Política e Black Mirror #2: O ursinho da inocência

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Black Mirror é uma série de televisão britânica de ficção científica de um futuro próximo fazendo alegorias de tecnologias que já vemos presentes em nossos dias atuais, mas ainda não na escala e proporções apresentadas na série. A série é exibida no Netflix e se destaca por episódios independentes entre si, mas unidos em seu propósito global de discutir nossa sociedade em mudança em função da tecnologia. Se fosse um livro seria um livro de contos ao invés de um romance. 

Hoje discutimos o episódio White Bear, o segundo da segunda temporada. Caso queira, você também pode conferir o primeiro texto da série Política e Black Mirror.

White Bear – o ursinho branco da inocência

O episódio “White Bear” é um desses episódios onde o final vem a galope e nos revela todo um novo ponto de vista. A história “oficial” pela qual atravessava a personagem principal é posta abaixo e uma nova verdade nos é revelada ao final do episódio, na cena do anfiteatro.

A história começa com nossa personagem principal acordando sentada em uma cadeira na sala e aos poucos tentando reconhecer este ambiente. Fotos suas e de sua família nas prateleiras nos dão o entendimento de que está em casa e trazem acolhimento. Mas suas expressões nos revelam que ela estranha este ambiente, como se não fosse sua casa. Ela nota algumas pílulas no chão. Sugestão de que se entorpeceu, forçou seu sono, ou algo assim. Mas suas reações continuam a nos levar ao entendimento de que algo estranho está no ar.

Nota um símbolo de três pontas. Apenas isso, um símbolo estranho de três pontas, sem nenhuma conexão com nenhum outro elemento, sem nenhuma hipótese do que significa.

Ela mora em uma casa assobradada com jardim amplo, numa alusão a um típico subúrbio americano, desses que vemos em filmes. E ao passo que vai despertando e explorando o lado de fora percebe que seus vizinhos estão interessados nela e a filmam com seus celulares. Mas eles não interagem com ela. Não conversam. Apenas a seguem, azumbizados, como que dançando em sua volta com seus celulares, nunca perto demais, nunca longe demais. 

Por que seus vizinhos estão obcecados em filmá-la?

Terror gratuito e silencioso

Eis que aparece um sujeito dentre estes vizinhos esquisitos, usando uma máscara com clara alusão ao símbolo de três pontas que havia notado em sua casa, e, sem mais explicações, tenta assassiná-la. Bem à moda de filmes de suspense bem canastrões, ele não tem pressa, não tenta muito, não explica nada, e não desiste nunca. Logo mais assassinos mascarados aparecem.

Durante sua fuga desses assassinos, aparecem dois novos personagens, desta vez do “bem”, e tentam ajudar: uma moça jovem e um senhor de idade dirigindo um furgão. Eles têm um agir natural, não se parecem com os vizinhos obcecados, e são os únicos personagens que travam um diálogo até então. A fugitiva entra no furgão e eles escapam. Estão a salvos por um momento.

Enquanto fogem os três, a moça apresenta uma explicação do que está acontecendo: um certo dia uma ação publicitária – o símbolo de três pontas – apareceu nas televisões e aparentemente hipnotizou os moradores de forma que eles ficam fascinados por violência. Alguns executando a violência e alguns assistindo-a. A misteriosa ajudante é assim uma espécie de líder local de uma resistência a este processo de hipnose.

“Eles sempre foram assim, só precisavam que algumas regras mudassem, com nada para intervir” Líder da Resistência

O plano da resistência é destruir a antena local que distribui o sinal de três pontas para os moradores e com isso restabelecer a normalidade.

Quando invadem o prédio da antena de TV e estão prestes a dar cabo de seu plano de resistência, percebe-se que a personagem principal caiu numa cilada. Foi traída pela sua líder, e é amarrada a uma cadeira por alguns capangas que aparecem de surpresa. A cortina cai. Revela a plateia. 

Tudo se tratava de uma peça teatral onde os “vizinhos” são na verdade consumidores do espetáculo. Pagaram o ingresso. Os assassinos são atores, e as armas são de mentira. Óbvio que são: precisam dela viva para o próximo espetáculo. E a personagem principal é a grande estrela desse show! 

