Linguagem inclusiva e linguagem neutra: entenda a diferença

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Foto: Volodymyr Hryshchenko/Unsplash.
 

Em 11 de fevereiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou como ilegal a lei estadual nº 5.123/2021, que proibia o uso da linguagem neutra na grade curricular e materiais didáticos das escolas públicas e privadas de Rondônia. Segundo o STF, a sua decisão do STF reforça o princípio da dignidade humana e a importância de manter a linguagem inclusiva e neutra.

Você provavelmente já deve ter se deparado com algumas palavras escritas de uma forma curiosa, como “amigxs” ou “tod@s”. Talvez você também já tenha escutado alguém dizer “todes” ou “iles” em uma frase quando se referia a um grupo diverso de pessoas. Essas novas formas de expressão estão relacionadas a movimentos que buscam transformar nossa comunicação para que seja mais tolerante e inclusiva. Portanto, a decisão do STF é vista como uma conquista para esses movimentos.

Mas você sabe diferenciar a linguagem neutra da linguagem inclusiva? Nesse texto, a Politize! te explica as diferenças e semelhanças entre os dois conceitos.

O que é linguagem inclusiva e linguagem neutra?

A linguagem inclusiva ou não sexista é aquela que busca comunicar sem excluir ou invisibilizar nenhum grupo e sem alterar o idioma como o conhecemos. Essa linguagem propõe que as pessoas se expressem de forma que ninguém se sinta excluído utilizando palavras que já existem na língua.

Um exemplo é algo que escutamos bastante hoje em dia de pessoas que começam seus discursos ou apresentações dizendo “Boa noite a todos e todas”. O objetivo aí é abranger tanto homens como mulheres na conversa.

A linguagem neutra ou não binária, embora tenha o mesmo propósito de incluir a todas as pessoas, apresenta propostas para alterar o idioma e aqui entram por exemplo as novas grafias de palavras como as que mencionamos no início desse texto: amigxs, tod@s, todes. Os maiores defensores dessas mudanças são ativistas do movimento feminista e LGBTQIA+, que veem na nossa língua uma ferramenta a mais para perpetuar desigualdades.

Veja mais: Movimento LGBT: a importância da sua história e do seu dia

Uma das pessoas nessa luta é o ativista Pri Bertucci, que se considera uma pessoa trans não binária há pelo menos 15 anos. Em seu processo para encontrar seu lugar no mundo e se sentir aceito, ele fundou o instituto SSEX BBOX que há 10 anos trabalha realizando campanhas, eventos e consultorias para promover equidade social e fomentar a diversidade.

Uma das ações que o instituto lidera no Brasil é incentivar a comunicação inclusiva de várias formas, como através da criação de um manual de linguagem inclusiva em parceria com a HBO. Em entrevista para a Politize!, Pri conta que sua motivação em trabalhar nesses projetos nasceu de sua trajetória e das dificuldades que enfrentou para se sentir parte da sociedade.

“Quando eu tentava explicar meu gênero para minha família e amigos, ninguém entendia nada. Tive que criar essa linguagem para me explicar, pra dizer quem eu era e como queria ser chamado. Pra eu me sentir visto e respeitado”, relata ele. 

A comunicação inclusiva e o padrão da língua portuguesa 

O português, assim como o espanhol e outros idiomas provenientes do latim, possui fortes marcadores de gênero. Isso quer dizer que mudamos a forma como escrevemos ou falamos algumas palavras do nosso idioma de acordo com o gênero em questão. Isso acontece com os substantivos, adjetivos, artigos e pronomes: falamos meninas e meninos, bonitas e bonitos, eles e elas, e por aí vai. 

Assim, temos palavras consideradas masculinas e femininas, porém quando queremos falar de forma genérica ou no plural, é o gênero masculino que se considera o correto para representar o todo. Logo, se estamos falando de um grupo composto de meninos, meninas ou mesmo crianças de outros gêneros, o correto segundo a norma da língua é usar “eles” ou “todos” para se referir ao coletivo.

O uso do masculino quando queremos falar de forma genérica é uma regra que foi determinada nos anos 60, por um linguista chamado Joaquim Mattoso Câmara Jr. Nessa matéria do Nexo, a jornalista fala sobre como esse profissional definiu o que até hoje é conhecido como a norma culta da língua portuguesa.

Em entrevista à Politize!, a doutora em linguística Ana Pessotto contou que desde 2016 tem pesquisado sobre a comunicação inclusiva graças ao interesse de suas alunas, que queriam aprender mais sobre a marcação de gênero e o masculino generalizante.

