As cartas entre Tolstói e Gandhi e a origem da não violência

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Foto em preto e branco do escritor Liev Tolstói
Origem da não violência: Liev Tolstói / Imagem: Divulgação Revista Galileu

Não violência, já ouviu falar? O termo surgiu a partir do questionamento do uso da violência como resolução de conflitos. Em tempos de intolerância, conflitos armados, discurso de ódio e discriminação fica até difícil imaginar que a resistência moral pode ser mais forte que a violência.

Curiosamente, o conceito foi aprofundado através do compartilhamento de correspondências entre um russo e um indiano. A troca de cartas inspirou e, de certa maneira, possibilitou a mudança de costumes, legislações, surgimento de movimentos sociais, fim de regimes segregacionistas e até a independência de um território.

Saiba mais sobre o método revolucionário que não utiliza a violência para alcançar seus objetivos neste texto da Politize!

Veja também: O que é comunicação não violenta?

Tolstói e Gandhi: uma relação de troca e admiração

Liev Tolstói (1828-1910), autor de Guerra e Paz e Anna Karenina, entre outras obras, tinha um interesse particular pela Índia. Tolstói foi um dos principais pensadores ocidentais a elaborar a teoria da não violência. Mohandas Gandhi (1869-1948) era conhecedor da obra de Tolstói. O que nem todos sabem, é que Tolstói e Gandhi trocaram correspondências de outubro de 1909 a setembro de 1910.

Uma carta a um Hindu, escrito por Tolstói chamou a atenção de Gandhi e foi a motivação da comunicação entre eles. Tolstói inicia escrevendo um verso do livro sagrado dos Vedas, e termina-a citando Krishna. Ele argumentava que somente através do princípio do amor o povo indiano poderia obter independência do domínio britânico. O texto se tornou um legítimo tratado de não violência.

Nesta carta, Tolstói alerta os indianos sobre o erro que cometiam ao renegar sua antiga sabedoria para abraçar o método do Ocidente. Ou seja, o erro seria de utilizar a violência como método de resolução de conflitos. Nela, Tolstói expõe suas ideias sobre a não-violência e sobre o amor.

Sensibilizado, Gandhi decide escrever a Tolstói. Em sua primeira carta, além de pedir conselhos, também solicitou a permissão para publicação de 20 mil exemplares do texto de Tolstói. Nessa época, Gandhi atuava como advogado e também era editor do Indian Opinion, jornal fundado por ele e Mansukhlal Hiralal Nazar, na cidade de Durban, África do Sul.

A admiração mútua e a intensa troca de cartas entre os dois, descreviam a busca contínua em alterar o modo de enfrentar o ódio com um olhar diferente, para evitar que nos contaminemos por ele. As cartas estão no livro A arte da comunicação não violenta: Escritos e correspondências entre Gandhi e Tolstói.

Após a morte de Tolstói, Gandhi seguiu suas orientações, além de observar outros movimentos de ação não violenta, como as sufragistas (suffragettes). No caminho para a independência da Índia, desenvolveu a filosofia da Satyagraha, baseada no foco e treino sistemático de estratégias não-violentas (greves, não cooperação, desobediência civil, boicote entre outras). O termo pode ser traduzido como Satya (verdade) e Agraha (firmeza, permanência).

“A Não Violência é uma atitude ética e espiritual do homem vivo que reconhece a violência como a negação da humanidade e que decide recusar submeter-se à sua dominação”. – Jean-Marie Muller

Para Gandhi, Satyagraha podia ser definida como “a força do amor ou força da alma”, como a arma dos fortes; pois não se admite o uso da violência sob qualquer circunstância, além de representar a permanente busca em defesa da verdade.

O termo ahimsa também é utilizado para definir a não violência, e consiste em não cometer violência (física ou psicológica) a qualquer ser vivo, o que implica o desenvolvimento da compaixão.

Assista também ao nosso vídeo sobre as definições de violência contra a mulher

Legado de Gandhi

A Índia tornou-se independente em 15 de agosto de 1947 após um longo processo de resistência não violenta. E esse processo exigiu organização e coragem. Gandhi liderou três grandes campanhas anti-britânicas e foi diversas vezes preso por organizá-las.

A Greve Geral de vários setores como transportes e limpeza (1919), Não cooperação: não colaborar com os ingleses como não votar (1920 e 1922) e Desobediência civil: consiste em transgredir as leis consideradas injustas (1930 e 1934).