E le grand final revela tanto a nós como a ela mesma que ela é uma criminosa e que o crime que cometeu justifica sua presença nesse show, desfazendo assim a confusão mental da personagem. Ela e o companheiro sequestraram uma criança, que possuía um ursinho branco de pelúcia, símbolo de sua inocência, e a assassinaram, registrando tudo em vídeo. 

Entre culpa e negação, a personagem amarrada e vulnerável se limita a gritar em horror com esta revelação, e com o próprio espetáculo na qual está inserida.

“Lágrimas de crocodilo me deixam enjoado” Apresentador do show que fez o personagem motorista que a ajudou no início da peça 

A plateia vai ao delírio com o comentário do apresentador – querem puni-la a todo custo. A violência chega, então, em seu limite máximo: o episódio revela claramente que esta não é a primeira vez pela qual ela está passando por isso. Pelo contrário, a encenação é repetida diariamente (a imagem de um calendário revela que todos os dias do mês, incluindo sábados e domingos, abrigaram esta encenação punitiva), e a personagem é diariamente colocada na posição inicial da cena para uma reencenação. Sua memória é apagada e seu estado de confusão mental é produzido artificialmente por uma aparelho eletrônico, e novo público começa a chegar no que é então explicado pela placa à frente do anfiteatro onde se lê “Justice Park” (Parque de Justiça em tradução livre).

Então tudo isso era, na verdade, …. uma cadeia?

O que é e o que significa uma cadeia? Entendemos a cadeia como uma forma de pedagogia ou punição? Ficar anos sem ir e vir é a justa medida diante do crime cometido ou é uma forma de garantir a reeducação do criminoso? Por que o período na cadeia tem fim? E que diferença faz ter mais ou menos de 18 anos? 

A cadeia foi firmada como forma de instrumento de pena pelo código penal francês de 1791 e o fez à luz de uma nova legislação e um novo entendimento da pena e do crime. No seio da Revolução Francesa e da invenção da sociedade moderna, onde o poder emana não mais da vontade divina, mas do povo, e a sociedade é feita pelos iguais e para os iguais, o crime foi entendido como lesivo a mais do que apenas a vítima imediata do mesmo. O crime é lesivo à noção de bem comum, à inquebrantável ordem social, e ao próprio tecido social.

Reparações individuais existem e são previstas nos códigos penais, como, por exemplo, quando um crime de difamação obriga indenização direta à vítima. Mas a noção de uma lesão maior que a individual engendra algo além da mera reparação individual como pena justa e suficiente. 

Por isso, em alguns casos o Estado assume a tutela do indivíduo criminoso para aplicar-lhe medida mais ampla de recuperação social. Dito de outra forma, é preciso não apenas reparar os danos às vítimas, mas também a própria sociedade que perdeu sua estabilidade; evitar a reincidência deste homicídio, e auxiliar ao indivíduo criminoso uma possibilidade de reinserção dado que se reoriente. São vários objetivos a um só tempo.

Percebemos que as prisões, ou outras formas de privação de liberdade e recuperação social, pressupõem uma forma mais social de entender e lidar com a criminalidade do que seria, por exemplo, o caso de uma sociedade em se que aplicasse a lei do “Olho por Olho”, na qual um assassino é morto, um ladrão tem suas mãos decepadas, um adúltero tem suas genitálias decepadas, etc… Esta lei “de Hamurabi” se preocupa com a não repetição do crime (sem as mãos o ladrão não vai mais roubar), porém não faz menção a reeducação de valores para uma nova forma de se inserir socialmente. Porque, em última análise, não entende que o próprio criminoso é um dos participantes da sociedade feito por e para os iguais. 

Não se poderia perguntar a esta sociedade como um homem sem mãos vai garantir seu sustento e de sua família ao competir num mercado de trabalho com clara desvantagem sem seguir um ensurdecedor silêncio.

Observar a lógica social do crime trata também de uma certa forma de preservar o capital humano da sociedade, que não seria assim desperdiçado mediante uma falha, mesmo uma falha grave. 

