É provável que você já tenha ouvido falar de Carolina Maria de Jesus. Pode ser até que tenha estudado sobre ela na escola. Mas você sabia que até pouco tempo quase não se falava dessa poetisa e escritora tão importante para o Brasil?
Por isso, a Politize! vai te explicar quem foi Carolina Maria de Jesus. Uma mulher negra, favelada, semianalfabeta e de muita importância na construção do pensamento social e político brasileiro.
Carolina Maria de Jesus: vida e morte
Nascida em Sacramento (MG) em 14 de março de 1914, Carolina foi uma escritora, compositora, cantora e poetisa brasileira. Quando criança foi renegada pelo pai por ser uma filha fora de seu casamento sendo maltratada durante toda a infância.
Aos sete anos foi obrigada pela mãe a frequentar a escola, pois a esposa de um fazendeiro rico decidiu pagar seus estudos. Por lá ficou apenas dois anos. Tempo suficiente para aprender a ler, escrever e adquirir gosto pela leitura.
Em 1937, quando sua mãe faleceu, decidiu mudar-se para São Paulo para tentar melhores condições de vida. Conseguiu emprego de empregada doméstica na casa do médico Euryclides de Jesus Zerbini.
Em seus períodos de folga, dedicava-se a ler os livros que seu chefe tinha em casa. Além de empregada doméstica, Carolina era lavadeira e catadora de papel.
Por opção nunca se casou. Teve três filhos de pais diferentes. Separou-se de cada um por motivos distintos. Acreditava que não precisava de um homem ao lado para construir sua vida. Sozinha, criou e educou os filhos, escolarizando os três.
Em São Paulo residiu primeiramente na favela do Canindé, às margens do rio Tietê. Ergueu uma casa do zero, com as próprias mãos, utilizando materiais encontrados no lixo.
A vida na favela foi inspiração para seu livro mais vendido “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”. Nele, narrou seu dia-a-dia de muita miséria e muita fome dando a ela a cor amarela. Também criticou os políticos e a política em plena década de 1950.
A escritora
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Carolina escrevia em cadernos e folhas que encontrava no lixo. Foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas quando esteve encarregado de escrever uma matéria sobre a favela do Canindé. A história que o jornalista buscava, estava escrita nos cadernos que Carolina guardava. Audálio garante:
“Repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela.”
A reportagem, fruto do encontro, foi feita a partir da reprodução de trechos dos diários de Carolina. Mais tarde, em 1960, transformou-se no livro “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”.
Em poucos meses, sucessivas edições atingiram a marca de 100 mil exemplares vendidos. Toda mídia da época, do Brasil e do mundo, abriu espaço para o livro e história da autora.
Em vida, Carolina publicou 5 livros. Suas obras foram traduzidas em 16 línguas e vendidas em mais de 40 países. Foram mais de 1 milhão de cópias vendidas.
Segundo o historiador norte-americano Robert M. Levine, só pela venda de Quarto de Despejo nos Estados Unidos, Carolina deveria ter recebido algo em torno de 150 mil dólares. Não há comprovação de que ela tenha recebido sequer uma pequena parte disso.
Diante o sucesso de seu primeiro livro, passou a ser hostilizada na favela como se não pertencesse mais àquele lugar. Mudou-se para Santana, bairro de classe média na Zona Norte de São Paulo, onde também era hostilizada.
Escreveu “Casa de Alvenaria” como crítica à estrutura da sociedade atacando justamente o núcleo social ao qual passou a fazer parte.
Reportagens da época demonstram que os pagamentos feitos à Carolina pela venda de seus livros eram pequenos, mas constantes. Porém, não suficientes para lhes garantir uma vida melhor do que pouco acima da linha da pobreza.
O historiador Robert Levine afirma que ela vivia em condições melhores que na favela, mas muito abaixo do esperado. Afinal, Carolina era uma autora cujos livros vendiam muito bem em diversos países.
Em 13 de fevereiro de 1977, Carolina faleceu aos 62 anos na sua casa em Parelheiros, Zona Sul de São Paulo. Foi vítima de uma crise de insuficiência respiratória devido à asma que havia se agravado. Publicou 5 livros em vida e mais 4 póstumos.
