Judicialização da saúde no Brasil: o que é?

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Na imagem, pessoas sentadas esperando em uma sala de espera de hospital. Conteúdo sobre Judicialização da saúde no Brasil.
Foto: Diogo Moreira/A2 Fotografia/Fotos Públicas.

Você já ouviu falar sobre judicialização da saúde? Apesar de o termo parecer um tanto complicado, com certeza você sabe do que estamos falando!

Esse fenômeno é uma forma de reivindicar o acesso a saúde por meios processuais, pois, como sabemos, os temas relacionados à saúde são uma preocupação global e isso não é diferente no Brasil. Vem entender essa questão com a gente!

Breve história da saúde brasileira

Até as primeiras décadas do século XX, a assistência médica no Brasil era restrita devido à escassez de profissionais na área. A população tinha acesso quase que exclusivamente à técnicas terapêuticas realizadas pelos “práticos” locais.

O atendimento à saúde por profissionais da medicina eram restritos às elites, fornecidos em sua grande parte pelo setor privado, que nessa época, ainda não possuíam grandes estruturas, eram somente pequenas clínicas, hospitais e consultórios, isolados entre si.

As prestações de saúde oferecidas pelo Estado, reconhecidas na época como sistema de saúde suplementar, surgiram juntamente a consolidação das medicinas de grupo e das cooperativas médicas por meio da manutenção de práticas filantrópicas para aqueles em vulnerabilidade social e que não possuíam assistência.

O Movimento de Reforma Sanitária, que nasceu no contexto da luta contra a ditadura no início da década de 1970, impulsionou diversas reflexões em relação às mudanças e transformações necessárias na área da saúde, na qual o resultado final se embasou na melhoria das condições de vida da população.

Alguns dos resultados desse movimento envolveram:

  • a conquista da universalização na saúde (o princípio constitucional que estabelece que todo brasileiro tem direito à saúde);
  • a definição do dever do Estado (que este têm obrigação de fornecer e facilitar o acesso a saúde);
  • a função complementar da saúde privada;
  • a formalização dos Conselhos de Saúde;
  • a formação da Comissão Nacional da Reforma Sanitária (que transformou as condições para a promoção, proteção, recuperação e organização da saúde bem como o funcionamento dos serviços públicos desta área);

A saúde como um Direito

No nosso país, a questão da saúde recebeu diversos conceitos ao longo da história – tanto do ponto de vista político e social quanto no jurídico – até ser fixado na Constituição de 1988 como um direito de todos e dever do Estado, que deve concretizar e ampliá-la a todos os cidadãos sem distinções, conforme  Artigo 196.

Ainda nesse âmbito, nos artigos seguintes, está expresso que as ações e serviços de saúde são de relevância pública e cabem ao Poder Público regulamentar, fiscalizar e controlar essa prestação (art. 197).

E como dito, esse reconhecimento foi fruto de intensas reivindicações de uma pluralidade de grupos sociais e políticos para formação das estruturas gerais da política de prestação de saúde no país.

Modelo de prestação de saúde brasileiro

A Constituição Federal de 1988 permitiu a prestação dos serviços de saúde pelo sistema privado, através do Artigo 199, e também consolidou o Sistema Único de Saúde (SUS) trazendo mudanças importantes no que diziam respeito à assistência pública.

Por isso, a prestação de saúde no Brasil pode ser oferecida tanto por entes Privados como Públicos, sendo que as prestações feitas em ambos sistemas envolvem consultas, tratamentos, medicamentos e procedimentos.

Rede Privada

No Brasil a prestação de saúde por instituições privadas teve forte expansão devido a estímulos governamentais na década de 1960.

Em 1967, após o golpe militar, o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) – um órgão público – foi criado. No entanto, a demanda da população por serviços de saúde ultrapassava a capacidade de oferta do governo da época.

Esse déficit passou a ser coberto por sistemas privados por meio de repasses financeiros, proporcionando um grande crescimento da rede privada de hospitais. Para controlar esses repasses, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) foi criado e o foco da saúde pública ficou limitado ao processo curativo, sem muitos investimentos.

Rede Pública

Somente em meados da década de 1980, devido ao processo de redemocratização e às críticas ao modelo de saúde existente que setores organizados na sociedade civil promoveram um intenso debate sobre o futuro da saúde brasileira.