“Foi uma grande descoberta para mim, como pesquisadora, porque percebi o quanto a linguística formal brasileira estava defasada no que diz respeito ao estudo e descrição da marcação de gênero, pautada ainda no trabalho do Mattoso Câmara que, apesar de genial, é da década 70, quando o trabalho experimental em linguística não era tão difundido como hoje e, principalmente, o debate sobre linguagem inclusiva, se existia, não tinha essa visibilidade toda”, conta a pesquisadora. 

Segundo ativistas da comunicação inclusiva, a forma como falamos, escrevemos e nos comunicamos reproduz nossos valores e crenças. Então, muitos dos estereótipos que conhecemos são validados e perpetuados de forma quase inconsciente. O que afirma esses ativistas é que embora a língua em si não seja sexista, nossa realidade é, logo a forma como nos expressamos reproduz essas desigualdades. 

Uma frase como “eles são os melhores trabalhadores que temos” não reflete de forma correta a diversidade que o grupo de trabalhadores pode apresentar. Como podemos saber se há mulheres, pessoas não-binárias ou que se identificam de outra forma neste grupo? Será que essas pessoas se sentem representadas por essa generalização? Esses são alguns dos questionamentos que apresentam.

A realidade em outros países

Outras línguas possuem regras distintas quando o assunto é gênero. Alguns idiomas não apresentam gênero, como o turco e o finlandês, já que não usam marcadores de gênero nem em seus substantivos, nem em seus pronomes pessoais. Já o inglês é considerado um dos idiomas de gênero neutro, já que quase não possui marcadores: seus substantivos, artigos, adjetivos e pronomes no geral são palavras únicas que representam a todos; somente seus pronomes pessoais se regem pelo gênero.

Em 2015, a Academia Sueca adotou o gênero neutro “hen” ao seu idioma para identificar as pessoas não binárias. Quando anunciaram a incorporação da palavra ao dicionário, sua justificativa foi que o uso da palavra e sua evolução na sociedade por muitos anos demonstrava que ela cumpre uma função e que por isso deveria ser adicionada à norma da língua. 

Veja mais: Gênero: você entende o que significa?

Quais são os argumentos a favor da comunicação inclusiva?

Aqueles que defendem o uso da linguagem neutra e inclusiva acreditam que isso colabora para:

  • Denunciar o machismo e a intolerância de gênero;
  • Visibilizar e identificar todos os gêneros, inclusive aqueles que se identificam com gêneros neutros;
  • Valorizar, respeitar e acolher a diversidade;
  • Não privilegiar algumas pessoas em detrimento de outras;
  • Gerar reflexão sobre a desigualdade de gênero em outros âmbitos para além da linguagem.

Algumas pesquisas, inclusive, demonstram que o uso do masculino genérico influencia a forma como as pessoas pensam. Por exemplo, o artigo “Yo, tú, elle, nosotres, vosotres, elles. El lenguaje inclusivo: ¿tiene algo que ofrecer?” (tradução: Eu, tu, ele, nós, vós, eles. A linguagem inclusiva: tem algo a oferecer?), apresenta uma investigação científica realizada em 2005, na qual são realizadas perguntas somente com marcadores masculinos.

Entre as perguntas estão: “Quem é seu músico preferido” ou “Quais são os atletas que mais admira?” e a maioria das pessoas entrevistadas respondeu  com nomes de homens. Quando a mesma pergunta era formulada com linguagem inclusiva (“Quem é seu artista musical preferido ou preferida?”), mais mulheres foram mencionadas.

Seguindo esse propósito, muitas soluções têm sido apresentados ao longo dos anos para trazer maior inclusão ao nosso idioma. Alguns exemplos de uso de linguagem inclusiva:

  • Dar preferência a palavras que representam a coletividade, por exemplo usar “a juventude” ao invés de “os jovens”, “pessoas beneficiárias” ao invés de “beneficiários”, “diretoria” ao invés de “os diretores”, etc.
  • Escolher substantivos que representam instituições ao invés de indivíduos: “classe política” ao invés de “os políticos”, “população indígena” ao invés de “os índios”, “poder judiciário” ao invés de “os juízes”, etc.
  • Reformular tempos verbais para que as frases sejam mais inclusivas e menos sexistas: “se tiver uma melhor formação, a polícia será menos racista” ao invés de “se os policiais tivessem uma formação melhor, o racismo diminuiria”, etc.

