado colonial? Mesmo depois da independência de muitos países, os efeitos do colonialismo continuam presentes na nossa cultura, política e economia.
É nesse contexto que surge o contracolonialismo, uma corrente que busca denunciar e reverter os impactos dessas heranças.
Se você quer entender melhor o que é contracolonialismo e por que esse conceito tem sido tão discutido, esse artigo da Politize! é para você.

- Decolonialismo x Contracolonialismo
- O que é o colonialismo político?
- O que é o colonialismo econômico?
- O que é o colonialismo cultural
- O que é o colonialismo científico?
- Como surgiu o contracolonialismo?
- Perspectivas de diferentes autores
- Nêgo Bispo e o contracolonialismo
- Walter Mignolo e a decolonialidade
- Aníbal Quijano e a colonialidade do poder
- Silvia Rivera Cusicanqui e a crítica aos discursos decoloniais
- Pablo González Casanova e o conceito de colonialismo interno
- Ngũgĩ wa Thiong’o e a descolonização das línguas e da literatura africana
- Frantz Fanon e o impacto psicológico do colonialismo
- Linda Tuhiwai Smith e a pesquisa indígena como ferramenta de resistência
- Ailton Krenak e a relação da luta indígena à crítica ao modelo ocidental de desenvolvimento
- Críticas ao decolonialismo e ao contracolonialismo
- Referências
Decolonialismo x Contracolonialismo
Para entender o contracolonialismo, primeiro precisamos compreender o conceito de decolonialismo ou decolonialidade. De acordo com Alexandre Barbosa, o termo se refere às práticas que tentam diminuir ou reverter as estruturas e os efeitos da colonização em algumas sociedades.
É bom pontuar que decolonialismo é diferente de descolonização.
Segundo Barbosa, “enquanto a descolonização se refere às lutas das colônias africanas, asiáticas e latino-americanas para se tornarem independentes das respectivas metrópoles, o decolonialismo tem como princípio que a independência política não acabou com instituições, hábitos e práticas coloniais.”.
De acordo com a intelectual estadunidense Catherine Walsh, a decolonialidade não pretende apenas denunciar ou desfazer o colonial, mas também dar voz à diferença colonial expondo saberes silenciados pelas estruturas colonizadoras.
Desde a chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500, o povo brasileiro sofre as consequências da colonização. Mesmo sem domínio político direto, padrões coloniais continuam influenciando aspectos econômicos, sociais e culturais, perpetuando desigualdades e hierarquias.
O sociólogo peruano Aníbal Quijano introduziu o conceito de “colonialidade do poder”, no final dos anos 1980, mostrando como a modernidade está ligada à colonialidade, desenvolvendo pesquisas sobre a compreensão da gênese da modernidade, amparado por uma análise histórica sobre a sociedade capitalista, desde a constituição do colonialismo até a globalização do século XX.
Embora o decolonialismo e o contracolonialismo busquem enfrentar as heranças coloniais, eles apresentam diferenças importantes.
O decolonialismo é mais voltado à crítica epistemológica, ou seja, ao modo como o conhecimento foi estruturado pelo ocidente durante o colonialismo.
Ele foca na desconstrução das estruturas coloniais e na valorização de saberes e práticas marginalizados pelo colonialismo, buscando uma libertação intelectual, cultural e política das influências coloniais, promovendo a diversidade epistêmica.
O contracolonialismo, por outro lado, envolve ações diretas e insurgentes que questionam, subvertem e criam práticas novas, alinhadas com saberes locais e ancestrais.
Ele foi proposto pelo líder quilombola Antônio Bispo dos Santos, conhecido como Nêgo Bispo, o lavrador das palavras, que enfatizou a resistência ativa às práticas coloniais, promovendo modos de vida que enfraquecem e substituem as estruturas coloniais por alternativas baseadas em conhecimentos e tradições ancestrais, com uma abordagem prática e comunitária.
Para facilitar, pense assim: enquanto o decolonialismo analisa, o contracolonialismo reage.
E de que forma o colonialismo está presente na nossa sociedade? Vamos conferir a seguir.
O que é o colonialismo político?
O colonialismo político ocorreu quando potências europeias impuseram suas administrações sobre territórios na África, América, Ásia e Oceania. Governos coloniais controlavam leis, políticas e a organização social dos povos dominados, frequentemente suprimindo suas formas de governo originais.
O que é o colonialismo econômico?
As colônias eram exploradas para benefício das metrópoles, fornecendo matérias-primas e mercados consumidores. Essa exploração gerou desigualdades que permanecem até hoje, criando economias dependentes e dificultando o desenvolvimento autônomo de muitas nações.
