Privacidade e proteção de dados de crianças e adolescentes nos meios digitais

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Fotos e os dados da bio do Instagram são uma enorme fonte de informações para os algoritmos / Imagem: Divulgação Banco de Imagens

Mecanismos de tratamento de dados pessoais estão em todos os cantos das nossas vidas atualmente. Não só operam sistemas aos quais estamos conectados e dependentes no nosso cotidiano, como também são eles quem filtram quase todo o conteúdo de informações, publicidade e até mesmo amizades com as quais iremos fazer ou deixar de fazer determinada coisa. Têm o poder de impactar, inclusive, eleições mundo afora, como pôde ser observado no caso da Big Tech Cambridge Analytica, que utilizou dados de mais de 87 milhões de usuários do Facebook, a fim de influenciar e promover a campanha eleitoral do ex-presidente norte-americano, Donald Trump, em 2016.

Se esses sistemas são capazes de influenciar cidadãos com plena capacidade para exercer dos seus direitos políticos, civis e sociais, os efeitos sobre os menores de idade podem ser ainda mais impactantes.

Oversharentig: o fenômeno da superexposição parental de dados pessoais de crianças e adolescentes

O “Oversharenting” é o que se traduz para o português como “ato de superexposição parental” (e grifemos mentalmente a parte do super). Sabemos e é evidente que os menores são um grupo notadamente especial, pois estão em fase de desenvolvimento e são marcadamente vulneráveis ao mundo que os cerca. É por isso que a legislação incumbiu aos responsáveis o dever legal de zelar pela sua proteção física e psicológica e, inclusive, pela sua privacidade.

Ocorre que, como aponta Fernandes:

“o papel dos pais, que, por mandamento constitucional, deveria ser orientar e proteger os filhos dos perigos do ambiente digital, pode acabar se tornando, na prática, de algum modo lesivo a eles, na medida em que expõem exageradamente a imagem e os dados de sua prole na rede, o que, no futuro pode ter impactos não só de privacidade e segurança, como, também, na saúde”.

Não é raro se deparar com fotos e perfis de pais rodeados de imagens, vídeos e outros conteúdos de menores em suas redes sociais – o chamado “bebê público” segundo o escritor Paulo Rezzutti –, muitas vezes, temerários do ponto de vista da esfera da privacidade dos menores. Quem nunca viu ou mesmo postou esse tipo de conteúdo?

A problemática não está no conteúdo em si, mas na palavra “super”: o exagero da exposição dos seus filhos. Toda essa informação permite, desde o nascimento, o chamado perfilamento, isto é, a criação de intensosrastros digitais que identificam padrões de comportamento e que podem os influenciar ao longo de toda a vida de forma moldada pelos pais e de forma muito distante do natural.

E os riscos aqui são imensos. Conforme expõe a pesquisadora e especialista em proteção de dados Elora Fernandes: temos que “a apropriação da narrativa da história de vida dos filhos pelos pais, o roubo de identidade por criminosos e a construção de perfis que serão posteriormente utilizados por mecanismos de tomada automatizada de decisões por Inteligência Artificial, bem como para bombardeamento de publicidade e propaganda político-ideológica” são problemáticas evidentes, mas ainda pouco conhecidas entre o cidadão-médio.

Em síntese, o período de desenvolvimento desses indivíduos pode ser moldado por enormes montantes de conteúdos adequados não para o natural desenvolver dessa pessoa, mas para gerar perfis e pegadas ou registros capazes de identificar comportamentos e, com isso, promover conteúdo independente do impacto que ele gere.

É o que sintetizam as pesquisadoras Laterça, Teffé e Spadaccinni:

“Crianças e adolescentes integram, de forma cada vez mais intensa, ambientes digitais e conectados. Seus dados pessoais vêm sendo tratados nos mais diferentes contextos, o que propicia a criação de rastros e perfis digitais desde o início de suas vidas”.

O que apontam os dados?

Uma pesquisa realizada pela Avast – renomada empresa do ramo de tecnologia –, em fevereiro de 2020, reuniu 500 pais e mães e revelou que cerca de “33% dos entrevistados informaram já ter publicado uma foto do seu filho menor de idade, sem pedir sua permissão e sem nenhum tipo de restrição que impeça a identificação da criança” e que “apenas 29% dos entrevistados possuem perfis em redes sociais, mas nunca compartilharam nenhuma imagem de seus filhos”.

