Como assim, cultura do estupro?

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Ato contra a violência e a cultura do estupro, Rio de Janeiro. Imagem: Divulgação.
Ato contra a violência e a cultura do estupro, Rio de Janeiro. Imagem: Divulgação.

Será que existe uma cultura que influencia o estupro de mulheres no Brasil? O termo cultura do estupro veio à tona após a enorme repercussão de um caso grave de estupro coletivo ocorrido no mês de maio de 2016, no Rio de Janeiro. Os estupradores chegaram a documentar seus crimes em vídeos (o que, por si só, também é um crime). 

Mas, esse não foi um caso isolado, outros tiveram grande repercussão também fazendo com que seja discutida a possibilidade de existir uma cultura do estupro no país

Em 2022, por exemplo, diversos crimes de estupro também vieram a tona, entre eles o caso de uma mulher estuprada por um médico anestesista durante o trabalho de parto e o caso de uma menina de 11 anos, impedida de realizar o procedimento abortivo inicialmente.

Diante desse contexto problemático e preocupante que, infelizmente, é tão presente na sociedade brasileira, a Politize! veio contextualizar esse conceito para você.

Leia também: O que é objetificação da mulher?

Em primeiro lugar, o que é cultura?

Primeiro, vamos entender um pouco sobre o que é cultura e qual seu papel nas nossas vidas. Em geral, quando falamos de cultura, remetemos a algo positivo e legítimo. E é aí que pode morar o incômodo com o termo “cultura do estupro”. A palavra “cultura” nesse caso, não simboliza algo positivo, nem legítimo. Também não é uma crítica que sugere, por exemplo, que a sociedade seria conivente com o estupro. Não mesmo!

A nossa cultura pode possuir diversos aspectos bons como a música popular, a arte de rua, a hospitalidade do nosso povo, a paixão pelo futebol. Mesmo que não seja consensual, em geral, esses aspectos são interpretados como características positivas da cultura brasileira.

No entanto, nossa cultura pode abrigar também comportamentos que estamos acostumados a aceitar, mas que não são necessariamente são bons. Como nós crescemos vivenciando e aprendendo a repetir esses comportamentos, nossa tendência é pensar que eles são “naturais”. Ou seja, que faz parte de nós enquanto seres humanos, e que, da mesma forma que um gato não pode latir, certos comportamentos da “natureza humana” não poderiam ser modificados.

É a partir disso que surge a problematização da discussão sobre cultura. O ser humano ocidental não vive mais no seu estado de natureza, seus comportamentos são frutos de sua cultura. A cultura que foi criada há décadas ou séculos atrás e que se modifica lentamente ao longo do tempo. Denys Cuche, em seu livro “A Noção de Cultura nas Ciências Sociais” (1999), explica que:

A noção de cultura se revela então o instrumento adequado para acabar com as explicações naturalizantes dos comportamentos humanos. A natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela cultura.

Ou seja, ele quis dizer que temos que tomar muito cuidado ao naturalizar os nossos comportamentos, pois eles não são realmente “naturais”, e sim condicionados pela nossa cultura.

O termo “cultura do estupro” tem sido usado desde os anos 1970, época da chamada segunda onda feminista, para apontar comportamentos tanto sutis, quanto explícitos que silenciam ou relativizam a violência sexual contra a mulher. A palavra “cultura” no termo “cultura do estupro” reforça a ideia de que esses comportamentos não podem ser interpretados como normais ou naturais. Se é cultural, nós criamos. Se nós criamos, podemos mudá-los.

Que tal baixar esse infográfico em alta resolução? Acesse aqui.

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Estupro: definição legal

Ok, mas entre esses comportamentos sutis e um estupro há uma longa distância, não? Aqui chegamos à segunda parte da problematização dessa questão. Afinal, o que é considerado como estupro na atual legislação brasileira?

O estupro configura-se em um crime contra a liberdade sexual. Frequentemente, as pessoas entendem o estupro como um ato sexual não consensual. Essa interpretação é equivocada porque, no próprio Código Penal, o conceito de estupro é mais amplo. Ele é classificado como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (Art. 213 da Lei Nº 12.015/2009).

“Ato libidinoso” refere-se a qualquer ação que tem como objetivo a satisfação sexual. Ou seja, não tem a ver somente com o ato sexual em si.

Leia também: Os desafios de implementação dos direitos das mulheres

Culpabilização da vítima

Manifestação de mulheres contra a cultura do estupro, Rio de Janeiro, junho de 2016. Imagem: Bruna Freire.
Manifestação de mulheres contra a cultura do estupro, Rio de Janeiro, junho de 2016. Imagem: Bruna Freire.