O que é o colonialismo cultural
Além do controle político e econômico, o colonialismo também impôs valores culturais, línguas e religiões às populações colonizadas. Muitas tradições e saberes locais foram marginalizados ou destruídos, resultando em uma perda significativa de identidade cultural.
O que é o colonialismo científico?
O colonialismo científico se refere à imposição do conhecimento ocidental como único válido, desconsiderando formas de saberes indígenas, africanos e de outras tradições. Esse processo limitou a diversidade de perspectivas no mundo acadêmico e científico.

Como surgiu o contracolonialismo?
Desde o final da década de 1990, com as pesquisas de Aníbal Quijano (1928-2018) sobre a colonialidade, um conjunto de estudos passou a ser articulado.
Os debates contemporâneos sobre pós-colonialismo, descolonização e modernidade/colonialidade apontam a persistência das estruturas coloniais ao longo dos últimos 500 anos.
Essas reflexões, embora críticas, ainda partem majoritariamente de uma base acadêmica e eurocêntrica. A desigualdade histórica entre poder e população explorada segue sendo central nessas análises. E é em oposição a elas que surge o contracolonialismo.
“Compartilhamento”, “confluência”, “biointeração” e “diversais” foram alguns dos conceitos trabalhados pelo contracolonialismo, do qual Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, pensador quilombola, foi precursor. Nêgo Bispo foi formado pelos saberes orais do Quilombo Saco-Curtume (PI).
Como primeiro alfabetizado da família, assumiu a missão de registrar por escrito os conhecimentos de seu povo, cuja tradição oral era ignorada pelo Estado. Faleceu em dezembro de 2023, depois de lançar seu último livro “A terra dá, a terra quer” (2023).
O conceito de contracolonialismo começou a ser formulado como uma necessidade de ir além da teoria, apostando em formas práticas de resistência e reconstrução de identidades.
De acordo com Nêgo Bispo, “quem faz a decolonialidade é quem foi colonizado; quem não foi colonizado, como os quilombolas, vão contracolonizar”.
Para ele, contracolonialismo é retomada. Por esse motivo, esse conceito enfatiza a prática cotidiana e a valorização de modos de vida tradicionais como formas de resistência ativa ao colonialismo, contestando suas estruturas ainda presentes nas sociedades atuais.
No livro “A terra dá, a terra quer”, Nêgo Bispo explica que o quilombola diferencia decolonialidade de contracolonialidade quando defende que, por ser quilombola, nunca foi colonizado, incluído na sociedade, e, por isso, não precisa se decolonializar, mas contrariar o colonialismo a partir da contracolonialidade.
“Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-o de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome.”, afirma Bispo.
Assim, mais do que apenas “desfazer” o colonialismo, como propõe o decolonialismo, o contracolonialismo é ativo e combativo, propondo alternativas e ações concretas que enfrentam diretamente as marcas do colonialismo.
É como se disséssemos: “Não basta entender que fomos colonizados; precisamos agir para reconstruir nossas formas de viver, pensar e ser no mundo”.
Para Nêgo Bispo, a diferença entre ser humano e ser quilombola reflete o estilo de vida colonial e contracolonial.
“Os povos da cidade precisam acumular. Acumular dinheiro, acumular coisas. Estão desconectados da natureza, não se sentem como natureza. As cidades são estruturas colonialistas”.
Com isso, ele chama os povos da cidade de moradores e os quilombolas de compartilhantes.
O contracolonialismo surge desse incômodo com a continuidade da dominação. Após as independências formais dos países colonizados no século XX, muitos perceberam que, mesmo sem a presença direta do colonizador, a cultura, a política e a economia continuavam subordinadas aos valores europeus.
Essa constatação gerou um desejo de romper com essas amarras não só no discurso, mas nas ações cotidianas e coletivas.
“Se o inimigo adora dizer desenvolvimento, nós vamos dizer que o desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Vamos dizer que a cosmofobia é um vírus pandêmico e botar para ferrar com a palavra desenvolvimento. Porque a palavra boa é envolvimento. […] Para enfraquecer o desenvolvimento sustentável, nós trouxemos a biointeração; para a coincidência, trouxemos a confluência, para o saber sintético, o saber orgânico; para o transporte, a transfluência; para o dinheiro (ou a troca), o compartilhamento; para a colonização, a contracolonização.”, disse Bispo.
Ainda hoje, saberes indígenas, africanos e populares são marginalizados; culturas não ocidentais são tratadas como “exóticas”; e o racismo estrutural é uma realidade em muitos países.