Talvez você conheça ou tenha estudado a campanha Marcha do Sal em que Gandhi, acompanhado por seguidores do movimento anticolonial, recolhe sal de uma salina e o vende. Enquanto colônia, esse ato estava proibido aos indianos. Gandhi também protestou contra a discriminação contra os “intocáveis”, considerada a casta mais inferior da Índia, e negociou sem sucesso por um governo nacional indiano.

Determinado, ele começou o movimento Quit India (em português “deixem a Índia”), uma campanha saída voluntária de britânicos da Índia durante a Segunda Guerra Mundial. Mas, os britânicos se recusaram a ceder. Apesar dos fracassos, o movimento continuou firme e permanente até a indepedência do território indiano. Devido seu papel na independência da Índia, Gandhi recebeu a denominação de “mahatma” (grande alma).

Para Jean-Marie Muller, professor, doutor, filósofo e fundador e diretor do Instituto de Pesquisas sobre a Resolução Não Violenta de Conflitos (IRNC), o princípio da não violência implica a exigência de procurar formas não violentas de agir de forma eficaz contra a violência. O movimento de independência da Índia provou que era possível persuadir e convencer o opositor, sem o uso de violência.

As estratégias de ação não violenta podem ser utilizadas contra um sistema violento, quando há impossibilidade do diálogo ou negociação, apesar de diversas tentativas, favorecendo o bem comum. Temos vários exemplos de estratégias não violentas: greve, marchas silenciosas, vigílias, boicotes, não cooperação, não participação, prática da não-violência (ahimsa), firmeza de propósito (satyagraha).

A resistência não violenta como inspiração

Para o filósofo italiano Giuliano Pontara, Gandhi não foi, nem jamais aspirou ser, um “profundo” pensador, um teórico sistemático da não-violência. No entanto, refletiu ininterruptamente ao longo de sua vida sobre ela, estabelecendo uma dialética contínua entre pensamento e ação, revelando uma mentalidade mais frequentemente associada à do cientista que experimenta, do que à do ideólogo que possui um verdade pronta e definitiva. (PONTARA, 2016)

Muitos movimentos se espelharam nas contribuições da resistência não violenta, entre eles movimento dos direitos civis nos EUA, liderado por Martin Luther King. Inspirado nas ações de Mahatma Gandhi, o norte-americano Marshall Rosenberg (1934-2015), psicólogo e autor do livro Comunicação Não Violenta, desenvolveu uma abordagem de comunicação, observando a utilização da resistência não violenta como prática de transformação de realidades violentas. Sabemos que o conflito é parte da condição humana. Entretanto, Marshall Rosemberg, aponta que a violência é a expressão trágica de uma necessidade não atendida.

Tolstói e Gandhi perceberam que o todo conflito traz consigo a possibilidade de mudança, de atender necessidades, se tivermos uma atitude baseada no princípio do amor e do olhar compassivo.

E não importa se essa atitude aconteça entre duas pessoas, entre uma comunidade ou um país, sua ação torna-se revolucionária por transformar a lógica da violência pela lógica da compaixão. Inverte a engrenagem do ódio e da vingança – ambas desumanizadoras – por olhares e ações mais humanizadores.

Tolstói persuadiu Gandhi ao recordá-lo que, na sabedoria ancestral indiana não se empregava o uso da violência. Gandhi lutou e persuadiu com a não violência até a independência do território indiano do domínio colonial britânico. A força da resistência não violenta é um legado transformador que continua inspirando e persuadindo gerações.

E aí, conseguiu entender mais sobre a não violência? Deixe sua dúvida nos comentários!

Referências:

DREVET, Camille. Gandhi: vida, obra e pensamento. Lisboa: União Gráf. Editorial Império, 1969.
PONTARA, Giuliano. “Gandhi: el político y su pensamiento”, Polis [Online], 43 | 2016, Online since 09 June 2016, connection on 04 July 2022. URL: http://journals.openedition.org/polis/11501
MULLER, Jean-Marie, O Princípio de Não-Violência – Percurso Filosófico. Lisboa, Ed. Instituto Piaget,1998.
ROSENBERG, M. B. (2006). Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais (4a ed.). São Paulo: Ágora. (Originalmente publicado em 2003)
A arte da comunicação não violenta: Escritos e correspondências entre Gandhi e Tolstói
National Geografic – Como Mahatma Gandhi mudou o protesto político
Politize – A história do voto feminino
Politize – Direitos Civis: afinal, o que são e como surgiram?
Politize – Comunicação Não Violenta (CNV) : O que é?
Politize- O que é mobilidade social?

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Conteúdo escrito por:
Doutoranda em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra.

As cartas entre Tolstói e Gandhi e a origem da não violência

27 abr. 2024

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