O cangaço, fenômeno marcante na história do nordeste brasileiro, deixou um legado de mistério, violência e resistência. Entre os inúmeros personagens que se destacaram nesse cenário, nenhum é tão emblemático quanto Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião.
Enquanto expressão de banditismo social, emerge como um fenômeno profundamente controverso na história nacional, frequentemente dividido entre a representação de seus protagonistas como criminosos sanguinários ou como heróis populares.
Este fenômeno, com raízes sociais, políticas e culturais entrelaçadas, exerceu considerável impacto em grande parte da região nordeste, com exceção dos estados do Piauí e do Maranhão.
O cangaço se revela como um movimento social armado, enraizado em disputas políticas e territoriais, na busca pela preservação da honra e do poder, e na resposta à negligência do governo diante da desigualdade social que atingia a população local naquela época.
Além disso, sua existência foi agravada pelo isolamento geográfico e pela falta de comunicação eficaz com outras regiões do país. Este contexto contribui para a compreensão do cangaço como um fenômeno complexo, moldado por uma interseção única de fatores sociais, políticos e econômicos.
Neste artigo da Politize!, exploraremos a história do cangaço e quem foi Lampião, investigando as raízes desse banditismo que marcou profundamente a região nordeste.
Este texto foi dividido em duas partes, para saber quem foi Lampião e qual a sua representatividade para o sertão nordestino, leia mais: Lampião: o rei do cangaço ou o governador do sertão?
Cangaço como uma expressão de resistência e conflito social
O cangaço foi um fenômeno que se desenvolveu nas regiões áridas do nordeste brasileiro, especialmente entre as décadas de 1920 e 1930. E sabe o mais curioso? Ele existiu antes mesmo do nordeste propriamente dito.
De acordo com o professor e historiador Durval Muniz, o termo “nordeste” surgiu em 1891, quando era usado apenas como campo geográfico. Só nos anos 1920, intelectuais, como Gilberto Freyre, começaram a trabalhar o termo, dando sentido e simbolismo a ele.
Desde então, ao longo do século XX, o conceito foi ressignificado. O Brasil ainda era dividido em norte e sul. Ou seja, antes do nordeste existir, a região era chamada de norte.
O movimento, caracterizado por grupos de bandoleiros armados, conhecidos como cangaceiros, emergiu como uma resposta à seca (ou estiagem), à opressão social e à falta de oportunidades.
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Para contextualizar, ao longo da Primeira República (1889-1930), a maior parte da população brasileira morava no campo.
Nessa época, ocorreram vários conflitos nas regiões rurais envolvendo temáticas como direitos sociais, domínio de terras, equidade na distribuição de renda e rivalidades pelo controle político das famílias mais abastadas de Pernambuco, como a Pereira e a Carvalho.
A condição socioeconômica desigual do nordeste, aliada à presença de grandes latifúndios e à concentração de poder nas mãos de poucos, criou uma insatisfação propícia ao surgimento do cangaço como resistência e como disputa de poder no domínio de terras.
Os cangaceiros, em sua maioria, eram sertanejos marginalizados, muitas vezes forçados a abandonar suas terras devido às secas recorrentes e à falta de assistência governamental. Mas havia também aqueles, como Lampião, Antônio Silvino e Corisco (conhecido como “Diabo Loiro”), advindos de famílias abastadas, que entraram na criminalidade em busca de retomar o poder.
É importante lembrar que o fenômeno dos cangaceiros também era uma manifestação de banditismo, protagonizada por indivíduos violentos, criminosos e estupradores. Muitos tinham o banditismo como estilo de vida, matando por encomenda de coronéis.
Banditismo por uma questão de classe?
Embora muitos cangaceiros fossem criminosos, o cangaço também foi uma forma de resistência contra a injustiça social e a opressão. Como cantou Chico Science em “Banditismo por uma questão de classe”:
“Acontece hoje e acontecia no sertão, quando um bando de macaco perseguia Lampião. E o que ele falava, outros, hoje, ainda falam: eu carrego comigo coragem, dinheiro e bala.”.
Essa música aborda situações reais de banditismo que se tornaram lendárias no Recife, em Pernambuco, como os casos de Galeguinho do Coque, Biu do Olho Verde e a Perna Cabeluda. No entanto, ela assume um tom explicitamente politizado ao utilizar a figura histórica de Lampião, como analisada em “Lampião do mangue: o cangaço na obra de Chico Science & Nação Zumbi”.
Essa abordagem busca destacar as raízes do banditismo, tanto nas periferias do Recife quanto nos sertões nordestinos, como uma manifestação da violência em resposta à exploração de classe e à apatia do Estado diante das profundas desigualdades vividas pelo povo brasileiro.
Quando o historiador Durval Muniz explica de onde veio Lampião e o termo “cabra macho”, ele fala sobre a existência do banditismo não só no cangaço nordestino, mas em várias outras partes rurais do Brasil.
