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Qual a relação entre a tributação e a desigualdade de gênero?
22 ago 2023
22 ago 2023

Qual a relação entre a tributação e a desigualdade de gênero?

Qual a relação entre a tributação e a desigualdade de gênero?

A desigualdade de gênero é um problema complexo que afeta muitos aspectos da nossa vida em sociedade. Um deles, talvez menos conhecido, é a relação entre desigualdade de gênero e a tributação. Sabemos que há diversos gêneros com os quais as pessoas podem se identificar, apesar disso, a linguagem legal e as pesquisas sobre o tema ainda fazem as análises por uma perspectiva, majoritariamente, baseada na definição “homem” e “mulher”. Desse modo, iremos manter o mesmo uso neste texto.

Vale pontuar que, conforme a necessidade de consumo de cada um, e condição familiar, ter ou não filhos, por exemplo, a tributação poderá afetar mais ou menos a renda dessa pessoa. E, por isso, é importante que as pesquisas foquem também nas diversas diferenças de gênero para que essas desigualdades sejam avaliadas e políticas públicas específicas sejam criadas.

Segundo a pesquisa Global Gender Gap Report 2021, feita pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil ocupa a 25° posição entre os 26 países da América Latina avaliados no ranking de igualdade de gênero. Isso evidencia como há uma grande desigualdade de gênero no país. Além disso, a pandemia da Covid-19 agravou a situação das mulheres. A pesquisa também mostra que, antes da pandemia, a expectativa era de que a igualdade de gênero no Brasil fosse alcançada em 99,5 anos, mas agora essa expectativa é de 135,6 anos.

Nesse contexto, podemos considerar que diversos fatores contribuem para a situação, até eventos inesperados como a pandemia. Devido ao impacto que as ações cotidianas causam nas diferenças entre gêneros, será que a tributação pode ser um fator que piora essa situação? 

Como os tributos estão presentes em todo nosso cotidiano, na compra de produtos, no recebimento de salários, entre tantos outros, é evidente que as cobranças impactam a todos. Neste post, vamos explorar a relação entre a tributação brasileira e a desigualdade de gênero. Quer saber mais sobre o assunto? Então, segue com a gente!

→ Neste eixo do projeto, conversamos com a Luiza Guanabara, estagiária de direito tributário do Mattos Filhos e discutimos qual o papel da tributação no combate às desigualdades. Confere esse papo aqui:

Por que as mulheres pagam mais tributos sobre o consumo?

Primeiramente, precisamos pontuar que a maior parte da tributação brasileira é feita por meio dos tributos sobre bens e serviços. Então, podemos dizer que: o que mais impacta os cidadãos, de modo geral, é o consumo, com os tributos inseridos no preço final. Tal aspecto é resultado de um sistema tributário regressivo. Se quiser conhecer outros tipos de sistema, como o neutro ou progressivo, acesse nosso post  Sistema Tributário Nacional: como funciona?

Então, aqui já temos uma diferença inicial: as mulheres possuem necessidades de consumo diferentes dos homens, com isso, ambos vão pagar diferentes tributos. Quem irá pagar mais nesse contexto? Muitas vezes, as mulheres. 

Imagem em preto e branco com vários tipos de absorventes, representando os produtos com alta tributação que contribuem para desigualdade de gênero.
O custo dos absorventes contribui para desigualdade de gênero e pobreza menstrual. Imagem: Freepik.

Exemplo dessa desigualdade de gênero é a cobrança de ICMS, um tipo de imposto que é cobrado sobre produtos, por exemplo, os absorventes. Isso porque em muitos estados esse item não é considerado um bem essencial e possui uma tributação mais alta do que itens considerados essenciais, como arroz e feijão. Dessa forma, mensalmente, as pessoas que menstruam acabam pagando mais do que aqueles que não possuem tal necessidade.