Não só isso, “60% dos entrevistados consideram que a possibilidade das imagens “fugirem” do ciclo de amigos e familiares, e alcançar pessoas estranhas, é um dos maiores riscos para as crianças” e “63% declararam que o risco mais preocupante é o de que as crianças possam ser vistas ou contatadas por abusadores sexuais”. Contudo, apenas “34% deles acreditam que essas publicações possam infringir o direito à privacidade dos menores”.

O que se observa, de fato, é que poucos pais têm compreensão do impacto que essas recorrentes postagens podem acarretar sobre a esfera da privacidade dos menores. A superexposição é também um fenômeno de falta de conhecimento parental.

Como visto, os dados pessoais, como são as fotos e os dados da bio do Instagram, por exemplo, são uma enorme fonte de informações para os algoritmos e dificilmente serão um dia desassociados deles. Etnia, endereço, nome, idade, sexo, amigos, e até mesmo a resolução da sua foto – por mais incrível que parece, esta última pode indicar, inclusive, a sua classe social.

Todo esse material bruto – que chamamos de dados – parecem ter pouca utilidade prática para nós, mas, quando tratados por algoritmos e IAs, transformam-se em informações muito úteis. Um material capaz de, em prática, perfilar quem você é, o que você gosta e invadir a sua esfera de livre tomada de decisões.

Para a pesquisadora Stacey Steinberg, evidentemente que essa não é a intenção da maioria dos pais, “os genitores simplesmente ainda não despertaram para a importância de seus papéis no ambiente tecnológico e os perigos de uma parentalidade que se revele irresponsável e negligente”. Da inofensiva indicação de camisas de time à influência em eleições presidenciais sabemos que o passo não é tão largo assim quanto faz parecer inicialmente.

Segundo um relatório da UNICEF, publicado em 2017, aponta que a falta de consciência por parte dos pais quanto às consequências do que postam sobre seus filhos pode acabar elevando a probabilidade de danos ao bem-estar das crianças a longo prazo, notadamente em relação à construção da identidade pessoal e à busca por colocações no mercado de trabalho.

E, conforme expõem as pesquisadoras Laterça, Teffé e Spadaccinni, “não fossem todos os efeitos psicológicos daí decorrentes, essa superexposição nas plataformas sociais, como visto, transforma-se em mercadoria — os dados — a partir dos quais os sistemas de algoritmos buscam moldar nossas identidades, predizendo nossos comportamentos, o que, se já é extremamente preocupante para um adulto, torna-se ainda mais grave para uma criança”.

Ainda, reforça-se uma questão que vem chamando atenção de especialistas ao redor do mundo: a assim chamada “geração covid” deve intensificar ainda mais esse contato precoce e desenfreado com as redes. O ensino à distância, uma exigência imposta pelas medidas de distanciamento social, fizeram, indiretamente, a necessidade de introduzir o contato dos menores com essas tecnologias de forma muito mais rápida e sem o devido preparo.

Nesse sentido, uma pesquisa realizada TIC Domicílios em 2020, revelou que 64% das crianças e adolescentes possuíam uma conta no Instagram, enquanto, em 2016, esse número era de 36%. Entende-se que muitos menores de idade sequer tinham à disposição ferramentas para acessar essas redes. A necessidade delas para estudar em casa – o que a princípio foi algo muito positivo – possibilitou também a sua utilização para diversas outras atividades, como criar uma conta em rede social, por exemplo, muitas vezes sem a devida supervisão dos pais.

Proteção de dados pessoais é um direito fundamental?

Não à toa, entendendo a necessidade de ampliar ainda mais a proteção de dados pessoais de milhões de cidadãos brasileiros, sobretudo após enormes escândalos de vazamentos de dados pessoais no Brasil, o Poder Legislativo Federal optou por acrescentar uma nova hipótese ao rol dos direitos e deveres individuais e coletivos.

Com a aprovação da Emenda à Constituição (EC) 115 de 10 de fevereiro de 2022, foi inserido o inciso LXXIX ao art. 5º da Constituição da República de 1988, tornando a proteção de dados pessoais um direito fundamental: “LXXIX – é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais.”

