A interpretação no Direito é atividade essencial para promover a efetividade dos direitos humanos transcritos nas Constituições, bem como nos tratados internacionais. Nesse sentido, o controle de convencionalidade se apresenta como o mecanismo que permite a adequação do nosso ordenamento jurídico às obrigações internacionais.
Em 1998, o Brasil reconheceu a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), submetendo-se a suas decisões. O Estado brasileiro deve estar em plena conformidade às disposições dos tratados e à jurisprudência da Corte IDH, seja na interpretação de normas internas ou na adoção e afastamento de leis.
Ao longo do texto, você irá aprender a teorização e a aplicabilidade desse controle no país, a partir de dois importantes casos exemplificativos. Confira mais a seguir!
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O que é o controle de convencionalidade?
Em 1992, a Convenção Americana, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica foi incorporada no sistema jurídico brasileiro por meio do decreto 678, sem qualquer reserva. Posteriormente, em 1998, também houve o reconhecimento da jurisdição contenciosa da Corte IDH, mediante o decreto legislativo 89/1998.
A Corte é uma instituição judicial autônoma, cujo objetivo é aplicar e interpretar a Convenção, tendo o Brasil como um dos vintes países que integram o sistema americano e se submetem ao seu poder decisório. Logo, cabe ao Estado adotar medidas no direito interno que possibilitem a compatibilidade das normas brasileiras com as obrigações internacionais, as quais o país se comprometeu.
Nesse sentido, o controle de convencionalidade é um mecanismo fundamental para permitir a adequação do ordenamento jurídico brasileiro infraconstitucional aos tratados internacionais de direitos humanos. O parâmetro da convencionalidade é a normativa internacional e a jurisprudência da Corte IDH, tanto conflituosa (ao lidar com litígios diretamente) quanto consultiva.
Ana Beatriz Dias, defensora pública do Rio de Janeiro, destaca que a realização deve se dar de ofício por toda autoridade pública, ao considerar o caráter obrigatório de conformidade. Essa obrigatoriedade deriva de princípios de direito internacional público e de obrigações internacionais assumidas pelo Estado ao fazer parte da Convenção Americana de Direitos Humanos.
A obrigatoriedade, no entanto, não retira a autonomia do Poder Judiciário nas decisões em que se deva aplicar o direito internacional. Cançado Trindade, professor brasileiro e ex-juiz da Corte, ressalta a não substituição dos tribunais internos pelas cortes internacionais, que “tampouco operam como tribunais de recursos ou de cassação de decisões dos tribunais internos”.
No entanto, os desacordos entre a decisão judicial doméstica e a interpretação da Corte IDH podem configurar a responsabilidade internacional do Estado. Desse modo, os órgãos de supervisão internacional são responsáveis pelo controle da compatibilidade da interpretação e aplicação do direito interno com as obrigações convencionais.
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Entenda a diferença: controle de convencionalidade e controle de constitucionalidade
Naturalmente podem surgir dúvidas sobre qual seria a diferença (ou melhor, as diferenças) entre o controle de convencionalidade e o controle de constitucionalidade. Conforme posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF), o status atribuído aos tratados de direitos humanos tem caráter de supralegalidade, ou seja, um patamar especial entre as leis infraconstitucionais e a Constituição Federal de 1988 (CF/88).
Na ocasião em que o tema foi discutido, o ministro Gilmar Mendes considerou que “os tratados sobre Direitos Humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana”.
Dito isto, temos duas diferentes formas de controle jurisdicional. A advogada Natalie Rodrigues Martins Rosa da Silva estabelece três distinções fundamentais:
1) Enquanto o controle de constitucionalidade, sempre nacional, utiliza a Constituição como paradigma, o controle de convencionalidade se fundamenta nos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos validados pela República Federativa do Brasil.
2) O controle constitucional visa preservar a unidade do ordenamento jurídico. A CF/88 está no topo da pirâmide jurídica, de modo que emite seu fundamento de validade para as normas inferiores. Por outro lado, o controle de convencionalidade tem caráter complementar, com atividade centralizada em conciliar o conteúdo das leis internas ao dos tratados internacionais.
3) Por fim, o controle de constitucionalidade está também submetido a limitações tanto formais quanto materiais, implícitas ou explícitas. Aqui há uma definição importante, pois o controle de convencionalidade restringe-se apenas à limitação material (o conteúdo em si), a fim de limitar norma ou ato normativo que viole tratado ou convenção sobre direitos humanos, mesmo que não haja afronta direta à Constituição.
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Importante destacar que o controle de convencionalidade pode operar no âmbito nacional e internacional.
No primeiro sentido está a referência à declaração de constitucionalidade da lei e, no segundo, a possível responsabilização a nível internacional em razão de descumprimento de acordos assumidos pelo país. Tal atribuição se dá às Cortes Internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Supremo Tribunal Federal.
Resolução de conflito e exemplo de caso
O conflito normativo ocorre diante de um dispositivo legal contrário às obrigações assumidas pelo Estado internacionalmente. Segundo Ana Beatriz Dias, a ratificação da Convenção Americana envolve a interpretação dos arts. 1º e 2º do tratado.
Os artigos firmam o compromisso de respeito e garantia a direitos e liberdades, bem como o livre e pleno exercício a toda pessoa submetida a sua jurisdição. Além disso, impõe o dever de adotar as medidas legislativas necessárias para concretizar os direitos previstos.