Somado a isso, há um fenômeno chamado “pink tax”, em uma tradução literal “tributo rosa”, que é caracterizado por um aumento das porcentagens de cobrança de tributos sobre qualquer produto definido como “feminino” por possuir algum tipo de estampa floral ou ser rosa, por exemplo. Assim, os produtos se tornam, em média, 12% mais caros se comparado a outros em versões consideradas “masculinas”. Um exemplo disso pode ser visto em lâminas de barbear ou produtos esportivos, onde a versão rosa do produto é mais cara.

Seja nos produtos essenciais, seja em produtos não essenciais, percebe-se que aquilo julgado como “para mulheres” acaba por se tornar mais caro. Como o tributo sobre produto corresponde a um percentual do custo, produtos mais caros terão uma cobrança maior. Por exemplo, se o produto tiver um valor de R$ 30,00 e a alíquota do imposto for 10%, isso irá tornar o produto R$ 3,00 mais caro. Mas se o valor for R$ 35,00, ele se tornará R$ 3,50 mais caro.

Outros produtos de uso essencial, como bombas de amamentação, adaptadores de silicone para amamentação e sabonete íntimo possuem ICMS de 18% e, em alguns casos, há também cobrança de 10% de IPI, segundo o livro Política Fiscal e Gênero, de Luciana Grassano Melo. Desse modo, a tributação pode contribuir tanto para a pobreza menstrual como também para uma piora na qualidade de vida de mães e gestantes.

No final, o custo da tributação para as empresas é repassado para os consumidores e contribui para que produtos destinados para um determinado público sejam mais caros, mesmo que possuam a mesma função de um similar com cores diferentes. 

As diferenças no mercado de trabalho impactam a forma como a tributação ocorre?

A busca por igualdade em oportunidades de trabalho e igualdade salarial continuam sendo pauta em diversas discussões que buscam a diminuição da desigualdade de gênero. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, em 2019, as mulheres ganhavam 20,5% a menos do que os homens.

Essa parcela que recebe menos acaba pagando proporcionalmente mais tributos se comparado à parcela que recebe mais devido ao sistema tributário regressivo utilizado no país. Para exemplificar, segundo Microdados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF 2017/2018), entre as mulheres 10% mais pobres, o gasto total com tributos correspondia a 31,42% da renda. Enquanto, para as mulheres mais ricas, apenas 20,55% da renda mensal era destinada ao pagamento de tributos. 

Isso evidencia que parte significativa da renda de mulheres mais pobres é destinada ao consumo de itens para subsistência e, consequentemente, ao pagamento de tributos, o que prejudica a possibilidade de utilização do dinheiro recebido para promover a sua ascensão social.

Certamente a tributação não é a única causa dessa desigualdade, mas ela acaba por dificultar que esse cenário seja modificado, já que parte significativa de uma renda menor será destinada ao pagamento de impostos. É importante ressaltar que, dentre as mulheres, as negras acabam sendo mais prejudicadas, uma vez que as questões de raça e classe somam-se às questões de gênero. Para saber mais sobre isso, acesse nosso post Desigualdade racial: como a tributação pode combatê-la?

A relação entre pensão alimentícia e desigualdade de gênero

Há uma frase que ouvimos comumente no país, “no Brasil, só deixar de pagar pensão dá cadeia”. Tal frase geralmente é dita referindo-se a homens que não fazem o pagamento adequado, o que já evidencia uma diferença de gênero, já que, na maioria das vezes, recai sobre as mulheres a responsabilidade do cuidado dos filhos.

Em 2022, o Conselho Nacional de Justiça apresentou um aumento significativo de 17% nos pedidos por pensão alimentícia. Além disso, de acordo com o jornal Valor Econômico, em 2020, em 57% dos casos, a guarda dos filhos foi dada à mulher, sem uma divisão igualitária das responsabilidades parentais. 

