Desafios para combater a desigualdade social no Brasil: Dados pandêmicos #3

Publicado em:
Compartilhe este conteúdo!
Desigualdade social. Imagem: Freepik.
Desigualdade social. Imagem: Freepik.

A série Dados pandêmicos é uma parceria entre Politize! e Instituto Norberto Bobbio. Por meio da criação de infográficos e posterior análise teórica, apresentamos dados produzidos nos últimos dois anos que revelam como a pandemia de Covid-19 impactou – e ainda impacta – a sociedade brasileira como explicitam suas fissuras.

Acompanhe!

Veja também: 
Violência doméstica na pandemia: Dados pandêmicos #1
Abandono escolar e crise educacional: Dados pandêmicos #2

A circulação do novo coronavírus desencadeou um cenário extraordinário na experiência social. O deslocamento de pessoas por todo o globo terrestre permitiu a ampliação massiva da contaminação da doença, de modo que inúmeras crises se desenvolveram em regiões distintas do planeta. A gravidade da situação pandêmica foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) quando afirmou, em janeiro de 2020, que a expansão desenfreada do vírus SARS COV-2 configura uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). 

Embora os efeitos produzidos na área da saúde sejam expressivos e evidentes, o alastramento da enfermidade em todos os continentes também produziu consequências que superam as dimensões sanitárias. É possível observar que os impactos da COVID-19 afetaram a qualidade de vida da população brasileira. Os Dados Pandêmicos #1Violência Doméstica  e #2Abandono Escolar e Crise Educacional, por exemplo,  ilustram outros efeitos perversos gerados por essa situação. Assim, se por um lado a pandemia criou novos desafios, por outro agravou significativamente uma série de problemas já presentes nas democracias.   

Dentre os principais percalços para o pleno desenvolvimento democrático, destaca-se a questão da desigualdade social. Isto é, o alargamento das fronteiras econômicas que separam os mais pobres dos mais ricos gera empecilhos para a consolidação dos direitos humanos nos estados que adotam a democracia como modelo de organização política. Esta é uma situação prejudicial para a construção de uma existência digna. Nas palavras do filósofo italiano Norberto Bobbio, “(…)sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos’’ (BOBBIO, 2004. p. 7). 

Por isso, o terceiro texto da série Dados Pandêmicos objetiva traçar um quadro geral sobre o aumento da desigualdade social no Brasil durante os dois anos da pandemia. Entretanto, é importante lembrar que se trata  de um problema estrutural e anterior à crise da saúde pública. Essa afirmação encontra-se ilustrada no relatório de 2019 do Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (PNUD), segundo o qual o país ocupava a 79ª posição de pior Índice de Desenvolvimento Humano do Mundo¹. 

Leia também: Desigualdade Social: um problema sistêmico e urgente

Um elemento estrutural do Brasil: a desigualdade de renda 

A estratificação social pode ser conceituada como a situação na qual “(…) os homens estão colocados em posições diferentes no que respeita ao acesso aos bens sociais a que todos, em geral, aspiram, mas cuja disponibilidade é escassa” (BOBBIO, 1998. p.443). Este é um sinônimo de desigualdade social, um problema complexo e resultado de diversas causas. Nesse sentido, a falta de acesso à educação de qualidade – como indicamos no texto Abandono Escolar e Crise Educacional –, a existência de uma política fiscal injusta, baixos salários e dificuldade de acesso aos serviços básicos são aspectos constantemente identificados como razões que contribuem para o distanciamento cada vez maior das condições de vida existentes.

O cenário em questão é conhecido há muito pela população brasileira – aqui, assim como em vários países em desenvolvimento, existe um abismo imenso entre as classes sociais. Porém, a variação de renda vinha sendo reduzida desde o início de 2018². Segundo o relatório “País estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras”, em 2017 o Brasil tinha 15 milhões de pessoas pobres, que correspondiam a 7,2% da população. Esse dado confirma o crescimento de 11% em relação a 2016 (13,3 milhões de pobres ou 6,5% da população), mas estagnou-se completamente em 2018. 