Lampião, em particular, ganhou notoriedade ao confrontar forças militares, coronéis e representantes do governo. Seus feitos eram muitas vezes celebrados entre os mais pobres e entre as elites em decadência, que viam no cangaço uma resposta, respectivamente, às desigualdades e à retomada de privilégios econômicos.
Veja também nosso vídeo sobre a morte de Lampião!
O impacto do cangaço nas expressões artísticas do sertão nordestino
O cangaço deixou um impacto profundo nas expressões artísticas da região. Música, literatura e tradições culturais do sertão foram impregnadas pelas narrativas do movimento, tornando-se um componente forte na construção da identidade cultural nordestina.
Além disso, o cangaço serviu como fonte rica de inspiração para cineastas, escritores e artistas plásticos, que encontraram nas histórias dos cangaceiros um terreno fértil para explorar questões sociais, culturais e humanas.
No livro “A invenção do nordeste e outras artes”, discutido neste episódio do podcast Budejo, o historiador Durval Muniz explica, na contramão da romantização do cangaço como parte de uma “tradição nordestina”, que a tradição é uma invenção da modernidade, criada pelas elites intelectuais em queda quando estão descobrindo o povo e a cultura popular.
Então, com sua mistura de violência e resistência, o cangaço se tornou uma inspiração para diversas formas de arte. E, ao longo dos anos, o fenômeno tem sido retratado em filmes, livros, músicas e outras expressões artísticas. Aqui estão algumas delas:
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Música: o cangaço em notas e versos
A presença do cangaço na música nordestina é inegável. Muitas canções populares destacam as histórias dos cangaceiros e a atmosfera do sertão.
“Mulher Rendeira” (1922), por exemplo, é uma canção que transcende gerações, celebrando a figura da mulher que tece enquanto seu homem parte para o cangaço. Ela foi gravada pela primeira vez em 1957 por Volta Seca, um ex-membro do bando de Lampião.
Luiz Gonzaga, conhecido como o “Rei do Baião”, também contribuiu significativamente com músicas que abordam temas relacionados ao cangaço, como “Asa Branca” (1947) e Assum Preto (1950), escritas junto a Humberto Teixeira, e “Lampião falou” (1984).
Além dele, músicos como Jackson do Pandeiro, Zé Ramalho e Marinês, Geraldo Amâncio e Chico Science & Nação Zumbi produziram, respectivamente, “História de Lampião” (1977), “Banquete dos signos” (1982), “Lampião, o Rei do Cangaço” (1993) e “Sangue do bairro” (1996).
Literatura: narrativas que resgatam memórias do cangaço
Na literatura, o cangaço inspirou diversas obras. Autores como José de Alencar, Euclides da Cunha e Rachel de Queiroz exploraram as nuances sociais e culturais do nordeste, incorporando elementos do cangaço em suas narrativas.
“Os Sertões” (1902), de Euclides da Cunha, é uma obra seminal que, embora focada na Guerra de Canudos, oferece uma análise abrangente do contexto que propiciou o surgimento do cangaço, abordando as tensões sociais e culturais do sertão, antes mesmo do nordeste existir.
“Cangaços” (1931), de Graciliano Ramos, reúne todos os textos do autor sobre o banditismo sertanejo, escritos entre 1931 e 1941, mostrando a influência do cangaço.
“Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil” (1985), de Frederico Pernambucano, conta a história dos primórdios do fenômeno, ainda no final do século XIX, até o seu final, por meados da década de 1940. Ele discorre sobre os grupos especializados em saques de vilarejos, sequestros e crimes de encomenda, e ilustra as relações políticas de diferentes bandos que surgiram no nordeste para além de Lampião.
“Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço” (2018), de Adriana Negreiros, tira o protagonismo de Lampião, recaindo sobre sua companheira. Maria Bonita é tradicionalmente retratada como uma mulher valente e leal a Virgulino, mas o livro mostra uma visão mais ampliada sobre ela e outras mulheres que abraçaram a vida de cangaceiras.
Os folhetos e os cordéis também são formas populares de literatura nordestina que, frequentemente, abordam temas do cangaço, contando histórias de heroísmo, tragédias e aventuras dos cangaceiros.
Tradições culturais: o cangaço na arte popular nordestina
O cangaço tornou-se parte integrante das tradições culturais do sertão. O folclore nordestino é enriquecido com histórias de cangaceiros, transmitidas oralmente de geração em geração.
O cordel, forma popular de literatura de folheto, frequentemente retrata as aventuras e desventuras dos cangaceiros, contribuindo para a preservação dessas narrativas na cultura popular.
Cinema: cangaço nas telas do cinema brasileiro
O cinema brasileiro também abraçou o cangaço como tema cinematográfico. Filmes como “O Cangaceiro” (1953), dirigido por Lima Barreto, é um dos mais icônicos sobre o cangaço. Conta a história de um grupo de cangaceiros liderados por um anti-herói, em um enredo que mistura ação, romance e drama.
“Baile Perfumado” (1996), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, trouxe para as telas as histórias dramáticas e emocionantes do cangaço, oferecendo uma abordagem visual única. A trama é centrada em Corisco, o último cangaceiro de Lampião, e reflexões sobre sua vida.
