O colonialismo científico ainda está presente na ciência moderna?

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O colonialismo não é um tema desconhecido por nós. Desde 1500, com a chegada dos portugueses a terras que mais tarde chamaríamos de Brasil, nosso país enfrentou a dominação direta de Portugal até o ano de 1822. O colonialismo científico também começou cedo na nossa história.

Essa prática teve início nas primeiras expedições de naturalistas que acompanhavam os colonizadores, coletando materiais e enviando-os à Europa. Porém, não se findou com o processo de descolonização.

Cientistas do mundo todo vem se posicionando contra esse modo predatório de fazer ciência. Vem com a Politize! entender os problemas do colonialismo científico e as medidas que estão sendo adotadas contra essa prática.

O que foi o colonialismo

O colonialismo teve início com as expansões marítimas europeias no século 15. Além de Portugal, outras potências coloniais como Espanha, Inglaterra e França estabeleceram colônias. Nelas, eles impuseram a sua cultura, economia e organização política.

Para o escritor Albert Memmi, “o colonialismo é um sistema de dominação (…) que se perpetua através do tempo e do espaço, que se estende além das fronteiras políticas e geográficas e que afeta não somente os indivíduos, mas também as culturas e as sociedades inteiras”. Essa prática, segundo o historiador Domenico Losurdo, é “(…) sinônimo de pilhagem e de exploração”.

Veja também: Escravidão na América Espanhola: um olhar sobre a mão-de-obra colonial

Apesar do fim de grande parte das práticas de dominação territorial, a dominação cultural, política, econômica – e científica – se mantêm.

Muitas vezes de forma sutil, sob a justificativa do fazer científico objetivo e imparcial, cientistas do norte global colecionam artigos descrevendo espécies brasileiras e seus museus recebem legiões de turistas para observar materiais pilhados de outros países.

A construção do colonialismo científico

A construção de muitas coleções científicas e museus na Europa andaram de mãos dadas com a concepção dos impérios colonialistas. Naturalistas que acompanhavam as missões de exploração regressavam com materiais “exóticos” que enchiam os armários de curiosidades dos iluministas europeus.

Segundo Aldrich (2009), com o objetivo de exibir esses materiais e demonstrar a potência imperial, foram criados os museus coloniais. Quando as bandeiras coloniais foram baixadas, muitos objetos e coleções antes designados como coloniais simplesmente fundiram-se em coleções gerais. E nesses museus essas coleções se mantém até hoje.

Fora dos seus países de origem, esses materiais foram – e continuam sendo – estudados por cientistas e expostos ao público. Esses acervos são um importante recurso para a geração de conhecimento científico, turismo e formação de futuras gerações de cientistas.

Apesar da prática ser antiga, o conceito de colonialismo científico é recente. Ele foi definido pelo sociólogo Johan Galtung em 1967 como “o processo pelo qual o centro de aquisição do conhecimento sobre uma nação está fora a própria nação”.

Esse conceito é muitas vezes equiparado ao de “ciência de paraquedas”. Segundo Raja e colaboradores (2022), a “ciência de paraquedas” é feita quando pesquisadores, geralmente de países ricos, apenas “caem” em outros países. Neles, os cientistas realizam as suas pesquisas e saem sem se envolver com a comunidade local.

Segundo os mesmos autores, o colonialismo científico é um conceito mais amplo. Nessa prática, a experiência dos pesquisadores locais é desvalorizada e as leis desses países são desconsideradas. Isso ocorre porque os países, geralmente do sul global, são vistos apenas como fornecedores de dados e amostras para os países do norte global (Cisneros et al., 2022).

Fóssil do dinossauro “Ubirajara” na cerimônia de repatriação do fóssil no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

Os dinossauros na fronteira do colonialismo científico

Em dezembro de 2020 um artigo descrevendo um pequeno dinossauro emplumado, chamado de “Ubirajara jubatus“, foi disponibilizado. Uma descoberta incrível, pois se tratava do primeiro dinossauro com penas descoberto no Hemisfério Sul. O problema: o fóssil era proveniente do Brasil e estava depositado em um museu alemão.

Cientistas brasileiros e apoiadores começaram então a campanha #UbirajaraBelongstoBR, na qual reivindicavam a repatriação do fóssil. A campanha foi um sucesso e o fóssil foi devolvido ao Brasil em junho de 2023. “Ubirajara” se tornou um marco na luta contra o colonialismo científico na paleontologia. Hoje ele está depositado no Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, em Santana do Cariri, no Ceará.

Outro dinossauro brasileiro, Irritator challengeri descrito em 1995, levantou discussões semelhantes com um novo estudo publicado em 2023. Por estar depositado em outro museu alemão, o artigo contém uma declaração de ética na qual os autores reconhecem o status “potencialmente problemático” do fóssil, uma vez que a sua retirada do Brasil não ocorreu por meios legais.