Entre os exemplos de uso de linguagem neutra, estão:

  • Utilizar os símbolos “@” ou “x” no lugar dos marcadores de gênero identificados por “o” ou “a”. Também colocar o sufixo “-e” ao invés de “-o” ou “-a”, já que marcam unicamente a dois gêneros, enquanto o “@”, “x” e o “e” abrangem maior diversidade.
  • Utilizar outros pronomes de gênero neutro, como o “ile”, desenvolvido por Pri Bertucci e pela psicóloga Andrea Zanella em 2015. Esse pronome é uma proposta para substituir o uso do “ele”/”eles” no caso de pessoas não-binárias e foi desenvolvido tomando como referência pronomes demonstrativos neutros do latim.

Quais são os argumentos contra essas mudanças?

Muitas pessoas defendem que usar essas palavras ou expressões torna a comunicação mais longa e repetitiva. Por exemplo, dizer “todos e todas” leva mais tempo que dizer simplesmente “todos”. Além disso, comentam que as mudanças de grafia com “x” ou “@” tornam a leitura difícil e muitas pessoas com deficiência visual que utilizam programas de leituras de texto se veem afetadas, pois esses softwares não conseguem ler palavras escritas assim.

Da mesma forma, a compreensão também poderia ficar comprometida com o uso de palavras com o sufixo “-e” ou os pronomes exemplificados anteriormente. Textos ou falas que usam essas palavras poderiam ser mais difíceis de entender ou confusos para alguém que não está acostumado.

Em definitiva, os argumentos contrários se baseiam no fato de que o gênero masculino é considerado neutro pela maioria dos órgãos responsáveis por regular os idiomas, como a Academia Brasileira de Letras e a Real Academia Espanhola, logo o masculino inclui a designação de todos os gêneros e nenhuma mudança seria necessária.

É possível mudar o português?

A comunicação inclusiva surge para confrontar as determinações da língua com o argumento de que não são representativas de todos os gêneros e que na realidade excluem e fomentam uma visão centrada no padrão de homem branco, cisgênero e heterossexual. Seus ativistas defendem que a linguagem é a forma que temos para aprender sobre o nosso entorno, e também para interagir com ele e gerar nossa visão de mundo.

Segundo o manual de linguagem não sexista do Observatório do Gênero, as línguas são “produtos sociais em constante mudança”: estão vivas e em constante evolução já que com o passar do tempo novos conceitos são incorporados à nossa vida.

Assim como com o advento da internet palavras que não existiam em português foram incorporadas ao nosso dicionário, como e-mail, chat e web, novas formas de expressar igualdade e aceitação aos distintos gêneros e grupos minoritários também deveriam ser incorporados pela língua. “O que antigamente se considerava como um erro gramatical hoje aparece como algo cotidiano e aceitável”, diz o manual.

Por sua vez, Ana Pessoto explica que todas as línguas humanas mudam frequentemente e, mesmo em um mesmo idioma, podemos observar como pessoas de diferentes lugares, classes sociais, escolaridade e comunidades distintas usam formas particulares para se expressar. Embora em nossa comunicação diária encontremos exemplos diversos de como cada grupo se manifesta, normalmente o padrão de cada idioma é imposto pelo grupo dominante.

“Em toda a história das línguas há formas menos privilegiadas e estigmatizadas, que estão associadas a grupos inferiorizados, estigmatizados, invisibilizados, etc, formas que sempre vão sofrer mais resistência para serem aceitas, ou reconhecidas como legítimas”, diz a linguista, que acredita que as discussões e questionamentos sobre como podemos melhorar a forma como nos comunicamos são necessárias para que a língua evolua.

“Como a língua(gem) premeia tudo, é legítimo que as pessoas queiram se sentir representadas nela, e achem um jeito para encontrar representatividade nela. (…) A linguagem inclusiva não é para si. É para ‘o outro’. É preciso aprender a olhar e reconhecer ‘o outro’. O ponto não é se você está à vontade com a linguagem inclusiva, mas sim se você está disposto a acolher ‘o outro’ com a linguagem”, finaliza a Pessoto.

Embora a língua esteja viva e em constante mudança, sem dúvida propor mudanças a um idioma como o português implica vários desdobramentos que precisamos levar em consideração. Quando falamos de modificar “alunos” por “alunes”, por exemplo, temos que ser conscientes de que não estamos mudando uma palavra isolada.

Na verdade, cada alteração reflete no conjunto de todas as frases nas quais essa palavra for inserida, já que nosso idioma exige concordância de gênero gramatical. Isso significa que uma frase como “todos os alunos são bem-vindos” ficaria “todes es alunes são bem-vindes”.

Para Ana Pessoto, é importante ter consciência do que as mudanças representam, não para evitá-las, mas sim para “contribuir e estimular as pessoas a pensarem mais e mais sobre isso, aprimorar as propostas, divulgar e educar para uma linguagem inclusiva”, afirma.