E também de uma tentativa de compreensão em última instância de que é possível ao ser humano mudar, evoluir, superar a necessidade ou vontade de cometer crimes para uma postura mais adequada e mais evoluída ao bem estar geral. Trata-se, em resumo, de a sociedade não desistir de seus membros, mesmo quando cometam equívocos. Em duas palavras: Reeducação social. Porque o bem comum (entendido pelo menos enquanto uma inquebrantável ordem social) a requer.

Entende-se, então, que para a cadeia existem critérios: e ela se coloca, à sua forma bem específica, como uma forma de justiça social. Este entendimento faz parte do comportamento cívico que dá cola ao tecido social. 

Assim, 1) deixar claras as regras de associação social e portanto, definir por escrito o que é considerado crime, e apenas considerar crime o que estiver escrito, e 2) dar a justa pena, proporcional à lesão, ao crime cometido são princípios elementares do Direito Penal. Estes princípios, entre outros mais, são fiadores de que a pena aplicada é efetivamente justa.  

Justice Park e a evolução da cadeira elétrica 

O episódio White Bear acrescenta, porém, um aspecto adicional à pena: a nossa personagem presa principal será utilizada para uma outra finalidade, que não lhe faz referência em si mesma: Ela será usada para o entretenimento. Portanto, para algo além de sua própria necessidade de reeducação social. 

Será usada para o lazer do público geral que se deleitará em vê-la sofrer. Donde se conclui que sua pena passará a ser administrada e replicada (lembram-se do calendário ao final do episódio?) por motivos que não tenham relação com sua evolução pessoal. “Seria melhor matarem me logo que continuar com essa tortura” poderia ela dizer e não seria em nada impertinente.

O episódio então, e este é um ponto conclusivo deste texto, trata da tortura. A tortura como forma de lazer, como forma de justiça, como forma arte (afinal trata-se de uma peça de teatro), e por fim, como forma de anti-educação social. Tanto porque nada foi ensinado à personagem principal, como também porque nada foi ensinado ao público pagante!

Educar vem do latim e significaria algo como “conduzir para fora”, isto é, mostrar o mundo, ensinar, apresentar algo novo. E não se conduz alguém apontando aonde fica a saída. É preciso caminhar junto. Porque não se trata da dificuldade de ver a utilidade da porta para quem quer sair: se trata da dificuldade de caminhar o caminho óbvio. Assim, não basta explicar que o código penal punirá desta ou daquela forma mas de trabalhar os valores básicos da atuação coletiva, e a própria vontade de fazer parte de uma sociedade. Esta é a novidade que se mostra a quem esteve disposto a cometer crimes e rasgar o tecido social. Uma nova forma de viver, encontrar sentido, e dignidade, e bem estar. 

Nosso episódio fala então de tortura. Trata-se, portanto, da violência máxima contra o condenado, muito além de sua simples pena capital. E o episódio faz isso magistralmente construindo aos poucos esta compreensão (notar a menção ao “Justice Park” ao finalzinho do episódio é crucial para isso, pois deixa claro que é um empreendimento comercial). O Estado desistiu do indivíduo, que, por sua vez, já não serve mais para nada aos olhos dos aplicadores da pena, dos legisladores desta tortura comercializada, e dos apoiadores da prática.

O episódio provoca ao fazer menção a uma forma comercial de punição criminal, inventa uma nova mercadoria, mas não deixa claro se é o Estado ou a iniciativa privada que gere o empreendimento. Não deixa de ser relevante mencionar aqui que o episódio então também tangencia a discussão acerca do caráter pedagógico do trabalho na reeducação de presos.

Já que nessa quarentena você vai passar bastante tempo no sofá mesmo, pode continuar na linha Netflix e assistir a “A 13º Emenda” para mais uma discussão em forma de documentário sobre o trabalho de presos.

Nem tanto nem tão pouco

Entre a prudência e a humanidade de não desistir dos membros do nosso grupo e a solução prática da desistência um enorme caminho tem a ser trilhado: um crime hediondo pode ser considerado um equívoco? Faz sentido pausar a vida de alguém (temporariamente ou em definitivo) em quem a sociedade investiu tanto de seus recursos? Pode um criminoso com longo currículo criminal ser reeducado socialmente? Existe crime feito para aplacar a fome? Aplacar a fome, aliás, é um direito humano básico e inalienável? O que isso significa, mais exatamente? E quanto aos demais impactos da retirada de um membro do seio familiar (econômicos ou psicológicos)? É preciso tratar deste assunto?