Todavia, a pandemia da COVID 19 colaborou ativamente para o agravamento desta situação, de tal modo que as conquistas antes consumadas reverteram-se em prejuízos drásticos à qualidade de vida.  O documento “Olhe para a fome”, formulado pelo Inquérito Nacional sobre a Insegurança Alimentar, dispõe de um dado importante: ao final de 2020, 19,1 milhões de brasileiros conviviam com a fome, mas em 2022 este número cresceu para 33, 1 milhões. Não só. Em 2022, mais da metade da população do país – 125 milhões de pessoas – convivia com algum grau de insegurança alimentar³.

Quer entender mais sobre desigualdade social no Brasil? Confira o conteúdo do Projeto Direito ao Desenvolvimento: Desigualdade social no Brasil: conheça o Novo Pacto Nacional das OSCs!

Desta forma, considerando todas as regiões do Brasil, 3 em cada 10 famílias relataram incerteza quanto ao acesso a alimentos em um futuro próximo e preocupação em relação à qualidade da alimentação no futuro imediato. Infelizmente, este não é um caso isolado em nosso continente. A tendência ocorre em toda a América Latina, que ao final de 2020 possuía 209 milhões de pessoas pobres, 22 milhões a mais que o ano anterior4.

A seriedade deste quadro fere os requisitos básicos de uma democracia, pois demonstra que grande parte das pessoas no Brasil não possuem as condições mínimas de subsistência e, portanto, não podem gozar do pleno exercício de seus direitos e deveres. Bobbio, por exemplo, em seu livro “O futuro da democracia“, traz uma importante reflexão sobre a necessidade do Estado de atentar-se à assistência de todos os cidadãos:  

“Se se observa este nexo entre processo de democratização e crescimento do estado assistencial do ponto de vista não apenas dos governados, ou seja, dos que apresentam, as demandas ao estado, mas também da parte dos governantes, ou seja, dos que devem dar as respostas, a conclusão não muda” (BOBBIO, 1996, p. 122).

Veja também nosso vídeo sobre desigualdade social!

O aumento do nível de desemprego 

As medidas de isolamento social, embora fundamentais para mitigar a  disseminação do SARS COV- 2, causaram prejuízos no exercício das atividades empresariais brasileiras. Segundo uma matéria produzida pela revista Exame5, o recorde de quase 14,5 milhões de desempregados em 2021 possui como uma de suas principais causas o fechamento de estabelecimentos comerciais. A necessidade de restringir a circulação de pessoas afetou pontos de venda em todo o território nacional. De acordo com a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), apenas em 2020, 75 mil estabelecimentos foram fechados no Brasil.

Esta situação diminui a oferta dos postos de trabalho. Com isso,  o nível de desemprego subiu significativamente desde março de 2020, enquanto a renda média da população decaiu. 

O estudo “Efeitos da pandemia sobre o mercado de trabalho brasileiro: Desigualdades, ingredientes trabalhistas e o papel da jornada”,  realizado pelo Fundação Getúlio Vargas,  apontou que no primeiro trimestre da pandemia, a renda individual do trabalho apresentou queda média de 20.1% e a desigualdade, medida pelo índice de Gini, subiu 2.82%.

Por sua vez, a renda trabalhista da metade mais pobre caiu 27.9% contra 17.5% para os 10% mais ricos da população brasileira. A queda de renda média de 20.1% teve como principal impulsionador a redução da jornada de trabalho média, que diminuiu em 14,34%, enquanto a taxa de ocupação reduziu 9,9%.