Há uma tendência social de culpabilização das vítimas de estupro, o que significa que uma parcela da sociedade comumente considera mulheres vítimas de estupro culpadas por terem sofrido a violência sexual

Essa culpabilização muitas vezes se fundamenta em princípios de moral e bons costumes. Desse modo, os indivíduos que culpam a mulher por ser vitimada, alegam que o estupro não ocorreria caso ela tivesse comportamentos diferentes, usasse outras roupas, frequentasse ambientes diferentes, entre outras coisas.

Em pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Datafolha evidenciou que mais de 33% das pessoas responsabilizam a mulher por sofrer estupro, ou seja, um terço da população brasileira. 

Ainda se tratando de números, a pesquisa revela que 42% dos homens e 32% das mulheres entrevistadas estão de acordo com a seguinte afirmação: “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”. Por sua vez, 63% das mulheres e 51% dos homens discordam dessa afirmativa.

Assim, para além de dar indícios de como mulheres são vistas na sociedade atual, tais dados sobre culpabilização da vítima também acarreta em outras problemáticas, sendo uma delas a cultura da não denúncia

Cultura da não denúncia

A forma como os casos de estupro são recebidos pela sociedade, somada ao medo que essas mulheres têm de seus agressores, faz com que grande parte das mulheres não denunciem estupros e outras espécies de violências. Isso porque existe um grande descrédito e tratamento insensível quanto a essas denúncias.

A pesquisa de opinião “Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher — 2021”, realizada pelo Instituto DataSenado em conjunto com o Observatório da Mulher contra a Violência, em que 3 mil pessoas foram entrevistadas, apresenta dados alarmantes que evidenciam o machismo na sociedade brasileira.

De acordo com a pesquisa, 68% das entrevistadas conhecem uma ou mais mulheres que já foram vítimas de violência doméstica e 27% declararam já terem sofrido alguma agressão por parte de um homem.

A pesquisa indica também que 18% das mulheres agredidas por homens têm convivência com o próprio agressor. Isso reflete um outro dado desse levantamento: 75% das entrevistadas acreditam que o medo da mulher é o que a faz não denunciar

Dessa forma, a cultura do estupro e a cultura da não denúncia têm origem numa mesma estrutura: o machismo.

Veja também nosso vídeo sobre machismo estrutural!

Machismo e a objetificação da mulher

O machismo é um dos problemas mais debatidos na sociedade contemporânea, trata-se de uma forma de sexismo na qual a discriminação tem como preceito o sexo ou gênero da pessoas.

Segundo a doutora em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em gênero e raça, Bruna Cristina Jaquetto Pereira, o machismo é a ideia de que existem distinções entre homens e mulheres, o que, por consequência, diferencia os dois grupos e torna os homens superiores – entendendo que esses são mais racionais, fortes e objetivos, enquanto as mulheres seriam o oposto.

Essa estrutura machista é que torna possível que haja a objetificação da mulher, a qual está enraizada na sociedade brasileira e perpetua a cultura do estupro. Essa objetificação se manifesta de diversas formas, como na divulgação de fotos e vídeos íntimos e em comentários e “piadas” sexistas. 

A professora, assistente social e doutoranda em Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Izabel Solyszko, destaca que:

“Nessa cultura machista que só pode se sustentar pela existência de uma sociedade patriarcal, são diversos os mecanismos que vão das piadas que nos desqualificam para dirigir, para ser engenheiras, para ser presidente do país até a violência sexual no transporte público e nas ruas.”

É justamente por isso que o termo “violência sexual” abarca os diferentes tipos de agressão que também ferem a dignidade e a liberdade sexual da pessoa, como: assédio, exploração sexual e estupro. Nesse sentido, é possível contemplar também os comentários, “cantadas” e “piadas” de cunho sexista. 

Leia também: Machismo: você entende mesmo o que significa?

Dados

Além dessa questão conceitual sobre estupro, que ainda é pouco conhecida, existe outro aspecto dessa discussão que prejudica uma análise mais realista sobre esse crime. Quando se fala em estupro, há um imaginário comum por trás dessa ação que é quase cinematográfico. 

É mais fácil pensar que os praticantes desse crime são monstros, pessoas mentalmente desequilibradas ou pessoas que já estão marginalizadas pela sociedade e que não possuem tanta noção do que estão fazendo.

Infelizmente, a realidade está distante do que aparece nos filmes. Segundo dados levantados em nota técnica do IPEA de 2014, mais de 50% dos estupros sofridos por crianças e adolescentes foram praticados por pessoas conhecidas, como pais, padrastos, namorados e amigos. Entre adultos, os estupros praticados por conhecidos são quase 40% dos casos.

