Como a Tese do Indigenato afeta os direitos de indígenas no Brasil?

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Há algum tempo, uma grande discussão surgiu em torno do PL 490/07, o Marco Temporal, e da Tese do Indigenato. A votação do STF está sendo acompanhada minuciosamente pela mídia brasileira, mostrando principalmente como o resultado pode impactar diretamente os povos indígenas da nação.

O objetivo desse projeto de lei já está bem claro, mas você sabe o que está do outro lado da mesa? Vem entender mais sobre a Tese do Indigenato, o que é, sua relação com a jurisprudência e sua importância para as comunidades indígenas!

Povos indígenas estão lutando pela demarcação de suas terras. Imagem: Alass Derivas

O que é a Tese do Indigenato?

Por definição, “Indigenato” se refere tanto à população indígena de uma região quanto ao estado, ou qualidade, de indígena, ou seja, o que caracteriza sua identidade. Assim, é fácil deduzir que a tese se relaciona aos direitos indígenas no Brasil.

Ela foi desenvolvida há mais tempo do que imaginam: em 1902, em uma conferência da antiga Sociedade Ethnográfica e Civilização dos Índios. O responsável por desenvolver a tese foi João Mendes Júnior, advogado, professor, jurista e ministro do STF.

Em sua fala, Mendes determinou a diferença entre o Indigenato e o direito à ocupação. De acordo com o professor, o direito dos indígenas às suas terras é um título congênito, sendo assim inteiramente natural e independente de legitimação. Por outro lado, a ocupação é um título que se conquista, que tem de ser validado.

Essa ideia foi corroborada pelo professor José Afonso da Silva, que afirmou: “O indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito natural, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”.

Essa afirmação ressalta a importância do indigenato como um direito inerente aos povos indígenas.

Portanto, pode-se definir a Tese do Indigenato como o direito inalienável dos povos indígenas à ocupação de suas terras, já que são seus senhores primários e naturais. É um direito anterior à criação do Estado Brasileiro, que independe da legislação e que não pode ser limitado.

O que diz a legislação?

O artigo que diz respeito ao direito de ocupação das terras indígenas presente na Constituição de 1988 é o principal ponto de discussão atual. Mas você sabia que a questão já foi debatida em outros diversos documentos oficiais ao longo dos séculos?

A primeira menção ao direito sobre as terras indígenas foi feita no Alvará de 1680, que declarou respeito aos seus primitivos donos. Essa ideia foi reafirmada em uma lei de 6 de julho de 1755.

Entretanto, na primeira Constituição Brasileira, em 1824, nenhum artigo se relacionava com a população indígena. A questão só foi abordada novamente na Constituição de 1934, no artigo 129: “Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.”

Além disso, esse direito também foi assegurado nas ditaduras brasileiras, tanto a de Getúlio Vargas em 1937, quanto a militar em 1964.

Então, ao contrário do que muitos acreditam, a posse das terras silvícolas sempre foi discutida politicamente e, inclusive, garantida às comunidades indígenas que originalmente as ocupavam.

Finalmente, na Constituição de 1988, como parte do processo de redemocratização, houve avanços significativos nos direitos dos povos indígenas.

O principal deles é representado no artigo 231, o qual determina que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

Além disso, há especificidades sobre os territórios indígenas, definindo “terras tradicionalmente ocupadas” como aquelas ocupadas permanentemente e essenciais para a sobrevivência dessas comunidades.

Outro importante aspecto é o inciso § 4º do mesmo artigo, que determina a inalienabilidade e indisponibilidade dessas áreas, além da imprescritibilidade dos direitos sobre elas. Em resumo, a lei define as terras indígenas como não penhoráveis e intransferíveis, e os direitos como sem prazo de validade.

Veja também nosso vídeo sobre direitos étnico-raciais!

Então, a tese do indigenato é constitucional?

As leis outorgadas na CF/1988 parecem estar alinhadas com a Tese do Indigenato. Porém, há diversas interpretações e questionamentos sobre a constitucionalidade dessa teoria.

A mais comum delas adota como princípio o próprio indigenato, o qual teria respaldo constitucional. Nesse contexto, as “terras tradicionalmente ocupadas” seriam apropriadas pelos povos indígenas por tradição, como uma herança cultural.

Os “direitos originários” são entendidos como pertencentes às comunidades tradicionais desde a sua origem, ou seja, desde o período em que administravam suas terras sem interferência externa, antes mesmo da chegada dos portugueses.

Desse modo, a Constituição estaria legitimando a Teoria do Indigenato, endossando que os “senhores naturais” têm poder total e ilimitado sobre suas terras, uma garantia que antecede qualquer forma de governo.

Veja também: O que é marco temporal de terras indígenas?

O marco temporal

O projeto de lei do Marco Temporal pretende limitar o poder dos indígenas sobre seus territórios temporalmente: esses povos só poderiam ocupar determinada área se estivesse sob sua habitação em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

A teoria está sendo discutida desde 2007, mas ganhou significativa relevância com o caso da Terra Indígena Ibirama Laklanõ, em Santa Catarina, disputada entre a Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (FATMA) e o povo Xokleng.

A ação chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), com o ministro Edson Fachin como relator. Segundo ele, é essencial que uma das teses prevaleça: o marco temporal ou a tese do indigenato. A votação em curso determinará qual processo de demarcação de terras indígenas será legalizado.

Enquanto muitos alegam que o Marco Temporal é fundamental para diminuir os conflitos sobre os territórios silvícolas e esclarecer as dúvidas existentes sobre a legislação brasileira, os indígenas lutam contra ele e em defesa de seus territórios.

