A cultura de paz está relacionada ao compromisso de rejeitar atitudes violentas, assumindo uma nova postura frente a vida, através da não violência, embasada no exercício do diálogo e da mediação dos conflitos.
A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, adotada em 2015 por 193 países, inclusive o Brasil, definiu as prioridades do desenvolvimento sustentável global para 2030.
Dois objetivos reafirmam a importância da Cultura de Paz e Não Violência: 4 – Educação de Qualidade e 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes. Especificamente o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável no item 4.7 define que as nações deverão:
“Garantir que todos os alunos adquiram conhecimentos e competências necessárias para promover a Educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz e não-violência, cidadania global, e valorização da diversidade cultural”.
Entretanto, é inegável que a violência está presente no ambiente escolar, manifestando-se de diversas formas. Como afirmam as autoras Lia Diskin e Laura Roizman, a violência tornou-se uma realidade cotidiana nas escolas e talvez uma das missões mais desafiadoras seja a implementação da cultura de paz no ambiente escolar.
Neste texto, a Politize! explica o que é cultura de paz, o que é o princípio da não violência, além de trazer marcos históricos sobre o tema, sua conexão com a escola e sua importância para construção de uma sociedade não violenta.
Quer entender mais sobre violência e cultura de paz? Confira o conteúdo do Projeto Direito ao Desenvolvimento: Como o ODS 16 ajuda a combater a violência e promover uma cultura de paz?
Paz e Não Violência como objeto de estudo
A paz como objeto de estudo científico é historicamente recente. Muñoz (2001), através da experiência das guerras mundiais e, em especial, após a Segunda Guerra, afirma que a paz começou a ser considerada um tema no campo do estudo científico.
- No final da década de 1950: surgem os primeiros Estudos para a Paz (Peace Studies) nos Estados Unidos, em que a expressão utilizada era “pesquisa do conflito” (conflict research).
- Em 1957: foi criado o jornal Journal of Conflict Resolution por Kenneth Boulding, Herbert Kelman e Anatol Rapoport.
- Em 1959: foi criado o Center for Research on Conflict Resolution na Universidade de Michigan.
- No mesmo ano, originou-se em Oslo, o Instituto Internacional de Investigação para a Paz (International Peace Research Institute). Johan Vincent Galtung, matemático e sociólogo norueguês é o principal fundador da disciplina de Estudos sobre Paz e Conflitos, que tinha como objetivo centralizar a paz em objeto de estudo científico.
Galtung ampliou o conceito de paz, diferenciando os conceitos de paz negativa e paz positiva. A paz negativa representa a ausência da guerra e a ausência das manifestações diretas e aparentes da violência.
A paz positiva representa o compromisso com a construção de um sistema social global integrado, onde as mudanças sociais possam ser alcançadas através de meios não violentos.
A corrente de estudos sobre a não violência, existe desde 1919 e tem como princípios fundamentais: “Firmness in truth” (firmeza na verdade) e “nonviolent action” (ação não violenta).
Tais estudos desenvolveram e aplicaram técnicas da não-cooperação e da desobediência civil para situações violentas. A autoconfiança, a disposição de ajudar os outros livremente e a objeção de consciência são alguns dos ensinamentos da corrente de estudos não violentos.
Nessa corrente, o conceito comunitário de educação prevalece, os membros da comunidade são envolvidos e responsáveis pelo seu desenvolvimento, a escola é aberta e integrada ao seu ambiente.
O princípio da não violência, na visão de Jean Muller (2007) implica na exigência de procurar uma maneira não violenta de agir eficazmente contra a violência. Para tanto é necessário inicialmente a compreensão de que a educação para a não violência se torna um instrumento hábil a combater todas as espécies de violência.
Portanto, podemos compreender a não violência como uma força moral, uma postura frente a vida, uma consciência individual ou coletiva, uma forma de persuadir para um caminho não violento.
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Cultura de Paz e Não Violência na educação
Há três décadas, a Educação para a Paz como um caminho pedagógico para uma cultura de paz é ponto de estudo e pesquisa em países europeus e da América do Norte.
Educar para a Paz possui um duplo propósito: a prevenção das violências baseada em uma pedagogia que possibilite melhor qualificação da convivência no ambiente escolar e resolução não violenta dos conflitos.
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Xesús Jares, professor espanhol Catedrático em Didática, teve uma relevante contribuição nos estudos da Educação da Paz. Foi presidente da Associação Espanhola de Investigação para a Paz (AIPAZ) e autor de vários livros, entre eles:
- Educação para a paz: teoria e prática;
- Educar para paz em tempos difíceis;
- Pedagogia da Convivência;
- Educar para a Verdade e para a Esperança em tempos da globalização, guerra preventiva e terrorismo.
Jares sabia do desafio em transformar a escola em um ambiente de sensibilização e convivência menos violentas e conceituava que:
A paz refere-se a uma estrutura e a relações sociais caracterizados pela ausência de todo tipo de violência e pela presença de justiça, igualdade, respeito e liberdade. Por isso, dizemos que a paz se refere a três conceitos intimamente ligados entre si: o desenvolvimento, os direitos humanos e a democracia (JARES, 1999, p.131).
Outro marco importante ococrre em 6 de outubro de 1999, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas lança a “Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz”.
O documento define a cultura de paz em um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida baseados no respeito à vida, no fim da violência e na promoção e prática da não violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação.
