Ditadura no Uruguai: do início ao fim

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Na imagem, militares andando. Conteúdo Ditadura no Uruguai

Assim como o Brasil, o Uruguai viveu sob uma ditadura que durou 12 anos, de 1973 a 1985. Na realidade, muitos países da América Latina passaram por ditaduras que, embora distintas em muitos aspectos, tinham diversas características em comum, como o autoritarismo, a violência contra seus cidadãos, a censura e o clima de medo que contagiou toda a sociedade.

Aprender sobre esses períodos da nossa história é importante para entender nosso contexto atual e também para evitar erros do passado. Nesse texto vamos explorar a linha do tempo da ditadura uruguaia, seu início, apogeu e decadência, e suas consequências para o país.

O que foi a Ditadura no Uruguai?

A ditadura no Uruguai começou oficialmente com um golpe de Estado em junho de 1973 e se estendeu até fevereiro de 1985. É conhecida como uma ditadura cívico-militar – devido à participação de um presidente eleito democraticamente no golpe, assim como de vários políticos e atores civis durante toda a ditadura

Nesse período a Constituição ficou em segundo plano, os partidos políticos estavam proibidos de funcionar, assim como sindicatos e grêmios estudantis, e os meios de comunicação foram duramente censurados. Os opositores ao regime, entre eles o conhecido grupo dos Tupamaros, foram perseguidos, presos, torturados e assassinados.

De acordo com dados apresentados pela Secretaria de Direitos Humanos para o Passado Recente da Presidência da República, 196 pessoas desapareceram por responsabilidade e/ou consentimento do Estado nesse período. Entre 1968 e 1985, 202 pessoas foram assassinadas.

Uma característica da ditadura uruguaia foram prisões prolongadas e massivas, muitas das quais eram feitas de maneira totalmente ilegal e confidencial. Por esse motivo, é difícil estimar um número total das prisões realizadas no período.

A violência marcou essa e muitas ditaduras na região. Segundo a professora de História e pesquisadora uruguaia Carla Larrobla, as ditaduras que se geraram entre os anos 70 ou mesmo antes aqui na América Latina compartilham características em comum.

“São ditaduras típicas da Guerra Fria, se instalam com o objetivo de desmantelar determinados movimentos e projetos revolucionários. Mas a preocupação não está somente em desmantelar o movimento guerrilheiro ou violento. O que fazem é criar estratégias e mecanismos vinculados ao medo para impedir que esses grupos revolucionários possam surgir”.

Segundo ela, o medo do comunismo na América Latina gerou governos opressivos que fomentavam o terror para destruir laços de solidariedade entre seus cidadãos. No Uruguai não foi diferente.

Contexto prévio

Os anos 60 foram uma época de muita agitação política e social, em parte devido à situação mundial e, no caso da América Latina, também graças à Revolução Cubana em 1959. “Antes o sonho revolucionário era somente um sonho, mas com a Revolução Cubana se torna possível. Era possível fazer a revolução e ganhar”, explica Larrobla.

Esse fortalecimento das ideias revolucionárias provocou um aumento de grupos e projetos políticos com propostas contrárias aos governos autoritários que lideravam a maioria dos países naquele momento. Surgiam como uma resposta a uma crise social e econômica que vinha assolando a população mundial desde os anos 50 e o período pós-guerra.

É nesse contexto que os Estados se tornam cada vez mais violentos em sua suposta luta contra o comunismo. A repressão, assim, se torna cada vez mais agressiva e até mesmo coordenada na região graças ao Plano Condor.

Por outro lado, os grupos revolucionários optam pela luta armada como forma de combater o sistema. Essa violência em escalada ataca ao Estado e à lógica da democracia liberal, e nesse contexto o Estado se defende colocando em prática mecanismos que justificam o terrorismo de Estado aos seus cidadãos.

Início da ditadura no Uruguai

Em 1972 o presidente recém eleito Juan María Bordaberry assumia o poder no Uruguai. Ele era filiado ao Partido Colorado, um dos partidos mais tradicionais do país. Naquele período, muitos grupos revolucionários atuavam para expressar seu descontentamento com a situação atual do país. Um deles é o Movimento para Liberação Nacional Tupamaros (MLN), que se tornaria mundialmente conhecido e do qual fez parte o ex-presidente uruguaio José Mujica.

Em abril o MLN realiza uma ofensiva contra o grupo de ultra-direita Esquadrão da Morte e, logo de uma jornada sangrenta que culminou com o assassinato de 11 pessoas, o Parlamento declara Estado de Guerra Interna e aprova a Lei de Segurança do Estado.

Essa decisão suspende as garantias individuais e justifica o contra-ataque aos Tupamaros, ação orquestrada pelas Forças Armadas que consegue enfim desmantelar a organização e prender vários de seus líderes. Medidas como essa foram usadas sistematicamente pelo governo como justificativa para combater à subversão.