Comunidades indígenas foram às ruas de todo o Brasil, mas principalmente em Brasília, sede do governo. Em seus protestos, manifestam-se contra a teoria e começaram um movimento intitulado “Nossa história não começa em 88”.

Povos indígenas estão lutando pela demarcação de suas terras. Imagem: Alass Derivas

Em resumo, fica claro que o Marco Temporal diverge completamente da Tese do Indigenato, pois impõe um limite temporal aos direitos sobre as terras.

Outras interpretações

Em outra interpretação da legislação, a Tese do Indigenato é declarada como inconstitucional. Nela, a naturalidade do direito às terras é negada, ou seja, ele não é imemorial. Alguns pontos que sustentam essa teoria, contrapondo o indigenato:

  • O direito não seria primitivo pelo fato de que a proteção e demarcação das terras depende do Poder Público ou/e de leis;
  • Os “direitos originários”, como descrito na Carta Magna, referem-se à forma como são adquiridos, não à sua origem;
  • Novamente na análise de vocabulário, “as terras tradicionalmente ocupadas” seriam aquelas que são administradas de acordo com as tradições e costumes dos povos indígenas

Além disso, de acordo com certas características propostas no artigo 231, § 4º, esses territórios são considerados bens públicos de uso privado. Isso significa que eles são propriedade do Estado, mas os direitos à posse foram concedidos aos povos originários por meio de lei.

Essa interpretação vai contra o argumento mencionado por José Afonso da Silva, indicando que essa garantia é um título adquirido por lei e não algo que é naturalmente garantido, como afirma a Tese do Indigenato.

A sua importância para os povos indígenas (e outros fatores)

Constitucional ou não, a Tese do Indigenato apresenta imensurável importância para essa população aqui no Brasil. No entanto, enquanto ela não é aplicada na prática, os seus territórios estão sofrendo inúmeros ataques.

Estima-se que 85% das terras indígenas enfrentam algum tipo de invasão, um dado confirmado pela FUNAI. Além disso, de acordo com o Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas, divulgado em 2020, 63% dessas terras apresentavam alguma pendência no processo de demarcação.

Isso realmente destaca o quanto a aplicação da lei está sendo ineficaz, levando a sérios problemas para essas comunidades e seus estilos de vida. A posse de terras é essencial não apenas para a sobrevivência delas, mas também para todos os indivíduos.

O usufruto dos recursos naturais das áreas em questão para a satisfação dos povos indígenas que as habitam também é assegurado no art. 231/CF88. Isso destaca o valor material desses espaços físicos, pois sem eles, os indivíduos não seriam capazes de realizar suas atividades produtivas e se sustentar.

Além disso, não podemos esquecer o que as terras representam para a cultura e a identidade indígena. Sua importância vai muito além da sobrevivência – é um patrimônio imaterial.

A natureza é um elemento fundamental para o modo de vida desses povos, símbolo do indigenato. Portanto, ao praticar suas tradições e seu modo de vida em seus territórios, essa população exerce o seu direito humano de seguir sua cultura livremente.

Assim, proteger essas terras é uma forma de preservar a identidade indígena, uma ação essencial em um país que cada vez mais as invisibiliza. Mas essa questão vai além dessa população específica. A Tese do Indigenato também pode trazer benefícios para outros aspectos:

O Estado democrático

Um dos principais deveres de um governo democrático é garantir a inclusão social, a pluralidade e a participação de múltiplos grupos não apenas na política, mas em todos os espaços.

Nesse contexto, a luta pelos direitos às suas terras tem mobilizado cada vez mais povos indígenas no cenário político, permitindo com que eles se tornem protagonistas nesse meio. Por exemplo, muitos deles compareceram às últimas sessões no STF em relação ao Marco Temporal.

Com isso, a Funai destaca a relevância social da questão da demarcação de terras, auxiliando na construção de uma nação multicultural e pluriétnica.

A questão ambiental

Como mencionado, os territórios indígenas são extremamente fundamentais para a qualidade de vida e a dignidade desses povos. Portanto, se essas áreas são destruídas ou afetadas por algum dano ambiental, eles também serão impactados.

E é exatamente isso o que está ocorrendo: muitas das terras pertencentes à comunidades indígenas estão sendo desmatadas, poluídas e utilizadas como garimpos ilegais e latifúndios. Elas são vítimas do racismo ambiental.

A deterioração da natureza não afeta apenas esses povos. Na verdade, é um problema global, ainda mais intenso aqui no Brasil. E como podemos melhorar isso? Um fator a considerar é o aumento do número de territórios silvícolas.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), as terras indígenas representam as maiores áreas de conservação ambiental, sendo esses povos os que mais preservam a natureza.

Além disso, segundo estudos desenvolvidos em 2016, essas áreas possuem o potencial de reduzir a emissão de dióxido de carbono em 31,8 milhões de toneladas atuais. Esse é só mais um dado que prova a dimensão do poder dos povos originários sobre a natureza.

E aí, conseguiu entender o que é a Tese do Indigenato e sua importância para os povos indígenas? Acha que ela é válida? Deixe sua opinião nos comentários!

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Paulista, estudante e ainda no começo da minha jornada de conhecer o mundo. Passa horas lendo livros de romance no seu quarto, mas totalmente apaixonada por geopolítica e escrita.

Como a Tese do Indigenato afeta os direitos de indígenas no Brasil?

29 abr. 2024

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