Veja o infográfico que preparamos sobre o tema

O rosto da desigualdade brasileira: hierarquias sociais e étnico-raciais

A disseminação da pandemia no Brasil caminha de braços dados com a composição da riqueza no país. Isso significa que a parcela da população mais carente financeiramente sofreu impactos de proporções distintas daqueles que possuem mais concentração de renda. A própria contaminação pela doença é mais provável ocorrer entre pessoas hipossuficientes, por diversos fatores (LISBOA, 2021). Trata-se da população que mais usa transporte público, que possui menor acesso ao saneamento básico e com maior dificuldade de realizar o isolamento social sem perder o emprego.

Porém, a desigualdade não é definida no Brasil apenas por condições econômicas. O desenvolvimento da sociedade brasileira demonstra que há afinidades profundas entre pobreza e racismo. Portanto, os efeitos negativos da pandemia recaíram de uma maneira particularmente grave sobre a população negra que compõe 75% dos 13,5 milhões de brasileiros que vivem em extrema pobreza6

Um recente informe da Fiocruz demonstra que, na cidade de São Paulo, os negros têm 62% a mais de chance de morrer de COVID-19 do que brancos e o número de mortes por 100 mil habitantes chega a crescer dez vezes em áreas com maior e menor IDH. 

Por sua vez, no Rio de Janeiro, a taxa de letalidade é de 2,4% no bairro de elite do Leblon, o que se opõe aos 30,8% do bairro periférico da Maré, que possui maior concentração de pessoas não brancas7

A histórica desigualdade socioeconômica brasileira modela a pandemia do novo coronavírus no país. O relatório “A desigualdade Mata”  indica que  negros são 1,5 vezes mais propensos a morrer pela doença e que uma pessoa afrodescendente com baixos níveis de educação e analfabetismo tem quase quatro vezes mais chances de morrer do que uma pessoa afrodescendente com nível superior. 

Neste contexto de profundas desigualdades étnico-raciais e econômicas, a quarta edição do boletim “Desigualdade nas Metrópoles” aponta que a desigualdade de renda entre os mais ricos e pobres nas grandes cidades brasileiras aumentou entre o primeiro trimestre de 2020 e 2021. De acordo com o levantamento, no primeiro trimestre de 2020, a renda dos 10% mais ricos era 29,6 vezes maior do que a dos 40% mais pobres. Por sua vez, no primeiro trimestre de 2021, a diferença passou a ser de 42,3 %.  

Este número é ainda mais alarmante quando olhamos para o acúmulo de dinheiro da parcela mais rica dos brasileiros. De acordo com uma notícia da OXFAM Brasil8, no país são 55 bilionários com riqueza total de 176 bilhões de dólares norte-americanos. Além disso,  desde março de 2020, 10 novos bilionários surgiram no país. 

O aumento da riqueza dos bilionários ao longo da pandemia foi de 30%, enquanto 90% da população teve uma redução de 0,2% entre 2019 e 2021. Isso significa que a renda desses indivíduos aumentou mais durante a pandemia do que nos últimos 14 anos. Precisamente, destaca-se ainda que os 20 maiores bilionários do país têm mais riqueza (US$ 121 bilhões) do que 128 milhões de brasileiros (60% da população).

Veja também nosso vídeo sobre desigualdade social e meritocracia!

A igualdade como um valor social

Os dados pandêmicos apresentados revelam que a situação brasileira agride, sistematicamente, o princípio da igualdade previsto no artigo  5º caput da Constituição Federal. Trata-se de um princípio  intrínseco à preservação do Estado de Direito, sem o qual é impossível atingir as verdadeiras ambições democráticas. O filósofo Norberto Bobbio conceitua a igualdade em seu livro “Igualdade e Liberdade” como a aspiração permanente da humanidade, um valor indispensável para que a convivência entre pessoas ocorra de forma ordenada e civilizada. Como se vê, a igualdade existe entre partes, entre duas ou mais pessoas e não pode ser utilizada de forma abstrata. 