A democracia, a escola e a cutura de paz e não violência
A escola, formada de professores, funcionários, estudantes e seus responsáveis, tem como principal função contribuir na formação educacional de crianças, adolescentes, jovens e adultos. O papel socializador da escola é inegável, pois é na escola que aprendemos a ler, a escrever, a conviver com as diferenças e a respeitar pessoas.
Como a cultura não é internalizada ao nascermos, é através do convívio diário que a cultura é assimilada, através de crenças, ideias, pensamentos e atitudes. Nesse sentido, a socialização é a construção do ser social, é a percepção do ser humano sobre princípios, éticos e morais, de comportamento toleráveis ou intoleráveis em sociedade.
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No Brasil, o Artigo 12 da Lei nº 9.394/96 – item X – da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional versa estabelecer ações destinadas a promover a cultura de paz nas escolas.
Em 14 de maio de 2018 foi sancionada a Lei nº. 13.663, que alterou o artigo 12 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) da Lei nº. 9.394/96, incluindo medidas de combate à violência e a promoção da cultura de paz nos estabelecimentos de ensino.
Com esta alteração, foram inseridos dois incisos: IX – promover medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência, especialmente à intimidação sistemática (bullying), no âmbito das escolas; X – estabelecer ações destinadas a promover a cultura de paz nas escolas.
Para a assimilação e implementação de uma cultura de paz e não violência, a escola precisa ser um espaço democrático. A convivência entre todos precisa ser harmoniosa e o respeito deve prevalecer.
Para Hax (2021), é necessário repensar a cultura de paz a partir de relações entre paz e democracia. Um ambiente democrático favorece a construção da cultura de paz, onde todos possam ter direito de opinião, bem como reforçar os direitos que todo cidadão deve ter, diminuindo a desigualdade existente na sociedade.
Apesar do processo de socialização e sensibilização por uma convivência baseada no diálogo e respeito pode começar na infância, mas não podemos afirmar que termina na vida adulta.
A construção de uma cultura baseada na paz e não violência, de forma coletiva, democrática, que respeita os direitos humanos abrange a comunidade escolar, pode ir além dos professores, funcionários, estudantes e seus responsáveis e inspirar a sociedade como um todo.
Uma mudança de dentro para fora
Como vimos, da macropolítica à micropolítica, o estabelecimento da paz, utilizando métodos não violentos está previsto em estudos científicos, tratados, legislações, agendas e acordos internacionais.
Então, por que é tão difícil uma mudança cultural em direção à paz, através da não violência? Por que a revanche, a vingança, o ódio e a violência em todas suas formas ainda são as respostas para os conflitos cotidianos?
A transformação de uma cultura de violência para uma cultura de paz e não violência é um processo de mudança interna dos indivíduos que se expressará através de crenças, ideias, pensamentos e atitudes, em que a empatia, o respeito às diferenças e a compaixão estarão presentes.
É um processo cotidiano e que exige esforço e intencionalidade, ou seja, não é um caminho fácil. Trata-se de mudança interna e uma convicção de a não violência é uma força moral capaz de responder as situações mais desafiadoras.
Tolstói em troca de correspondências com Gandhi dizia que “o que chamam de não violência nada mais é, em sua essência, do que a doutrina do amor, livre de falsas interpretações”.
Como ressaltava Gandhi “a regra de ouro de conduta é a tolerância mútua, visto que nunca pensaremos todos da mesma forma e sempre veremos a verdade em fragmentos e sob diferentes pontos de vista”.
O pensador argentino Silo reafirmava a necessidade de mudança interna ao dizer “leva a paz em ti e leva-a aos demais” e declarava também que “não há falsas portas para se acabar com a violência”, ela poderá ter fim em cada pessoa, na sociedade e no mundo que nos rodeia “pela fé interna e pela meditação interna”.
Portanto, nesse processo de construção da cultura de paz e não violência, os acordos internacionais, as políticas públicas, as legislações locais, as instituições educacionais e todos nós temos a responsabilidade de contribuir para sua concretização, incluindo você, leitora ou leitor que nos lê agora.
Qual sua opinião sobre a cultura de paz e não violência nas escolas? Deixe suas dúvidas, críticas, elogios ou sugestões nos comentários!
Referências
- Artigo 12 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional / 1996
- Câmara dos Deputados – Lei 13.663
- Declaração e programa de ação sobre uma cultura da paz, Resolução A/RES/53/243 aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 6 de outubro de 1999, art.º 1º.
- Diskin, L. Paz, como se faz?: semeando cultura de paz nas escolas / Lia Diskin e Laura Gorresio Roizman — Brasília: Governo do Estado deSergipe, UNESCO, Associação Palas Athena, 2002.
- Galtung, J. Peace by peaceful means. London: Sage, 1995.
- Hax, C.S.A. Educar para Paz: Reflexões pedagógicas em uma escola pública no RS. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Pampa, 2021.
- Jares, X. R. Educação para a paz: sua teoria e sua Prática. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 1999.
- Jares, X. R. Educar para a paz em tempos difíceis. São Paulo: Palas Athenas, 2007.
- Muller, J. O Princípio de Não-Violência – Percurso Filosófico. Lisboa, Ed. Instituto Piaget, 1998.
- Muñoz, F. A. La paz imperfecta. In: López Martinez, M. et al. (Orgs.). Enciclopedia de paz y conflictos: L-Z. Granada: Editorial Universidad de Granada, 2011.
- Silo. A Cura do Sofrimento e O Olhar Interior. San Jose: EdiNexo E.I.R.L, 2016.