Nesse sentido, ensina o jurista e professor Stefano Rodotà que “estamos diante da verdadeira reinvenção da proteção de dados – não somente porque ela é expressamente considerada como um direito fundamental autônomo, mas também porque se tornou uma ferramenta essencial para o livre desenvolvimento da personalidade. A proteção de dados pode ser vista como a soma de um conjunto de direitos que configuram a cidadania do novo milênio” (RODOTÀ, 2008, p. 14).

Assim, devido às condições que impõem os novos tempos e na qualidade de direito fundamental, a proteção aos dados pessoais passa a ser interpretada com ainda maior importância, segurança e cuidado em relação ao sistema jurídico brasileiro, assim como ocorre com relação ao direito à vida, à saúde, à educação, entre outros.

Mostra-se essencial, a fim de garantir o melhor interesse e a proteção integral de crianças e adolescentes, a promoção e a proteção ampla de suas informações pessoais e de sua privacidade, como direitos fundamentais responsáveis pela concretização do livre desenvolvimento da personalidade, das liberdades individuais e coletivas e da não discriminação.

O que é a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)?

A LGPD é a Lei que regulamenta especificamente a proteção de dados pessoais no âmbito brasileiro. Logo, é preciso entender o que, afinal, significa a mais nova Lei Geral de Proteção de Dados.

A LGPD, como é mais conhecida, veio a fim de normatizar, em lei específica, o tratamento de dados pessoais no âmbito brasileiro, sendo o consentimento uma das bases dessa relação, uma vez a intenção de justamente impedir o tratamento de dados sem o aval e o conhecimento por parte do detentor do seu detentor.

A LGPD foi amplamente inspirada na General Data Protection Regulation (GDPR), a sua versão europeia, e passou a vigorar em maio de 2021 após um longo período de vacatio legis, com o objetivo, também, de adequar o ordenamento jurídico brasileiro ao contexto global, sobretudo por exigência dos mercados pertencentes a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Conforme se interpreta do seu art. 1º, o escopo da Lei é quanto ao tratamento de dados pessoas – aqueles diretamente identificáveis à determinado individuo –, independente dos meios (físicos ou digitais), com o fim de proteção aos direitos fundamentais de liberdade, privacidade e para resguardar o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa humana. Ainda, entende-se que essa proteção se dá em tanto contra pessoas naturais quanto pessoas jurídicas.

Resumindo, o entendimento do legislador foi de que os efeitos da exploração de dados pessoais estão muito além da mera violação de privacidade. A existência de uma economia movida a dados, pode colocar em risco a própria individualidade e a autonomia da pessoa humana, não sendo exagero a afirmação de que a própria democracia é afetada por essa situação.

Daí a necessidade de uma lei específica para tratar o assunto. Segundo Tepedino: “Além da privacidade e dos direitos dos consumidores, são mencionados expressamente, entre outros, a autodeterminação informativa, os direitos humanos, o livre-desenvolvimento da personalidade, a cidadania e a dignidade”.

Leia mais: O que é a LGPD?

A questão do consentimento

Uma coisa é o tratamento de dados pessoais de pessoas maiores de idade e com plena capacidade para exercer os seus direitos. Mas a situação é diferente ao tratarmos de menores de idade. Além da dificuldade em validar o consentimento para tratar dados pessoais desse público, temos a possibilidade desse tratamento impactar o seu livre desenvolvimento.

Fato é que se descobriu, recentemente, que dados pessoais (aquela “informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável”, nos termos do art. 5º, inciso I, da Lei Geral de Proteção de Dados) podem ser fontes de poder muito mais preciosas que armamentos e territórios, ainda mais quando esse tratamento ocorre sobre o poder de algoritmos e Inteligências Artificiais bem estruturados. Daí se vê que realmente a proteção de dados não é uma simples questão.

Em realidade, o consentimento é, talvez, o ponto de maior dificuldade quanto ao tratamento de dados pessoais, sobretudo nessa faixa cinzenta da vida. “É, assim, dever precípuo dos pais orientar e supervisionar os filhos, ainda que lhes garantindo um espaço mínimo (que aumenta com a idade) de privacidade e intimidade para o livre desenvolvimento de suas personalidades”.

Por fim, como visto, a superexposição de dados de crianças e adolescentes tem imensos perigos ao plenos desenvolvimento dessa população, não só pela sua condição psicológica, mas pela vulnerabilidade a qual é posta o seu desenvolvimento enquanto cidadão e pessoa.