Essa ideia baliza a própria constituição de uma sociedade mediada pelo direito. Isto é, não é possível a existência de um Estado que ordena a vida de pessoas sem que haja o respeito ao princípio da igualdade que  “(…) pressupõe para a sua aplicação, a presença de uma pluralidade de entes, cabendo estabelecer que tipo de relação existe entre eles (…)” (BOBBIO, 1997. p 13). Portanto, tornar a igualdade inafastável da sociedade faz com que esta se aproxime do próprio valor de justiça

De todo modo, a igualdade consiste apenas numa relação: o que dá a essa relação um valor, o que faz dela uma meta humanamente desejável, é o fato de ser justa. Em outras palavras, uma relação de igualdade é uma meta desejável na medida em que é considerada justa, onde por justa se entende que tal relação tem a ver, de algum modo, com uma ordem a instituir ou a restituir (uma vez abalada), isto é, com um ideal de harmonia das partes de um todo, entre outras coisas porque se considera que somente um todo ordenado tem a possibilidade de durar (BOBBIO, 1997.p. 15) 

Os Dados Pandêmicos #3 demonstram o quão é necessário, para a preservação da justiça democrática a constituição de uma sociedade minimamente igual, na qual  todos possuam pelo menos as mínimas condições de sobrevivência. Como vimos, o problema é complexo e abrange aspectos muito mais amplos do que a desigualdade de renda. Assim o horizonte que se apresenta deve afastar soluções fáceis e rápidas pois o fundamental é perseguir construções cotidianas e abrangentes.

Referências:

¹ UOL – Com IDH quase estagnado, Brasil fica em 79º lugar em ranking da ONU

² A Pesquisa Mensal por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, demonstrou que em 2018 1% mais rico ganha 33,8 vezes mais que os 50% mais pobres.

³ Existem 3 graus de insegurança alimentar. O primeiro é a leve, que diz respeito à incerteza quanto ao acesso a alimentos em um futuro próximo e/ou quando a qualidade da alimentação já está comprometida. O segundo é a  moderada, que diz respeito à  quantidade insuficiente de alimentos. Por fim o terceiro grau é o grave, no qual a privação no consumo de alimentos e fome.

4 O Panorama Social da América Latina 2020.

5 Exame – Desigualdade social em tempos de pandemia

6 Valor Econômico – IBGE: Dos 13,5 milhões vivendo em extrema pobreza, 75% são pretos ou pardos

7 De acordo com o Censo Populacional da Maré, em 2018, 52,9% da população que compunha o bairro da Maré se auto declarou como parda e 9,2% se autodeclarou como negra. Acesso em: https://apublica.org/wp-content/uploads/2020/07/censo maré-web-04mai.pdf

8 Oxfam – Um novo bilionário surgiu a cada 26 horas durante a pandemia, enquanto a desigualdade contribuiu para a morte de uma pessoa a cada quatro segundos

  • BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. tradução Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. — Nova ed. — Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. — 7ª reimpressão.
  • BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. tradução Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. – Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1 la ed., 1998
  • BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira – Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.
  • BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2a ed. – Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.
  • LISBOA, Camila Pereira. Pandemia e aumento de desigualdade de renda no Brasil: desafios ao suas. Revista de Desenvolvimento Social Vol. 27, n. 2, jul/dez 2021 p. 197 – 219. PGDS/Unimontes – MG
WhatsApp Icon

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe este conteúdo!

ASSINE NOSSO BOLETIM SEMANAL

Seus dados estão protegidos de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)

FORTALEÇA A DEMOCRACIA E FIQUE POR DENTRO DE TODOS OS ASSUNTOS SOBRE POLÍTICA!

Fonseca, Júlia. Desafios para combater a desigualdade social no Brasil: Dados pandêmicos #3. Politize!, 21 de julho, 2022
Disponível em: https://www.politize.com.br/desigualdade-social-no-brasil/.
Acesso em: 10 de out, 2024.

A Politize! precisa de você. Sua doação será convertida em ações de impacto social positivo para fortalecer a nossa democracia. Seja parte da solução!