O contracolonialismo é importante porque nos convida a repensar tudo: desde o currículo escolar até o sistema político, passando pela forma como falamos, consumimos e nos relacionamos.
O contracolonialismo pode, então, se manifestar em diversas áreas: na educação, com escolas que valorizam saberes indígenas e quilombolas; na arte, com artistas que resgatam estéticas africanas e indígenas; na política, com movimentos sociais que reivindicam autonomia territorial e cultural. Cada uma dessas ações propõe uma ruptura com a lógica colonial.
“Quando nós falamos tagarelando e escrevemos mal ortografado, quando nós cantamos desafinando e dançamos descompassado, quando nós pintamos borrando e desenhamos enviesado, não é porque estamos errando é porque não fomos colonizados.”, conta Bispo.
Você já ouviu falar em “oralitura”? Para compreender conceitos que ajudam a explicar estruturas históricas e socioculturais do país, foi criado, pelo Nonada Jornalismo, o Glossário de Termos do Pensamento Contracolonial Brasileiro, um guia para ecoar ideias de intelectuais brasileiros que pensam através do viés da contracolonialidade.
Além disso, o glossário traz uma entrevista sobre a origem afro-indígena do termo decolonialidade, dicas culturais e indicações de livros e de trabalhos artísticos que dialogam com os termos.
Perspectivas de diferentes autores
Confira as perspectivas de diferentes autores sobre contracolonialismo.
Nêgo Bispo e o contracolonialismo
Antônio Bispo dos Santos, conhecido como Nêgo Bispo, foi uma liderança quilombola que desenvolveu o conceito de contracolonialismo. Para ele, a resistência ao colonialismo deve ocorrer por meio da valorização e prática dos saberes ancestrais, promovendo uma ruptura com as estruturas coloniais através do cotidiano e da cultura.
Walter Mignolo e a decolonialidade
Walter Mignolo, teórico argentino, contribuiu significativamente para o pensamento decolonial. Ele argumenta que a modernidade está intrinsecamente ligada à colonialidade, e propõe a decolonialidade como um processo de desmantelamento das epistemologias coloniais, valorizando conhecimentos marginalizados.
Aníbal Quijano e a colonialidade do poder
Aníbal Quijano, sociólogo peruano, introduziu o conceito de “colonialidade do poder”, que descreve como as relações de dominação estabelecidas durante o colonialismo continuam a moldar as estruturas sociais e políticas atuais, especialmente através da imposição de classificações raciais e hierarquias econômicas.
Silvia Rivera Cusicanqui e a crítica aos discursos decoloniais
Silvia Rivera Cusicanqui, socióloga boliviana, critica os movimentos decoloniais por, segundo ela, reproduzirem estruturas de poder acadêmicas e não se conectarem efetivamente com as práticas e saberes dos povos indígenas. Ela defende uma abordagem que integra teoria e prática, respeitando as particularidades culturais.
Pablo González Casanova e o conceito de colonialismo interno
O sociólogo mexicano Pablo González Casanova se dedicou à investigação das estruturas coloniais mantidas e renovadas pelos Estados nacionais mesmo após as independências. Ele cunhou o conceito “colonialismo interno” para se referir a esse processo da permanência de práticas de colonização de cunho político, econômico e social.
Ngũgĩ wa Thiong’o e a descolonização das línguas e da literatura africana
Ngũgĩ wa Thiong’o é um renomado escritor e intelectual queniano que defende a descolonização cultural da África por meio da valorização das línguas africanas. Abandonou o inglês como língua literária e passou a escrever em gikuyu, sua língua materna. Para ele, a linguagem é um campo de disputa política e identitária. Sua obra propõe uma literatura africana livre das amarras coloniais.
Frantz Fanon e o impacto psicológico do colonialismo
Frantz Fanon foi um psicólogo e filósofo martinicano cujas obras analisam o impacto psicológico do colonialismo nas populações subjugadas. Em seu livro mais influente, “Pele Negra, Máscaras Brancas”, ele explora como a colonização gera um complexo de inferioridade e alienação nas vítimas. Seu pensamento influenciou movimentos de independência e a psicanálise crítica do colonialismo.
Linda Tuhiwai Smith e a pesquisa indígena como ferramenta de resistência
Linda Tuhiwai Smith é uma pesquisadora maori que defende a pesquisa indígena como forma de resistência e reconstrução cultural. Em sua obra, ela critica os métodos acadêmicos ocidentais que historicamente marginalizaram os saberes dos povos indígenas. Para ela, pesquisar é também um ato político de reafirmação da identidade e soberania dos povos originários.