Logo, aos pais, cabe o dever e a obrigação de zelar pela proteção dos dados e pela privacidade dos menores, e não expô-los mais que o necessário em meios digitais nos quais processos automatizados e não plenamente adequados para essa faixa etária são utilizados.

A distinção entre Crianças e Adolescentes

Antes de adentrar ao tema, é importante frisar que evidentemente há uma notável distinção psicológica entre crianças e adolescente. A Lei brasileira compreende a situação e define, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, a criança como “a pessoa até doze anos de idade incompletos”, e o “adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (artigo segundo).

Ressalvado a esse grupo, por dever da “família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público”, o direito à proteção integral de seus direitos fundamentais – como é o caso do direito à privacidade e a proteção de seus dados pessoais –, a fim de assegurar o seu livre “desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.

Não só, o Código Civil faz outra distinção fundamental: distingue o menor absolutamente incapaz como sendo aquele menor de 16 anos de idade e o relativamente incapaz, entre outros casos, o maior de 16 e menor de 18 anos de idade, entendendo que, enquanto o primeiro é totalmente incapaz de exercer atos da vida civil, ao segundo é possível apenas com algumas restrições.

Artigo 14 da LGPD: Por que as crianças e adolescentes são especialmente protegidos?

Nesse sentido, a Lei Geral de Proteção de Dados, seguindo o que já dispunha a legislação anterior, reconhece a condição especial dos menores de idade: “Art. 14. O tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse, nos termos deste artigo e da legislação pertinente”, considerando ainda que “§ 1º O tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal”.

Nesse contexto, como se dá, em prática, o consentimento no caso de menores, por exemplo, ao dar aceite aos termos de uso do Instagram?

Ocorre que o art. 14, parágrafo 1º, à primeira vista pode dar a entender que o consentimento exigido deve ocorrer pelo responsável legal dos menores. Contudo, entendendo a distinção psicológica entre crianças e adolescentes, o legislador excluiu propositalmente estes últimos – os adolescentes – da necessidade de consentimento parental.

Isso não significa que os pais deixem de ser responsabilizados pelos atos praticados pelos menores: “a autoridade parental, verdadeiro múnus, os obriga a participar ativamente da tomada de decisão dos filhos na rede por meio daquilo que a doutrina tem chamado de “educação digital”, em contraposição direta ao que se convencionou designar por “abandono digital”, mas que “o consentimento passa a ser encarado numa perspectiva dialógica [comunicativa], que considera e tem como base a autonomia crescente daquela pessoa em desenvolvimento”. É o que ensina a advogada e especialista em proteção de dados pessoais Elora Fernandes:

“[O] legislador deliberadamente excluiu o adolescente da regra insculpida no parágrafo primeiro do artigo. E o que está por trás disso é justamente essa percepção de que deve ser considerada a autonomia do adolescente, cuja predominância é diretamente proporcional ao desenvolvimento de suas capacidades para assumir os encargos de sua vida na rede e fora dela a partir de uma atuação dialógica dos pais”.

Referências

Laterça, Priscilla Silva; Fernandes, Elora; Teffé, Chiara Spadaccini de; Branco, Sérgio (Coords.). Privacidade e Proteção de Dados de Crianças e Adolescentes.

Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, 2020. Pesquisa TIC Kids Brasil 2020: Edição COVID-19 – Metodologia adaptada.

Fernandes, Elora; Medon, Filipe. Proteção de Crianças e Adolescentes na LGPD: Desafios Interpretativos.

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Conteúdo escrito por:
Apenas um rapaz latino-americano. Paulista com orgulho. Atualmente, cursando Direito pela USP e estagiário na Câmara Municipal de São Paulo. Sou apaixonado por história, política e antropologia. Entusiasta do Homem-Aranha de Andrew Garfield e rumo à marca de assistir Interestelar 100x. Iludido. Ainda nutro esperanças quanto ao futuro do Brasil.
Belchior, Felipe. Privacidade e proteção de dados de crianças e adolescentes nos meios digitais. Politize!, 2 de setembro, 2022
Disponível em: https://www.politize.com.br/privacidade-e-protecao-de-dados-de-criancas-e-adolescentes-nos-meios-digitais/.
Acesso em: 9 de out, 2024.

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