Em fevereiro de 1973, numa tentativa de conter a crescente influência das Forças Armadas no governo, o presidente nomeia o General Antonio Francese Ministro da Defesa com a ideia de que ele poderia submeter os militares ao poder civil.

Sem sucesso, os militares se rebelam contra o Ministro e o Presidente em exercício, inclusive pedindo sua renúncia. Para contornar a situação, Bordaberry faz um acordo com os militares,  conhecido como o Pacto de Boiso Lanza, através do qual é criado o Conselho de Segurança Nacional (Cosena), integrado pelo Presidente, os ministros e os comandantes das Forças Armadas. É dessa maneira que a presença militar na vida pública do país se torna institucional.

Dissolução das Câmaras

Em abril os militares pedem ao Parlamento a destituição do senador Enrique Erro, do Frente Amplio, um partido mais jovem e de esquerda. A justificativa das Forças Armadas era que Erro estava vinculado ao MLN, mas o Senado nega o pedido.

Alguns meses depois, em junho, o Parlamento é dissolvido pelo próprio presidente Bordaberry, que suspende as atividades políticas dos partidos e das organizações de esquerda. Diferentemente do que aconteceu em outros países, no Uruguai não houve uma tomada de poder totalmente liderada pelas Forças Armadas. A participação civil foi fundamental para concretizar e continuar o processo ditatorial.

Consolidação do regime

Logo após a dissolução das Câmaras, uma greve geral de trabalhadores paralisou fábricas e instituições de ensino. Porém, foram duramente reprimidos e tiveram que abandonar a paralisação. Desde esse momento todos os direitos individuais foram suspensos e se inicia o período de ditadura militar que seguiria até 1985.

“Afirmo hoje, uma vez mais e nessas circunstâncias trascendentes para a vida do país, nossa profunda vocação democrática e nossa adesão sem reticências ao sistema de organização política e social que rege a convivência dos uruguaios. Junto a isso está a rejeição de toda ideologia de origem marxista que tente se aproveitar da generosidade da nossa democracia para se apresentar como doutrina salvadora e terminar como instrumento de opressão totalitária”, disse Bordaberry em um discurso veiculado por rádio em televisão no dia 27 de junho de 1973.

A partir do golpe, a militarização do Estado aumentou gradativamente e vários integrantes das Forças Armadas começaram a ocupar cargos no governo e da administração pública. O controle e a vigilância sobre a sociedade civil se tornaram norma, sempre justificada pela lógica de combate ao inimigo interno.

Em 1976, ano quando deveriam acontecer novas eleições, Bordabarry entrega aos militares uma proposta de reforma constitucional. Alguns dos pontos dessa reforma eram a proibição da circulação de ideias e grupos marxista e a eliminação da democracia representativa, já que o presidente passaria a ser eleito pelo Conselho de Segurança para um mandato com duração de 5 anos.

Os militares rejeitam a proposta e decidem destituir Bordaberry, mas tampouco organizam novas eleições. O vice-presidente Alberto Demicheli é então designado presidente interino. Nesse período é criado o Conselho da Nação, que teria entre suas responsabilidades designar o Presidente assim como os demais membros de âmbitos governamentais de extrema importância.

Por se opor a diversas resoluções militares, Demicheli também é levado a renunciar. Em seu lugar Aparicio Méndez (Partido Blanco) foi designado presidente. Ele já havia sido ministro e presidente do Diretório do Partido Nacional e governaria o país desde 1976 até 1981. Uma das primeiras ações de Méndez foi assinar uma série de Atos Institucionais que tinham caráter constitucional. Um desses Atos proibia o fim de toda atividade política no país.

O declínio e fracasso da ditadura no Uruguai

Em 1980 o governo convoca a população para um plebiscito no qual deveriam votar se eram a favor ou contra uma reforma constitucional que incluía, entre outras coisas, o Conselho de Segurança Nacional como parte do Poder Executivo e legitimava os Atos Institucionais. Os votos contrários ganharam, sendo 58%, contra 42% dos votos à favor. Depois disso, o governo militar é pressionado a começar a abertura em direção à democracia.

Em 1981 o Ato Institucional número 11 estabelece uma transição com duração de três anos para que eleições internas entre os partidos políticos autorizados. Durante esse período de transição, o presidente passa então a ser o tenente general Gregorio Alvarez. Em seu mandato uma recessão econômica severa assola o país, levando o governo a desvalorizar a moeda, o que provocou uma grave crise econômica e aumentou a insatisfação popular.

No ano seguinte, 1982, se realizam eleições internas entre os partidos, porém seus principais líderes estavam proibidos de participar. Diferentemente do Brasil, no Uruguai as eleições acontecem por um sistema de listas no qual os eleitores votam em listas de candidatos e não em indivíduos por separado.