Ailton Krenak e a relação da luta indígena à crítica ao modelo ocidental de desenvolvimento
Ailton Krenak é um pensador, ambientalista e líder indígena brasileiro que questiona o modelo ocidental de desenvolvimento baseado na exploração da natureza. Em suas falas e escritos, propõe outra forma de estar no mundo, inspirada nos modos de vida dos povos indígenas.
Críticas ao decolonialismo e ao contracolonialismo
O decolonialismo e o contracolonialismo, como qualquer outro conceito, não está isento de críticas, inclusive dos próprios representantes dos grupos subalternizados aos quais ele pretende dar voz.
Na prática, dizem que o decolonialismo não é inclusivo, e, sim, exclusivo, pois não inclui novos conceitos e saberes, mas pretende substituir os considerados clássicos.
Estudantes da Escola de Estudos Orientais e Africanos, instituição de ensino superior britânica, por exemplo, pedem a eliminação de Descartes, Platão e Kant do currículo de filosofia por serem homens brancos.
Alguns argumentam que, ao focar predominantemente em práticas tradicionais, pode haver uma tendência ao isolamento ou à romantização do passado, negligenciando a necessidade de engajamento com estruturas políticas e econômicas contemporâneas para efetivar mudanças sistêmicas.
Apesar de sua força transformadora, alguns dizem que o contracolonialismo pode ser considerado radical demais, por rejeitar quase totalmente os modelos ocidentais. Outros apontam dificuldades práticas em implementá-lo em larga escala. Há também quem ache que ele pode gerar isolamento cultural, ao invés de diálogo.
A intelectual ch’ixi Silvia Rivera Cusicanqui afirmou que os indígenas e suas produções intelectuais teriam sido relegados ao exotismo e à teatralização de sua condição originária, enquanto suas demandas políticas seriam digeridas e suavizadas pela “academia gringa e seus seguidores”.
Embora os críticos do colonialismo apontem sua persistência estrutural, há quem defenda que a modernidade ocidental também trouxe avanços institucionais, como o Estado de direito e a universalização de direitos civis.
Para autores liberais, como os economistas Amartya Sen, Francis Fukuyama, a superação da pobreza e das desigualdades se dá menos por rompimentos epistemológicos e mais por inclusão econômica e fortalecimento de instituições democráticas.
Para Sen, o desenvolvimento deve ser entendido como a expansão das liberdades substantivas das pessoas. Ele sustenta que liberdade política, acesso à educação, saúde e segurança econômica são instrumentos e fins do desenvolvimento.
Já Fukuyama defende que o fortalecimento das instituições políticas e do Estado de direito é o caminho mais eficaz para garantir estabilidade, crescimento econômico e inclusão. Ele reconhece desigualdades históricas, mas acredita que reformas institucionais dentro da ordem liberal são suficientes para enfrentá-las.
São discordâncias intelectuais importantes, que contribuem com a solidificação do debate e as diferentes visões de mundo.
O contracolonialismo ainda está em construção. Seu futuro depende de mais gente se engajando, pensando e agindo de forma crítica. É uma jornada longa, mas necessária.
Imagine um mundo onde os povos não sejam definidos por traumas coloniais, mas por sua potência de criação. Esse é o horizonte que o contracolonialismo aponta.
E aí, entendeu as principais diferenças entre deocolonialismo e contracolonialismo? Compartilhe este conteúdo com alguém que também gostaria de ler e não esqueça de deixar um comentário!
Referências
- Cadernos Miroslav Milovic – Contracolonialismo em confluência, Miroslav Milovic e Antônio Bispo dos Santos
- Ciência Hoje – Qual o objetivo dos movimentos de decolonização e descolonização?
- Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – O que é decolonialismo? Por Alexandre Barbosa
- Geledés – Lançado Glossário do Pensamento Contracolonial, um guia que ajuda a ecoar ideias de intelectuais brasileiros
- MASP – Uma breve história dos estudos decoloniais
- Nonada Jornalismo – Glossário do pensamento contracolonial brasileiro
- Podcast Peças Raras – O Contracolonialismo de Nêgo Bispo
- Periódicos UFRN – Ecologia e ontologia quilombola e o contracolonialismo de Nêgo Bispo
- Revista Oeste – Os decoloniais são colonizadores que chegaram atrasado
- Revista Úrsula – Descolonizar/contracolonizar a história da arte: possibilidades a partir de Nêgo Bispo
- Scielo – Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade
- Scielo – Por um reflexo sobre a organização e representação de conceitos decoloniais na América Latina: o pensamento de Aníbal Quijano à luz da análise de domínio