A expressão mais significativa de saúde pública universal foi a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), definido na Constituição de 1988 no capítulo VIII da Ordem social,  seção II referente à Saúde, pelo artigo 198, do seguinte modo:

“As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I. Descentralização , com direção única em cada esfera de governo;

II. Atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III. Participação da comunidade;

Parágrafo único – o sistema único de saúde será financiado , com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”.

O texto constitucional demonstra um sistema formado por um conjunto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração e das fundações mantidas pelo Poder Público.

A prioridade deste sistema é o acesso a todos de maneira igualitária e integral à saúde bem como o compromisso em desenvolver ações que deem prioridade à prevenção e à promoção desse direito trabalhando sob três aspectos fixos: promover, proteger e recuperar.

Por esse motivo, qualquer cidadão brasileiro que queira recorrer ao sistema público de saúde, pode e deve ser atendido.

O SUS pode ser considerado uma das maiores conquistas sociais consagradas no nosso ordenamento jurídico, passando a ser relacionado diretamente com: qualidade de vida da população, a alimentação, o trabalho, o nível de renda, a educação, o meio ambiente, o saneamento básico, a vigilância sanitária e farmacológica, a moradia, o lazer, etc.

No mundo, são poucos os países que possuem um sistema de saúde público universal. Integram esse grupo juntamente ao Brasil, o Reino Unido, o Canadá, a Austrália, a França e a Suécia.

A problemática da saúde no brasil

Pessoas em protestos pela saúde segurando ma placa "a saúde pública pede socorro". Conteúdo sobre Judicialização da saúde no Brasil.
Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil.

São inúmeros os problemas facilmente perceptíveis em relação a prestação de saúde no Brasil: escassez de recursos financeiros e materiais para manter os serviços;  atrasos no repasse de verbas públicas e pagamentos aos servidores; filas frequentes de pacientes; atendimento de baixa qualidade; falta de leitos; tempo de espera muito longo para realizar procedimentos; denúncias de abusos cometidos por planos privados e seguros de saúde; e outros.

Outro problema enfrentado no país possui relação com baixo orçamento dedicado ao sistema de saúde público que é um dos piores da lista dos países que possuem um sistema de saúde público universal.

Segundo o relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil está em 9º lugar no ranking de países com mais gastos com saúde, um total de 8% do PIB (Produto Interno Bruto): sendo 4,4% com gastos privados (55% do total) e 3,8% com gastos públicos (45% do total).

Esses dados demonstram que o gasto privado em saúde é superior ao gasto público, diferentemente do padrão de países desenvolvidos com sistemas parecidos.

Mestres e doutores da área jurídica que estudam o direito a saúde acreditam que a precarização da saúde pública qual como conhecemos, vem do modo como a relação público/privada foi estabelecida: permitindo que o Estado conceda medidas que proponha a estabilidade e expansão do setor privado, diminuindo a possibilidade de financiamento e qualificação do SUS.

Dados demonstram ainda que em dois anos quase 2,6 milhões de pessoas perderam os convênios médicos em decorrência do aumento dos preços, da alta do desemprego ou do endividamento familiar.

Isso aumentou ainda mais a demanda pela saúde pública, impondo sérios desafios aos gestores governamentais e ao setor de saúde público.

Por isso, apesar de ser visto como um sistema de referência mundial, o SUS tem de lidar com um orçamento insuficiente, desigualdades entre profissionais, falta de recursos para manter um padrão mínimo de qualidade e também uma dependência do setor privado.

O problema é tão sério que se encaminha para o campo judicial.

As deficiências e insuficiências preocupantes desse sistema único e do setor privado acabaram fortalecendo o crescimento de obter o acesso a saúde por meio das demandas judiciais individuais:  ações judiciais que possuem pedidos relacionadas a procedimentos e insumos de saúde que por vezes não são oferecidos corretamente ou não estão disponíveis àqueles que precisam.

Essa necessidade de buscar o direito a saúde na esfera do poder judiciário é chamado de judicialização da saúde.

O poder judiciário e a saúde

Recorrer a esses instrumentos para solicitar tratamentos é uma faculdade, ou seja, você pode decidir se possui tal interesse. Contudo, utilizar o Poder judiciário como uma forma de reivindicação, é, também, um direito de todos. 

E, essa busca pode ser vista como uma maneira de atuação dos cidadãos cobrarem direitos afirmados tanto em leis nacionais quanto em internacionais.

O indivíduo ao ver que sua necessidade não será satisfeita pode entrar com uma ação no Tribunal de Justiça contra o Estado. Afinal, ele deixou de receber algo que a Constituição cita como direito.