Há outras formas de ser mais inclusivo?

Para praticar uma comunicação mais inclusiva é importante considerar as demais pessoas na roda e praticar a empatia: se você se colocar no lugar dos demais, como acha que se sentiriam com a forma como você se dirige a eles?

A partir desses questionamentos vemos outras demandas surgirem, de movimentos como o antirracista, o anti capacitista, anti-gordofobia e muitos outros, que defendem que comunicação inclusiva também é abolir expressões preconceituosas e pejorativas que são parte do nosso dia a dia.

Algumas dicas extras que podemos aplicar são as seguintes:

  • Perguntar às pessoas como querem que se dirijam a elas e com qual pronomes se sentem mais identificadas.
  • Não utilizar adjetivos ou palavras que qualifiquem os indivíduos com base em seu gênero ou que transmitam convenções sociais estereotipadas. Alguns exemplos: “essa pessoa chora como uma mulher”, “tinha que ser mulher”, etc.
  • Não utilizar expressões consideradas preconceituosas, racistas ou capacitistas: “denegrir”, fazer algo “nas coxas”, “a coisa tá preta”, entre outras, são expressões racistas que temos incorporadas ao nosso dia a dia. Você pode ler mais conteúdos sobre isso desenvolvidos pela organização Indique uma Preta no Instagram. Da mesma forma, expressões como “aleijado”, “mongoloide” ou “inválido”, são consideradas ofensivas a pessoas com deficiência.

E você sabe até onde vai a sua liberdade de expressão? Confira nosso vídeo sobre o assunto!

Outro ponto importante que Pri alerta como desafio para alcançar uma comunicação verdadeiramente inclusiva é a apropriação do trabalho realizado por pessoas trans ou de grupos marginalizados. Em entrevista, o ativista relatou à Politize! que em várias ocasiões foi vítima ou presenciou situações nas quais pessoas se apropriaram da pesquisa de pessoas trans e/ou não binárias sem dar o devido crédito.

Segundo ele, essas identidades são continuamente apagadas: “A luta pela comunicação inclusiva não é algo novo, não é uma moda de agora. É uma recuperação de um processo histórico que foi distorcido pelo processo de colonização que deriva de duas vertentes: a branquitude e a cis-hetero-patriarquia”, explica. 

Para Pri, o bum das discussões sobre diversidade e a inclusão geraram situações nas quais pessoas que não estão capacitadas se utilizam dos conceitos criados pelos movimentos pró-diversidade e igualdade para se promoverem. Por isso, alerta que é importante questionar as pessoas que estão por trás das atividades ou publicações que vemos por aí para estar seguros de que possuem embasamento teórico.

“Não basta fazer um treinamento de diversidade e inclusão, é preciso problematizar quem é a pessoa dando esse treinamento. Ela está no seu lugar de fala? Ainda dentro da pauta a gente sofre esse processo de apagamento. Imaginem como as pessoas trans pretas se sentem. Não sendo representadas e sendo vociferadas por pessoas que não as representam”, lamenta ele.

Se você gostaria de continuar lendo sobre a comunicação inclusiva, a linguagem neutra e inclusiva, pode acessar os seguintes manuais: Manual para uso não sexista da linguagem do Governo do Estado do Rio Grande do Sul e Guia de Comunicação Inclusiva do Secretariado-Geral do Conselho da União Europeia.

E aí, conseguiu entender a diferença entre linguagem inclusiva e linguagem neutra? Qual a sua opinião sobre o tema? Qualquer dúvida deixe nos comentários!

Referências:
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3 comentários em “Linguagem inclusiva e linguagem neutra: entenda a diferença”

  1. Mauro Alberto Schreiner

    Muito bom! A linguagem sempre esteve em movimento! Nunca foi estática! Porque não, também nesse sentido de inclusão de todEs os gêneros?

  2. Luís Bustamante

    É muito importante buscarmos soluções para esses conflitos por meio da linguagem. Mas só terá efeito na conscientização e educação desde tenra idade. As propostas vêm de anos, e os problemas de racismo, sexismo e homofobia seguem aumentando

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Conteúdo escrito por:
Contadora de histórias formada em Jornalismo pela Unesp. Trabalhou com diferentes equipes em projetos de comunicação para meios, agências, ONGs, organizações públicas e privadas. É natural de São Paulo e atualmente vive em Montevidéu, Uruguai.
Folter, Regiane. Linguagem inclusiva e linguagem neutra: entenda a diferença. Politize!, 9 de março, 2021
Disponível em: https://www.politize.com.br/linguagem-inclusiva-e-linguagem-neutra-entenda/.
Acesso em: 11 de out, 2024.

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