Desde 2014, a pesquisadora Rafaella Fernandez tem reunido e publicado obras inéditas de Carolina. Foram descobertas 5 mil páginas escritas, sendo:
- 7 romances;
- 100 poemas;
- 5 peças de teatro;
- 12 sambas enredo;
- Cerca de 63 “narrativas híbridas” entre contos, crônicas, fábulas e autoficção.
São 58 cadernos escritos à mão havendo, ainda, cartas, provérbios e letras de canções.
Carolina: uma intérprete do Brasil
Em entrevista à Revista Cult, Rafaella Fernandez disse que:
“Carolina de Jesus sempre foi pautada por Quarto de despejo (1960). Sua própria filha [Vera Eunice de Jesus] não tinha dimensão da obra da mãe: achava que ela escrevera apenas um diário. Mas ela tem uma produção muito maior e mais diversa que isso.”
Em grande parte, os textos de Carolina falam da mulher e da mulher negra. Mas sempre desenvolvendo ideias e conceitos novos com caráter engajador. Escrevia de um jeito “bonito” porque sabia que na condição de mulher negra e favelada só poderia se legitimar assim.
Em 1940, através do poema “Os feijões” já tratava das cotas para negros em universidade.
Por meio do livro “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”, Carolina revelou o lado B de um progresso econômico (a era de ouro do desenvolvimentismo).
No título do livro, definiu a grande metrópole dividida entre “sala de visita” e “quarto de despejo”. Uma parte organizada segundo a régua civilizatória, a outra como um depósito de restos da sociedade:
“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.”
Os intérpretes do Brasil
A imagem do espaço é um clássico do pensamento social no Brasil. Especialmente no que se convencionou chamar de grandes intérpretes do país. Trata-se de polaridade – uma imagem de “dois Brasis” – que ajudaria a decifrar a pluralidade da sociedade brasileira.
Entre as décadas de 1940 e 1960 algumas das principais obras produzidas a respeito dos dilemas e das perspectivas nacionais foram identificadas como “interpretações do Brasil”.
No entanto, tais interpretações eram formuladas desde 1914 e continuaram até 1975 buscando entender a formação da sociedade brasileira desde a época colonial.
Os intérpretes do Brasil são autores que buscaram compreender o país a partir de diversas áreas do conhecimento, como história, literatura, economia, sociologia, antropologia e filosofia. Possuem diferentes perspectivas ideológicas, conferindo diversidade às narrativas e ensaios sobre o Brasil.
A obra “Casa-grande e Senzala” de Gilberto Freyre, por exemplo, foi citada como uma das mais importantes do século XX em pesquisa feita com grupo de cientistas sociais, segundo Gildo Marçal Brandão.
A questão central da obra freyreana é o mito da democracia racial – “fórmula mágica da paz”. Uma visão nostálgica de um país miscigenado, sem conflitos raciais, como nos Estados Unidos. Assim, o livro apareceu como o grande achado e o limite para o pensamento social brasileiro.
Quase 100 anos após a publicação de “Casa-grande e Senzala”, o pensamento conservador se fixa nas ideias de Gilberto Freyre para combater os identitários.
Importante salientar que o mito da democracia racial começou a ser superado já na segunda metade do século XX. Clóvis Moura por exemplo, é um dos principais críticos do pensamento freyreano.
Denota-se que Carolina Maria de Jesus, com “sala de visita” e “quarto de despejo”, se colocou na galeria dos intérpretes do Brasil. Fez uso do antagonismo, assim como muitos dos pensadores brasileiros. A novidade é o fato dela trazer a visão a partir do olhar dos pobres que, em geral, estão impedidos de falar.
Pode-se afirmar que Carolina é a precursora de uma nova geração de escritores que está mudando a literatura brasileira nas últimas décadas. Paulo Lins, Ricardo Aleixo, Geovani Martins, Grace Passô, Conceição Evaristo, trazem um ar renovado e fecundo para a produção literária.
O reconhecimento tardio de Carolina
Segundo o autor moçambicano Mia Couto, nosso passado nos foi dado. Um passado construído, uma ficção, que conta uma história única daqueles que estavam no poder e que apagaram outras versões.
