Uma mulher negra segurando um bebê no colo.

Economia do cuidado: o trabalho não remunerado das mulheres

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Talvez até o ENEM de 2023, você nunca tenha ouvido falar sobre o trabalho ou a economia do cuidado. O assunto foi tema da redação do exame. Especificamente, o candidato deveria discorrer sobre os Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.

O tema foi uma surpresa para muita gente, mas a realidade é que vem sendo discutido por intelectuais desde a década de 70. Por isso, a POLITIZE! vai te explicar o que é o trabalho do cuidado e sua invisibilidade; o protagonismo das mulheres em “cuidar”, produzir e reproduzir, e seu impacto econômico.

Veja também nosso vídeo sobre machismo estrutural!

O que é economia do cuidado?

A palavra “economia” vem do grego oikonomia, formada pela junção de oikos – casa ou morada – e do verbo nemein – administrar ou distribuir. Originalmente, o termo se referia ao ato de gerenciar o lar e garantir sua subsistência. Atualmente, nos remete a algo que acontece no âmbito do trabalho, mercados, governos e sociedade.

Tanto antigamente como nos dias atuais, grande parte do trabalho envolvido neste gerenciamento recai sobre as mulheres e pessoas pobres. São essas pessoas que exerceram – e exercem – a função primordial de garantir a sobrevivência dos corpos. Sem este trabalho não seria possível a existência de qualquer atividade remunerada.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 76% do trabalho de cuidado não remunerado é realizado por mulheres. Imagine se esse tempo dedicado a cozinhar, limpar e cuidar de crianças, por exemplo, fosse contabilizado. A conta já foi feita! Essas jornadas valem quase 11 trilhões de dólares por ano.

Portanto, entende-se por “economia do cuidado” o trabalho invisibilizado, e não remunerado, exercido majoritariamente por mulheres. Esta atividade envolve desde tarefas para manutenção do lar até o zelo com crianças, idosos, pessoas doentes ou com necessidades especiais etc.

Ilustração de uma mulher sobrecarregada com multitarefas.
Ilustração de uma mulher sobrecarregada com multitarefas. Imagem: Freepik.

Construção teórica

Em 1867, na Exposição Universal de Paris – uma mostra das conquistas industriais, científicas e culturais – , segundo a historiadora Michelle Perrot, um delegado operário francês afirmou:

“O destino da mulher é a família e a costura…ao homem, a madeira e os metais, à mulher a família e os tecidos.”

No século XXI a frase ainda reflete o pensamento de uma parte expressiva da população. Há uma crença de que os homens são provedores do ganha-pão e as mulheres responsáveis pela reprodução da família.

Cozinhar, limpar, cuidar dos filhos ou pais idosos ainda é percebido como uma ação motivada pelo amor. Porém, a forma que se organiza este trabalho tem grande impacto na economia. Todo mundo, em algum momento, precisa de cuidados e a maior parte desta atividade tem sido feita gratuitamente.

A professora da UFPE, Regina Vieira, alerta:

“Quando se estuda economia, se fala em produção, dinheiro, mercado, mas todo o sistema econômico passa pelo cuidado”.

Todavia, muitos economistas ainda consideram o trabalho do cuidado como não “produtivo” por não gerar valor. Acreditam que deva ser excluído da contabilidade social, ou seja, da medição do produto nacional. Contudo, este entendimento não é unânime.

“Eles dizem que é amor. Nós dizemos que é trabalho não remunerado.”

Pensadoras e ativistas feministas defendem a remuneração do trabalho do cuidado há mais de 50 anos. Justamente para que as mulheres responsáveis pela manutenção e zelo de suas residências e familiares não se submetam financeiramente a um homem ou recorram a subempregos.

Merece destaque, na década de 1960, a luta das mães por auxílios sociais nos Estados Unidos. Lideradas por afro-americanas, reivindicaram do Estado um salário pelo trabalho de educar os próprios filhos. Este movimento alicerçou campanhas que vieram posteriormente.

Nos anos 1970, a filósofa italiana Silvia Federici foi uma das responsáveis pelo lançamento internacional da campanha “Wages for Houseworks” (Salários para Trabalho Doméstico). O objetivo era exigir do Estado o reconhecimento do trabalho doméstico como uma atividade a ser remunerada e essencial para a produção da força de trabalho.