Este episódio da série Black Mirror é mestre em tramar contra nossas expectativas, ao nos fazer empatizar com um personagem e vilanizá-lo ao fim. Tivessem contado o episódio de outra forma, de forma cronológica por exemplo, talvez nossa empatia fosse diferente. 

Este episódio é seguramente um dos mais violentos da série, com um tipo afiado e desumanizador de violência que é diferente da violência de filmes de bang-bang. Como exemplos poderíamos mencionar:

  • O preparo desumano dispensado pelo apresentador à personagem principal para a cena do dia seguinte e a banalidade com que marca mais um dia na folhinha denotam o significado (banal) da tortura para o torturador;
  • Notamos que na folhinha todos os dias são dias de espetáculo, inclusive sábado e domingo, ou seja, não existe regulação para esta atividade;
  • A cena em que o caçador ameaça a personagem principal com uma furadeira e onde o foco muda do rosto das vítimas para o rosto do Hunter e ele está sorrindo maliciosamente como que curtindo a própria crueldade e o pavor da vítima apresentam também um duplo sentido, tanto do ator que interpreta seu papel como o do carrasco que pune e purifica o mundo de um criminoso;
  • A comparação da justiça a um safári pelo apresentador do show: “Não falem com ela, não cheguem perto, pensem nela como um leão selvagem solto!”;
  • Ao empatizar com a personagem principal no início do episódio experimentamos um pouco do sabor de estar em sua pele ao estranhar a “própria casa”. Experimentamos a sensação de perda de lucidez que o espetáculo proporciona.

O episódio se aproxima de seu final com um crescente de violência contra a personagem principal e dentre os inúmeros direitos que a prisioneira tenha lesados durante sua pena, como sua privacidade (é filmada sem sua autorização), saúde (é drogada), dignidade (é torturada), liberdade de ir e vir (está presa), relacionamento social (está incomunicável), o direito à memória se destaca dos demais pois é ele que permite o aprendizado e a evolução. “Apagar” a prisioneira todos os finais de expediente garante que ela nunca sairá de lá, afinal, ela nem sabe que cometeu crimes no início do episódio.

Ao revelar a dimensão destas violências contra a personagem principal o episódio provoca-nos a refletir sobre esta forma (punitivista poderia-se dizer) de lidar com a criminalidade. 

Do que se trata afinal a vontade de que (alguns) não façam parte? 

Esta vontade de exclusão total existe de diversas formas no mundo (chegou-se a discutir se os escravizados pretos teriam alma, durante a escravidão brasileira, ou se estrangeiros poderiam possam migrar, ora atesta-se certeza de que os judeus não podem representar nada de bom, e são culpados pela decadência do povo alemão, entre tantas outras…) e muitas vezes vem associada a uma certa crueldade ou a um sentimento de ódio.

No caso da tortura útil do Justice Park temos o elemento da exclusão como pena. A pena, em última instância, é a saída do pacto social. Isso significa claramente a perda de direitos. É como se se dissesse “Você, criminoso, não é mais um dos nossos. Por isso, podemos fazer com você o que bem quisermos”. 

Na construção dessas narrativas espetaculares essa vontade de exclusão se esforça em demonstrar a existência de um mal puro e absoluto. A alegoria aqui é semelhante à figura bíblica do diabo: nada de bom pode vir do diabo e o diabo nunca vai mudar. Não se educa o diabo. O que fazemos com o diabo, afinal, senão temê-lo e odiá-lo?

Mas… essa vontade de exclusão vai de encontro ao entendimento de justiça inaugurado com o nascimento do mundo moderno? No caso de nosso episódio, nossa prisioneira foi destinada a um processo de reeducação e ainda assim reincidiu em seu crime? E nossos prisioneiros em nossos presídios?

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Conteúdo escrito por:
É economista e trabalha na área social. Atualmente coordena um CRAS, órgão que implementa a política pública de atendimento social a pessoas em extrema vulnerabilidade social.

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