“Sertânia” (2020), de Geraldo Sarno, relata os delírios de Antão, um jagunço (cangaceiro contratado para matar) que faz parte do bando de Jesuíno. Misturando metalinguagem e montagem não-linear, mostra o conflito interno a respeito dos assassinatos que Antão provoca e a fome no nordeste.
“Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho, retrata o momento em que os moradores de um pequeno povoado localizado no sertão brasileiro, chamado Bacurau, descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa.
“Cangaço Novo” (2023), série de Fábio Mendonça e Aly Muritiba, representa um sertão contemporâneo cheio de ação, com personagens marcantes como os irmãos Dinorah e Ubaldo, que mantêm vivo o legado do seu genitor, Amaro Vaqueiro, considerado uma figura mítica na região.
É importante lembrar que o cangaço não é o nordeste, mas apenas uma parte e uma de suas representações. A linguagem visual desses filmes captura a aridez do sertão, a violência e a complexidade humana dos cangaceiros, não dos nordestinos como um todo.
O nordeste brasileiro é muito mais do que aquilo que é retratado nas novelas, como lembra o historiador Durval Muniz no artigo “Nordeste, sertão: reservas de imaginação e de exotismo”.
Artes visuais: o cangaço em cores e pincéis
Pintores e artistas plásticos nordestinos frequentemente retratam cenas do cangaço em suas obras. As paisagens áridas do sertão, as silhuetas dos cangaceiros e a atmosfera carregada de tensão são elementos que se manifestam em quadros e esculturas, proporcionando uma interpretação única desse período.
O cangaço, longe de ser um episódio isolado na história nordestina, tornou-se um elemento intrínseco às expressões artísticas e culturais da região. Sua influência perdura nas letras das músicas, nas páginas dos livros, nas tradições populares e nas telas do cinema brasileiro.
Ao ser representado nessas diversas formas artísticas, mantém viva sua memória, fazendo com que as cada geração compreenda os elementos culturais e sociais que moldaram essa parte da história brasileira. Essas representações oferecem diferentes viéses sobre o cangaço, enriquecendo sua percepção.
O fim do cangaço
O cangaço teve um fim trágico, semelhante à boa parte de sua atuação. Em 28 de julho de 1938, Lampião e grande parte de seu bando foram mortos em um confronto com a polícia na Grota do Angico, em Sergipe, marcando o declínio do cangaço.
Os cangaceiros foram decapitados e tiveram suas cabeças expostas nas ruas de Piranhas, em Alagoas. Elas foram levadas e apresentadas a diversas cidades, passando bastante tempo em Salvador. E, só em 1969, depois de anos de exposição pública, os corpos foram sepultados.
De acordo com o historiador Durval Muniz, a noção de unidade que existe em torno do nordeste foi moldada em grande parte no campo das artes e da mídia, que por muitos anos retratou essa região e a sua população de forma preconceituosa e caricata.
Então, ao explorar esse capítulo da história do Brasil, somos confrontados com as complexidades de um passado que moldou as narrativas atuais e nos desafia a refletir sobre as raízes das desigualdades que ainda persistem.
O cangaço não é o nordeste, mas uma peça fundamental no quebra-cabeça da rica tapeçaria da história brasileira, não apenas da nordestina.
Veja outro texto sobre este tema em que falamos sobre a história do Lampião e qual a sua representatividade para o sertão nordestino, leia mais: Lampião: o rei do cangaço ou o governador do sertão?
Compreendeu melhor sobre o que foi o cangaço e quais suas consequências para o nordeste brasileiro? Se este conteúdo faz sentido para você, compartilhe com alguém que também gostaria de ler e não esqueça de deixar um comentário.
Referências:
- Budejo – A invenção do nordeste
- Desenrola – O que é o Nordeste pra você?
- Diário do Nordeste – Nordeste, sertão: reservas de imaginação e de exotismo
- Espaço Cidadão – A invenção do Nordeste: De onde veio Lampião e o termo Cabra Macho?
- GEPHOM – Durval Muniz na EACH: A Construção da ideia de Nordeste
- Medium – Lampião do mangue: o cangaço na obra de Chico Science & Nação Zumbi
- Nexo – A história do cangaço: mito, estética e banditismo no sertão
2 comentários em “Cangaço no sertão: Quem foi Lampião e o banditismo no sertão brasileiro”
Aa cancões Assum Preto e Asa Branca em suas letras, não fazem nenhuma referência ao cangaço.
Nem todos cangaceiros eram criminosos,viviam de roubos ou furtos…é preciso compreender melhor essa adesão ao CANGAÇO …ainda hoje,quantas pessoas no mundo foram e são injustiçadas que gostariam de fazer justiça com as próprias mãos? Até hoje,a gente justiça enxerga quem melhor paga…essa venda nos olhos não reflete o significado hoje,imaginem naquele tempo!Muitos trocaram a enxada pelo fuzil… Por que?