Mesmo com a repressão dos movimentos mais contrários à ditadura, as listas ganhadoras são as que se associam aos opositores da ditadura. A partir desse momento começam a funcionar as Convenções partidárias e se geram mais conversações sobre a saída da ditadura.

A partir de 1983 muitas mobilizações populares começam a acontecer. Espaços culturais são usados para ações de resistência e luta contra a censura. Os grêmios começam paulativamente a voltar à ativa. Apagões e panelaços são frequentes formas de expressão de repúdio à ditadura.

Em novembro de 83 um ato no Obelisco da capital Montevidéu tem participação massiva. Durante o ato, o ator uruguaio Alberto Candeau leu uma proclama inspirada na ideia de “um Uruguai sem exclusões”:

“Aqui fazem ressoar sua vibrante reivindicação pela liberdade e democracia, que foi calada por tanto tempo, porém permaneceu viva na consciência da cidadania, que não admite discrepâncias porque o desejo de liberdade e a vocação democrática constituem o denominador comum de todos os homens e mulheres nascidos nessa terra”.

A partir de 1984 alguns Atos Institucionais são cancelados e presos políticos são liberados. Em novembro Julio María Sanguinetti (Partido Colorado) é eleito Presidente com 41% dos votos. Estava assim finalizada a ditadura no Uruguai.

capa de jornal. Conteúdo Ditadura no Uruguai

Larrobla aponta que outro fator determinante para o fracasso da ditadura era o próprio clima mundial. “Há determinados poderes econômicos, como por exemplo os Estados Unidos que deixam de dar ajuda militar a econômica a vários países, que fazem com que as ditaduras percam força. A pressão popular também tem impacto, já que a população volta a se mobilizar e resistir”.

Memória e justiça

Ainda que a ditadura e suas consequências tenham sido temas frequentes para alunos e pesquisadores nas universidades uruguaias, somente em 2005, com o primeiro governo nacional do Frente Amplio, começaram a suceder ações governamentais para reconstruir a memória histórica do período ditatorial.

A partir desse ano foram organizadas escavações em prédios militares em busca de corpos de desaparecidos. Também nessa época a Presidência criou uma equipe de historiadores para investigar os presos e desaparecidos durante a ditadura.

A professora Larrobla, que foi entrevistada pelo Politize! no dia 31 de março de 2020, fez parte de um grupo de apoio tanto às escavações e recuperação de restos, como do trabalho desses historiadores. Parte da sua responsabilidade era revisar documentos e depoimentos feitos sobre os distintos presos e desaparecidos.

“Sempre foi um tema que me interessou. Embora minha família não teve vítimas diretas da repressão, nem presos políticos, a maioria deles eram militantes do Frente Amplio então cresci com a política e a militância muito presentes”, conta Larrobla, que além de seu trabalho como pesquisadora, também busca trabalhar a ditadura com seus alunos adolescentes, já que esse assunto é parte dos temas obrigatórios no sistema educativo do país.

Embora para muitos jovens hoje em dia a ditadura pareça um tema distante de sua realidade, Larrobla explica que é possível despertar a atenção e interesse dos adolescentes com atividades de entrevistas a sobreviventes, investigação de suas árvores genealógicas, reconstrução de memória de seus bairros e outras. “Há discussões muito interessantes quando trabalhamos esse tema. Na sala de aula estão todas as memórias, não somente daqueles que sentiram a ditadura como algo horrível, mas também aqueles que vêm de famílias que estavam de acordo. O docente tem que aprender a moderar e também a sair de suas próprias convicções nessas discussões”.

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REFERÊNCIAS

Portal Montevideo: Breve historia de los 30 años de dictadura militar en Uruguay
Portal del Bicentenario Uruguay 1811-2011: La dictadura cívico militar 1973-1985
Portal de la Facultad de Humanidades e Ciencias de la Educaciónpublicaciones de Carla Larrobla
Portal Monografias.com: La Dictadura en Uruguay
Portal de la Universidad de Montevideo: La transición de la dictadura a la democracia en el Uruguay
Revista de la Facultad de Derecho del Uruguay – Scielo : La dictadura cívico-militar en Uruguay (1973-1985
El País: Especial “La noche más larga”
Portal del Gobierno Uruguayo – Secretaria de los Derechos Humanos para el Pasado Reciente: Víctimas

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Conteúdo escrito por:
Contadora de histórias formada em Jornalismo pela Unesp. Trabalhou com diferentes equipes em projetos de comunicação para meios, agências, ONGs, organizações públicas e privadas. É natural de São Paulo e atualmente vive em Montevidéu, Uruguai.
Folter, Regiane. Ditadura no Uruguai: do início ao fim. Politize!, 8 de maio, 2020
Disponível em: https://www.politize.com.br/ditadura-no-uruguai/.
Acesso em: 10 de out, 2024.

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