A atriz Elisa Lucinda declarou sobre o apagamento de Carolina Maria de Jesus:
“Ela dizia que a favela era o quarto de despejo das zonas ricas da cidade, o lugar onde se joga os trastes que não se quer ver. E isso, para mim, é o que até hoje nossa literatura faz com Carolina Maria de Jesus, que é colocá-la no quarto de despejo. Não querem que ela saia de lá, querem que ela fique na senzala.”
O livro “Quarto de Despejo: diário de uma favelada” certamente foi um enorme sucesso. Contudo, as demais obras de Carolina não foram tão reconhecidas. A falta de transparência no pagamento dos royalties pela venda de seus livros e os grandes gastos da escritora ajudando terceiros a levaram ao declínio.
Fora dos holofotes e sem a vida socialmente ativa proporcionada pela fama, Carolina facilmente caiu no esquecimento popular e faleceu em situação de pobreza. Foi vista catando papel novamente para prover sua alimentação e a de seus filhos.
Depois de sua morte, a escritora tem sido redescoberta em ciclos espaçados. O lançamento póstumo de “Diário de Bitita”, na França, em 1982, reavivou sua memória no imaginário popular. Em 2014, ano de seu centenário, voltou a ser celebrada, sendo tema de exposições, biografias e incontáveis estudos acadêmicos.
A escritora Conceição Evaristo confirma a hipótese de que Carolina é vítima de um certo ostracismo (exílio), ou melhor ost(racismo). Contemporâneos como Jorge Amado, Clarice Lispector e Guimarães Rosa preservaram seu prestígio literário até o último dia de suas vidas. Carolina Maria de Jesus morreu sem conseguir desfrutar do mesmo respeito.
Atualmente estamos em um dos ciclos de redescoberta e reconhecimento da autora:
- 2017: 40º ano de sua morte foi publicada sua biografia de autoria de Tom Farias;
- 2019: UNICAMP e UFRGS tornaram “Quarto de Despejo” leitura obrigatória para seus vestibulares;
- 2020: a editora Companhia das Letras anunciou a publicação de suas obras, criando um conselho para editar os manuscritos. Nele estão presentes Vera (filha de Carolina), Conceição Evaristo e as pesquisadoras Amanda Crispim, Fernanda Felisberto, Fernanda Miranda e Raffaella Fernandez;
- 2021: UFRJ concede título de Doutora Honoris Causa à Carolina.
Você já conhecia Carolina Maria de Jesus? Estudou na escola ou para prestar vestibular? Concorda que ela deva ser considerada uma intérprete do Brasil? Deixe seu comentário a respeito do impacto da vida, pensamento e obras de Carolina.
Referências:
- FARIAS, Tom. Carolina: uma biografia – Rio de Janeiro: Malê, 2017.
- JESUS, Carolina Maria. Quarto de Despejo: diário de uma favelada – 10ª edição – São Paulo: Ática, 2014.
- BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do Pensamento Político Brasileiro. Revista Dados. volume 48. n. 2. IESP/UERJ, 2005. p. 231-269
- Canal Tempero Drag – Mulheres Foda (episódio 03): Carolina Maria de Jesus
- Elástica – O (novo) renascimento de Carolina Maria de Jesus
- Levine, Robert M. (1994). «The Cautionary Tale of Carolina Maria de Jesus». Latin American Studies Association. Latin American Research Review (em inglês). 29 (1): 55-83.
- LESSA, Renato. O campo da ciência política no Brasil: uma aproximação construtivista. Revista Estudos Hum(e)anos. volume 2. n. 1. UFF, 2011. p. 3-31
- Revista Bula – Carolina Maria de Jesus, intérprete do Brasil
- Revista Cult – Carolina Maria de Jesus tem obra e legado discutidos em ciclo de palestras
- Revista Cult – Pesquisadora da Unicamp quer publicar textos inéditos de Carolina Maria de Jesus
1 comentário em “Carolina Maria de Jesus: uma intérprete do Brasil”
Merecidamente o Brasil precisa conhecer Maria Carolina de.Jesus. Precisa de reparação histórica Já. Esta brilhante mulher negra de tamanha sensibilidade no sentir e colocar no papel. Que rico legado de coragem; determinação e dignidade.
Tudo para família de Carolina q não deram p ela em vida. A lesaram de novo. Novamente. Uas vezes. Por este racismo e machismo destrutivo. Perverso. Literatura negra de negra!!!