Imagem em preto e branco, mãe e filho estão sentados no sofá sorrindo, representado como a desigualdade de gênero foi promovida pela pensão alimentícia.
A tributação sobre pensão alimentícia, modificada só em 2022, gerava desigualdade de gênero. Imagem: Freepik.

Nesse contexto, que já evidencia a desigualdade de gênero, até 2022, a situação era ainda pior para as mulheres. Isso porque, por um lado, a lei tributária brasileira permite que aquele que paga a pensão utilize esse valor como uma dedução no cálculo do imposto de renda, ou seja, tenha um desconto no valor do imposto de renda. Enquanto que aquele que recebia a pensão, na maioria das vezes a mulher responsável pela criança, pagava imposto de renda sobre o valor recebido como pensão.

Desse modo, enquanto o responsável por pagar a pensão – na maioria das vezes, os homens – eram beneficiados com essa disparidade (diferença) na forma de tributação, a parte que recebia a pensão – normalmente, as mulheres – ficava encarregada de pagar o imposto de renda sobre os valores recebidos. Havia, então, um estímulo para desigualdade de gênero devido à lei tributária.

Como essa situação contrariava garantias constitucionais, o STF, no julgamento da ADI n° 5.422/DF, definiu que a pensão é utilizada para subsistência, ou seja, garante a sobrevivência do menor e não é um ganho de patrimônio, dessa forma, ela não deve ser considerada renda e, portanto, não deve ser tributada. Ao mesmo tempo que isso foi um ganho para as mulheres, também evidenciou por quanto tempo elas foram prejudicadas pela cobrança do imposto sobre pensão, já que a isenção sobre esses valores somente foi reconhecida em 2022.

Conclusão

Neste texto, apresentamos como a desigualdade no Brasil está ligada às questões de gênero. Mas não é só isso, há também questões de raça e classe que se inserem nesse contexto. Se quiser saber mais sobre a relação entre desigualdade racial e tributação, acesse nosso post anterior Desigualdade racial: como a tributação pode combatê-la?

Além disso, há uma intersecção, ou seja, uma relação, entre esses três aspectos da vida do sujeito: raça, gênero e classe que irão influenciar diretamente em quais espaços, oportunidades e privilégios terá acesso ou não. Como essas questões são estruturais, a maneira como a tributação afeta cada uma dessas pessoas também será diferente.

No que se refere ao gênero, vimos que as mulheres acabam sendo prejudicadas por estarem em posições com menor renda e que, devido ao sistema tributário regressivo, pagam proporcionalmente mais tributos. Soma-se a isso a uma tributação mais elevada nos produtos essenciais desse grupo ou naqueles destinados ao público “feminino” e sua maior participação no cuidado com os filhos.

Com isso, a desigualdade de gênero pode ser acentuada pela tributação. Ao mesmo tempo que ela pode ser utilizada como ferramenta para promover políticas públicas e diminuir essas diferenças. No próximo post, falaremos sobre como a taxação de heranças pode facilitar a distribuição de riquezas no país. Continue acompanhando o projeto para saber mais!

→ Neste vídeo, apresentamos de forma simples e didática qual o papel da tributação no combate à desigualdade. Clique no play para começar:

Fontes:

  1. Instituto Mattos Filho
  2. Global Gender Gap Report 2021
  3. Brasil é o 93° em indíce internacional de paridade de gênero
  4. Carga tributária reforça desigualdade de gênero 
  5. Tributação e Desigualdade de Gênero e Classe no Brasil (dado POF, pag. 23)
  6. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5422 

Autores:

  1. Amanda Casseb Reis Ramos
  2. Isabele Monteiro Zeitune
  3. Leonardo Linck Squillace
  4. Luiza Linardi Guanabara
  5. Mariana Mativi
  6. Marina da Silva Costa
  7. Pamela Vieira de Souza Ramagnoli
  8. Pâmela Larissa Miguel Gottardinie
  9. Raimundo Vinicius

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