Irritator, contudo, continua na Alemanha. Mais de 2 mil paleontólogos e apoiadores, entre eles os autores do artigo publicado em 2023, assinaram uma carta aberta solicitando a repatriação do fóssil. Essa carta foi enviada à ministra ciência, pesquisa e artes do estado de Baden-Württemberg, onde o fóssil de encontra.

O impacto na paleontologia

A paleontologia é uma ciência bem conhecida pelo estudo dos dinossauros. Contudo, essa ciência abrange o estudo de fósseis de outros vertebrados como Mesossauros e Cinodontes; invertebrados como os Trilobitas e Anomalocaris; plantas como Archaeopteris e Zosterophyllum, além de microfósseis e vestígios chamados de icnofósseis.

Um estudo demonstrou que 97% dos dados paleontológicos são gerados por instituições da América do Norte e Europa Ocidental. Essas pesquisas, concentradas no norte global, não são resultado da abundância de fósseis nesses países.

Os Estados Unidos, responsável por mais de um terço dos dados paleontológicos do mundo, conduzem taxas semelhantes de pesquisa dentro e fora do seu próprio território. A Suíça, país com o maior percentual de pesquisas paleontológicas fora do seu território, desenvolve cerca de 86% das pesquisas em países estrangeiros.

Mas ciência é ciência em qualquer lugar do mundo, certo? Então qual o problema?

Questões éticas e legais

Segundo Cisneros e colaboradores (2022), a construção do conhecimento não pode ser dissociada das questões ligadas ao patrimônio. Os objetos, sejam eles biológicos, paleontológicos ou arqueológicos, estão envolvidos com políticas de identidade e com demandas conflitantes de pertencimento e propriedade.

Países vítimas da exploração dos seus dados tomaram, ao longo do século XX, medidas legais para tentar proteger seu patrimônio. É o caso do Brasil. Aqui, os fósseis são considerados propriedade da Nação e patrimônio cultural (art. 216 da CF). Por isso, sua venda, compra e exportação permanente são proibidas.

Contudo, os fósseis brasileiros ainda são explorados de forma ilegal e vendidos para museus e coleções particulares no exterior. Nesses países, são estudados por pesquisadores estrangeiros. Muitas vezes, eles ignoram a forma com que esses materiais foram parar em seus países e realizam suas pesquisas normalmente.

Para ilustrar a forma como alguns paleontólogos estrangeiros enxergam a questão, vamos ao exemplo do fóssil brasileiro Tetrapodophis amlectus. Descrito inicialmente por Martill e colaboradores em 2015 como uma cobra de 4 patas, o autor principal disse à revista Science que: “pessoalmente, não me importo nem um pouco com como ou quando o fóssil veio do Brasil”.

David Martill já descreveu diversas espécies brasileiras depositadas em coleções no exterior. Entre elas estão Tetrapodophis amlectus, Irritator challengeri e “Ubirajara jubatus”. Além disso, publicou um artigo defendendo que paleontólogos devem infringir as leis de países como o Brasil em nome da ciência.

Fóssil de Tetrapodophis amlectus, hoje interpretado como um lagarto aquático, está depositado em uma coleção particular na Alemanha.

Uma das principais recomendações para combater essa face do colonialismo recai sobre as revistas científicas. A recomendação é de que as revistas deveriam exigir que os autores apresentassem licenças de coleta e exportação quando os estudos são baseados em fósseis depositados fora dos seus países de origem.

Colaboração x exploração

Colaborações internacionais são bem-vindas e enriquecem a construção de conhecimento. Contudo, colaborar é diferente de explorar. Colaborações internacionais valorizam os pesquisadores regionais, de onde saem os materiais estudados. Cientistas locais são os que se envolvem com as suas comunidades e realizam a divulgação das pesquisas para a população em geral.

Entre as vantagens das colaborações estão o compartilhamento dos custos, de tecnologia e instalações, além da troca de experiências. As colaborações internacionais agregam às pesquisas uma grande diversidade de metodologias e pontos de vista intelectuais e culturais.

A exploração, por outro lado, mantém a lógica colonialista que enriquece apenas o colonizador, ou cientista paraquedista. Dessa vez, não com ouro ou pau-brasil, mas com artigos científicos e materiais estrangeiros depositados em seus museus.

Quando puderem visitar um museu nos Estados Unidos ou Europa, reparem na quantidade de materiais de outros países expostos. Sejam fósseis, artefatos indígenas ou de povos tradicionais, geralmente das Américas ou do continente africano. Eles estão por toda parte.

E aí, já conhecia os casos desses dinossauros? Deixe sua opinião e dúvidas nos comentários!

Referências:

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Conteúdo escrito por:
Paleontóloga, licenciada em Ciências Biológicas, mestre em Geociências e doutoranda em Zoologia pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde pesquiso sobre tartarugas fósseis. Escrevo ciência, meio ambiente, a história da vida na Terra e a nossa relação com o planeta.

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22 abr. 2024

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