E, além de requerer o acesso aos medicamentos, consultas e procedimentos em sistema público, por meio dessa judicialização também é possível mover ações contra redes privadas e seus planos de saúde, que por vezes se negam a cobrir determinados tratamentos ou os disponibilizam por valores altíssimos.

No âmbito do judiciário, também são comuns ocorrências de inquéritos e processos criminais por omissão de socorro, movidos contra médicos.

Na jurisdição civil, acumulam-se processos de indenização por danos materiais e morais causados por falta ou falha do serviço público, em razão de atendimentos mal sucedidos em hospitais públicos.

Percebemos através dessas informações que a obrigatoriedade do Estado em ofertar serviços de saúde passou a constar frequentemente na pauta do Judiciário, pois o cidadão pode ver nesse poder uma via para garantir seus direitos.

Dessa forma, a Justiça pode assumir um papel de liderança na conscientização do poder público e das grandes empresas de planos de saúde a fim de reequilibrar a relação que envolve o cidadão e o direito à saúde.

E é por isso que as ações judiciais com foco em obter tratamentos, insumos e procedimentos, equipamentos e cirurgias, reconhecida como o fenômeno de judicializar a saúde, apesar de um tema atual, têm levantado inúmeros debates e vem se tornando a cada dia mais frequentes.

Dados e debates atuais 

Quando um indivíduo tenta utilizar um tratamento de saúde ou medicamento específico não disponível no SUS, a problemática acerca da saúde como dever do Estado, se agrava, por isso o fenômeno da judicialização da saúde é complexo e também urgente tanto para o sistema de saúde, quanto para o sistema de justiça.

Segundo o Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa – de 2009 a 2017, o número anual de processos na primeira instância da Justiça relativos a saúde no Brasil praticamente triplicou . Nesse último ano em análise, 95,7 mil demandas acerca de saúde começaram a tramitar no Judiciário brasileiro.

Atualmente, a maioria dos processos tem pedidos em relação a assistência para medicamentos e tratamentos que não são disponibilizados pelo SUS e pelos planos de saúde. No entanto, também existem pedidos para medicações e tratamentos que são encontradas apenas no exterior em uma porcentagem pequena.

Um importante é que a judicialização consome cada vez mais verba do SUS e os juízes tendem a  desconsiderar esse impacto orçamentário das decisões.

O que ocorre neste caso é que no entendimento jurídico, as questões relativas ao orçamento público (escassez de recursos, não pertencimento de medicamento a listas de medicamentos do SUS entre outros) não são razões suficientes para negar um pedido de tratamento, pois esse direito encontra-se assegurado pela Constituição.

Pesquisas também demonstram que, de fato, uma significativa parcela de recursos de assistência farmacêutica e outros materiais em saúde estão sendo determinadas e realocadas judicialmente.

Podemos perceber, portanto, é que de um lado os gestores dos órgãos de saúde tentam equilibrar orçamentos, muitas vezes comprometidos por decisões judiciais que envolvem altos valores. De outro, a justiça tenta se inteirar do que é relativo à saúde para decidir com mais fundamento as demandas por medicamentos, próteses, leitos e diversos tipos de ações e de serviços de saúde solicitados via judicial.

Tal questão passa a envolver aspectos políticos, sociais, éticos e sanitários e vão além dos componentes jurídicos e de gestão de serviços públicos, pois são inegáveis as dificuldades existentes no sistema de saúde brasileiro e até no sistema judiciário para responder de forma satisfatória as novas e crescentes demandas de saúde.

Além disso, o indivíduo que busca o judiciário além de se envolver com questões burocráticas, lida com a incerteza e a morosidade da justiça enquanto muitas vezes tem de suportar consequências fisiológicas e psicológicas relacionadas à uma doença ou de seus familiares.

O que o aumento da judicialização da saúde mostra

Como dito, nos últimos anos foi notado um aumento significativo no número de pedidos judiciais.

Essa prática começou a partir da década de 1980, quando iniciou a implementação de políticas públicas na área da saúde e, consequentemente, emergiu as dificuldades do governo em atender o que era prometido.

Outros motivos que ajudaram a amplificar tal procura são o envelhecimento da população, a crise econômica e os cortes na saúde.

Os dois últimos foram consequências diretas para o aumento de usuários da rede pública de saúde. Atualmente, cerca de 70% de brasileiros dependem exclusivamente do sistema e, em decorrência disso, a ampliação dos gastos do Ministério da Saúde (MS) com as demandas judiciais aumentaram 13 vezes desde 2009.