O estupro é um dos crimes menos reportados às autoridades: apenas 10% dos casos são registrados pela polícia. Ou seja, ainda é necessário encorajar e empoderar as vítimas para que recorram às autoridades e é necessário que as nossas instituições melhorem o acolhimento dessas vítimas.

Outro dado importante desta nota técnica se refere à forma de coerção usada contra a vítima. Independentemente da idade da vítima ou da proximidade que o agressor tinha com ela, o estupro aconteceu por meio do uso da força física ou de ameaça em cerca de 50% dos casos. Ou seja, há um comportamento comum nesse crime de abuso que é entendido e compartilhado entre os agressores.

Confira a trilha de cinco conteúdos sobre mulheres e democracia!

[…] esses comportamentos não podem ser interpretados como normais ou naturais. Se é cultural, nós criamos. Se nós criamos, podemos mudá-los.

E por que o debate sobre a cultura do estupro é focado nos abusos que os homens cometem contra as mulheres? Os dados da nota técnica do IPEA mostram que 88% das vítimas de violência sexual são mulheres e que 90% dos agressores são homens. 

Um estupro a cada 10 minutos em 2021 

Os dados mais recentes, apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBPS) revelam que o Brasil teve um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas em 20221.

A pesquisa da FBPS mostra também que mais de 100 mil meninas e mulheres foram vítimas de violência sexual entre março de 2020 e dezembro de 2021. O que representa um aumento de 3,7% comparado ao ano anterior. Apenas em 20221, foram registrados 56.098 casos do gênero feminino.

Além disso, o levantamento de dados da FBPS também evidencia que houve um aumento nos crimes contra meninas e mulheres durante a pandemia de covid-19, isso porque os casos apresentaram grande aumento entre março de 2020 e dezembro de 2021.

Leia também: Feminicídio: a faceta final do machismo no Brasil

Cultura do estupro e relações de gênero 

Portanto, ainda temos uma minoria de casos sendo relatados, uma expressiva quantidade de mulheres entre as vítimas e uma expressiva quantidade de homens entre os agressores, isso torna necessário que esse fenômeno seja estudado sob a ótica das relações de gênero. 

Por que as mulheres não estão denunciando os crimes? Por que são a maioria entre as vítimas? Qual é o perfil dos agressores?

Todas essas perguntas são de extrema complexidade e não possuem respostas prontas. Elas são importantes para estimular os estudos, as pesquisas e para abrir o diálogo sobre esse crime que é tão grave e tão repugnado pela nossa sociedade.

Por que então se fala em “cultura do estupro” e não apenas do estupro em si, enquanto crime? Se estamos querendo abrir o diálogo, precisamos começar ouvindo principalmente as vítimas majoritárias: as mulheres. E as mulheres estão falando.

O que as mulheres têm feito cada vez mais é levantar suas vozes para apontar as violências sofridas no cotidiano e que também atentam contra sua liberdade sexual. 

Veja também nosso vídeo sobre o que é gênero!

Combate a cultura do estupro

As mulheres têm falado cada vez mais sobre como essas violências rotineiras têm importância e são graves. Por isso tem sido ressaltado que não adianta a sociedade se incomodar apenas com os casos brutais de estupro, pois a violência também está presente no assédio

A cultura do estupro, portanto, abrange todo o espectro comportamental e cultural que subjuga o corpo da mulher, criando contexto para a violência. Esses comportamentos e culturas não são necessariamente aceitos ou legitimados pela sociedade, mas estão sendo negligenciados e naturalizados.

Combater a cultura do estupro implica estarmos atentos a toda e qualquer atitude cotidiana que agride a liberdade sexual da mulher. As duas palavras-chaves que auxiliam nesse processo são: consenso e respeito. Precisamos respeitar mais a mulher enquanto indivíduo, enquanto ser humano que ela é. Com seus desejos, medos, ambições e sonhos. 

A mulher não é um objeto a ser apreciado onde quer que esteja, ela não é um enfeite para vender produtos ou para ser mostrado para as pessoas, ela não é obrigada a satisfazer vontades sexuais das quais ela não compartilha. A mulher livre é a mulher que não teme.

E aí, você conseguiu compreender o que é a cultura do estupro? Deixe sua opinião ou dúvida nos comentários!

Referências:

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Conteúdo escrito por:
Graduanda em Relações Internacionais na Universidade de Brasília (UnB). Entre os interesses de pesquisa estão: movimentos negros, direitos humanos, migração e estudos de gênero, raça e classe. Acredita na educação popular como um meio de emancipação coletiva.

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