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Com isso, se um Estado contraiu a obrigação de adotar tais medidas, não deve criar ou manter disposições incompatíveis com o intuito da Convenção Americana.
Perante um conflito, Roberto de Figueiredo Caldas, juiz da Corte IDH (2013-2018), aponta que a definição de qual norma deve prevalecer, seja interna ou internacional, se baseia na superioridade substancial. Isto é, deve prevalecer a norma que conferir mais proteção ao ser humano.
Em 2008, o STF posicionou-se sobre o tema ao discutir a prisão civil do depositário infiel. Configura depositário infiel o indivíduo que se recusa, injustamente, a devolver a coisa que lhe foi confiada com o dever legal de preservá-la e restitui-la no momento combinado.
Em acórdão do Recurso Extraordinário n° 349.703-1 foi reconhecido que, em razão da adesão brasileira ao Pacto Internacional dos Direitos Civil e Políticos (art. 11) e à Convenção (art. 7°, 7), inexiste base legal para essa prisão civil, antes autorizada pelo ordenamento interno. Ou seja, a prisão do depositário infiel passou a ser ilícita.
Estando esses diplomas internacionais abaixo da CF/88, mas acima das leis ordinárias, o status de supralegalidade dos tratados tornou inaplicável a legislação conflitante. Com isso, a previsão de prisão do depositário infiel posta no art. 652 do Código Civil deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação ao dispositivo infraconstitucional.
Repercussão no Direito brasileiro
André de Carvalho Ramos, professor em Direito Internacional da USP, afirma que os direitos humanos possuem uma dupla garantia: o controle de constitucionalidade nacional e o controle de convencionalidade internacional. Por isso, qualquer ato ou norma deve ser aprovado pelos dois controles para que sejam respeitados e assegurados os direitos humanos.
No país, o controle de convencionalidade é predominantemente exercido por juízes e tribunais mediante o julgamento de casos concretos, nos quais devem deixar de aplicar os atos que ensejem violações às prerrogativas. Ocorre que nem sempre os resultados das decisões da Corte IDH coincidirão com a atuação do Poder Judiciário local.
Logo, incumbe ao controle nacional obedecer a interpretação dada pelo controle de convencionalidade internacional para que se tenha a uniformidade nas resoluções de litígios.
Caso Gomes Lund: diálogo das Cortes
Nesse sentido, destaca-se o posicionamento do juiz Roberto Caldas, no Caso Gomes Lund. O caso trata de pessoas desaparecidas durante a atuação da Guerrilha do Araguaia, incluindo o estudante Guilherme Gomes Lund, o que ocasionou na condenação do governo brasileiro por violação dos direitos humanos das vítimas. Em seu voto, Caldas pontuou que:
“Se aos tribunais supremos ou aos constitucionais nacionais incumbe o controle de constitucionalidade e a última palavra judicial no âmbito interno dos Estados, à Corte Interamericana de Direitos Humanos cabe o controle de convencionalidade e a última palavra quando o tema encerre debate sobre direitos humanos. É o que decorre do reconhecimento formal da competência jurisdicional da Corte por um Estado, como o fez o Brasil”.
Em suma, o que há, de fato, é a necessidade de um diálogo intrínseco das Cortes.
Papel do Legislativo e Executivo
Muito foi abordado até o momento a atuação do Judiciário. Todavia, o exercício transcede o papel dos intérpretes do Direito, estando também presente nas atribuições dos demais poderes, o Legislativo e Executivo, como afirma a ministra Maria Elizabeth Rocha, do Superior Tribunal Militar (STM).
O Poder Legislativo controla a constitucionalidade dos projetos das futuras leis ao apreciá-las nas comissões de constituição e justiça do Senado Federal, bem como da Câmara dos Deputados. Dito isso, os parlamentares igualmente devem controlar a convencionalidade na produção normativa, rejeitando projetos inconvencionais, ainda que compatíveis com a Constituição. O procedimento preventivo evita que a regra venha a ser declarada inconvencional pelo juiz.
Ademais, o Poder Executivo exerce o controle da convencionalidade a partir do gestor público. Sendo o presidente um agente privativo para negociar a adesão do país a tratados internacionais, deve sancionar/vetar incoerentes com os postulados assinados pelo Brasil e incorporados à legislação nacional, sobretudo se forem mais benéficos aos administrados.
A atuação requer o amparo na supremacia constitucional e na presunção da legalidade, em respeito aos preceitos do Direito Administrativo que, por óbvio, incluem os pactos internacionais, conforme afirma a referida ministra. Desse modo, cada um dos três poderes, de forma harmônica e independente, deve reforçar o compromisso nacional com a garantia e efetividade dos direitos humanos, bem como do Estado Democrático de Direito.
E você, já conhecia o controle de convencionalidade? Conta pra gente nos comentários!
Referências:
- CNJ – Controle de convencionalidade contribui para garantia de direitos humanos
- Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
- CORTE IDH – Controle de Convencionalidade da Compatabilidade do Direito Doméstico com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos
- CORTE IDH – O Controle de Constitucionalidade e o Controle de Convencionalidade no Brasil
- CORTE IDH – O que é a Corte IDH?
- EMERJ – O Controle Jurisdicional de Convencionalidade das Leis em Relação aos Tratados e Convenções Internacionais Sobre Direitos Humanos – O Caso da Ação Penal 470: Processo do Mensalão
- MPU – Controle de Convencionalidade
- MPU – Controle de Convencionalidade: Origem, Conceito e Desdobramentos
- Sokolowski – Infiel depositário