Segundo análises da gestão pública e governabilidade das políticas de saúde, existem inúmeros efeitos negativos relacionados a esta procura do judiciário, e o tema tem sido pauta de constante preocupação no Comissão Nacional de Justiça (CNJ).

De acordo com estudos realizados pela instituição, a intervenção do Poder Judiciário no SUS aprofunda algumas iniquidades no acesso à saúde. Por vezes, acaba privilegiando determinados grupos de indivíduos com maior poder de reivindicação e instrução, em detrimento de outros que não o possuem.

Em observância ao aspecto econômico, essa também não é a alternativa ideal. A compra de medicamentos individuais para obedecer a decisões do Poder Judiciário gera altos custos ao serem comparados a outras medicações disponíveis no sistema adquiridos em grandes quantidade e, consequentemente, com valores negociáveis.

Perspectivas para melhoria do acesso a saúde

O problema atual em relação ao acesso a saúde não é o de justificá-lo como um direito de todos, mas sim o de realmente protegê-lo e fornecê-lo com qualidade a todos que o buscam.

O Congresso Nacional de Justiça, diante das crescentes demandas, vem promovendo audiências públicas, jornadas e seminários para discutir o assunto com o intuito em aperfeiçoar os procedimentos e prevenir novos conflitos na área. 

Contudo, é importante salientar o quanto o sistema e a judicialização da saúde contribuem diretamente para a vida dos cidadãos.

Pois, no Estado de Direito contemporâneo em que vivemos, essa discussão permeia os não somente cuidados do Estado, como o princípio da dignidade da pessoa humana, e também a questão da melhor adequação e aproveitamento dos recursos econômico-financeiros dos entes públicos e privados.

Apesar de se mostrar complexo, ao mesmo tempo, esse fenômeno pode ser superado.

É necessário reconhecer a saúde como campo de direitos e ações que precisa da ação e reconhecimento das várias disciplinas – Saúde, Gestão Pública, Direito e outras – além da atuação conjunta das instituições – Município, Estado, Sistema de Justiça e seus operadores. Sem essa visão ampliada de necessidades, as estratégias de diminuição da judicialização tendem a falhar.

Uma forma de diminuir os gastos gerados pelo fenômeno, inicialmente, é, além de adotar uma gestão eficiente que evite a falta de medicamentos previstos no SUS, a inclusão de novos tratamentos na rede pública de saúde.

Pois, é possível compreender neste âmbito que a recusa de integrações por parte do Ministério da Saúde acaba por estimular a judicialização e obriga o Estado a adquirir produtos ou tratamentos paliativos com preços mais altos.

Como judicializar?

Primeiramente, procure informação em ONGs com assessorias jurídicas gratuitas especializadas na área da saúde. Elas estarão prontas para te ajudar.

Você também pode recorrer à Defensoria Pública, ao Ministério Público Estadual ou à Procuradoria da República de sua região que prestam assistência gratuita a pessoas que não possam pagar por esse serviço.

Existem ainda outras instituições que prestam assistência judiciária gratuita: OAB, Poder Judiciário Estadual/Federal e algumas faculdades de Direito, que possuem núcleos especializados para este serviço.

Por fim, você também pode recorrer a um advogado particular.

Conseguiu entender os aspectos da judicialização da saúde no Brasil? Compartilha com a gente a sua opinião sobre essa alternativa para o sistema de saúde brasileiro!

REFERÊNCIAS

Letícia Assis Martins de Oliveira; Pâmela Karoline Lins Alves: expansão da saúde suplementar

Agência Brasil: judicialização na saúde cresce 130%

MV: um breve relato da historia da Saúde Pública no Brasil

Henrique Ribeiro Cardoso; Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitos: direitos Sociais, saúde pública no Brasil, precarização dos vínculos funcionais e reflexos para o usuário do SUS

Conselho Nacional de Justiça: judicialização da saúde no Brasil

IPOG: judicialização da saúde

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Conteúdo escrito por:
Internacionalista e estudante de Direito, inclinada a compartilhar conhecimentos e contribuir para uma sociedade mais consciente.
Ignacio, Julia. Judicialização da saúde no Brasil: o que é?. Politize!, 12 de fevereiro, 2020
Disponível em: https://www.politize.com.br/judicializacao-da-saude-no-brasil/.
Acesso em: 11 de out, 2024.

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