A campanha teve início nos Estados Unidos e também se estruturou positivamente na Itália. Apesar do salário não ter sido incorporado, o movimento foi fundamental para que hoje haja, minimamente, visibilidade da causa. Somente nos anos 2000 o termo “economia do cuidado” passou a fazer parte da agenda política da ONU.

Uma frase de Federici vem reverberando quase como um mantra dentro de vertentes do movimento feminista:

“Eles dizem que é amor. Nós dizemos que é trabalho não remunerado.”

Impacto econômico

Também em 1970, a pesquisadora Ester Boserup estabeleceu que a divisão sexual do trabalho era um componente fundamental da divisão laboral. Ela destacou que o cálculo do PIB ignora a produção dos serviços de subsistência das famílias. As atividades, que contribuem para o bem-estar socioeconômico, são subestimadas e exercidas predominantemente por mulheres.

Katrine Marçal, autora de “O lado invisível da economia”, defende que um dos erros mais graves das teorias econômicas é ter tirado da equação o trabalho doméstico e reprodutivo. Tradicionalmente exercido por mulheres, este trabalho tornou-se invisível do ponto de vista da produtividade econômica. A escritora enfatiza:

“Assim como existe ‘um segundo sexo’, existe uma ‘segunda economia’. O trabalho tradicionalmente executado por homens é o que conta. Ele define a visão de mundo econômica. O trabalho da mulher é ‘o outro’. É tudo o que ele não faz, mas de que depende para poder fazer o que se faz.”

A socióloga Ann Oakley concluiu, em 1974, que o termo “dona de casa” não pode ser sinônimo de esposa e mãe. Para a Oakley, o termo corresponde a trabalho doméstico não remunerado e desvalorizado pela sociedade. Esta afirmação questionou o trabalho reprodutivo e o “elogio da rainha do lar”.

Em entrevista no ano de 2018, Silvia Federici explicou a importância da luta conduzida em 1970. Para a filósofa o salário reivindicado não seria o fim, mas uma contribuição para mudar as relações sociais de forma favorável às mulheres. Ainda esclareceu que não foi uma luta salarial comum já que expôs o valor do trabalho e a imensa riqueza acumulada pelo capital através da não remuneração. E finalizou:

“O objetivo era conseguir salários para o trabalho doméstico para elevar o nível da nossa luta, não para acabar com ela.

Quem cuida de quem cuida?

Segundo dados do IBGE, no Brasil, do século XIX até o Censo de 2010, o serviço doméstico remunerado aparece como a primeira ocupação feminina. Por causa das imensas desigualdades sociais no país, este trabalho marca a vida social nacional.

No livro “Mulheres e Poder” a economista Hildete Melo e a cientista política Débora Thomé apontam uma estimativa de que em 15% das famílias brasileiras há sempre uma mulher contratada para realizar as tarefas domésticas. Em sua grande maioria, são mulheres negras e de baixa renda que, muitas vezes, enfrentam jornadas duplas/triplas de trabalho.

Especificamente sobre a mulher negra, a historiadora e professora Beatriz Nascimento afirma que ela é considerada essencialmente produtora. Diferentemente da mulher branca, a mulher negra, assim como o homem negro, desempenha um papel ativo. Ainda enfatiza que a mulher negra vem ocupando os mesmos espaços e papéis que lhe foram atribuídos desde a escravidão.

Observa-se, que é permitido às mulheres a entrada no mercado formal de trabalho desde que consigam conciliar com o trabalho doméstico. Neste cenário, muitas vezes, este arranjo é delegado para outras mulheres, de classe mais baixa, subordinadas a exercerem o trabalho do cuidado para terceiros por necessidades financeiras.

Pesquisas baseadas nos recenseamentos de 1940, 1950 e 1970, mostram que a mulher branca conseguiu maior acesso ao curso superior. Este fato diminuiu proporcionalmente a desigualdade entre ela e o homem branco. Para a população negra a realidade não é a mesma, muito menos quando se fala da mulher negra.

A permanência do emprego doméstico remunerado, tanto no Brasil quanto ao redor do mundo, pode ser explicada pelo desequilíbrio na distribuição de renda pessoal e pelo esforço exigido na manutenção da reprodução da vida.

O questionamento que fica é: quem cuida dessas mulheres que se dedicam ao cuidado familiar de terceiros acumulado com o cuidado de seus lares e, muitas vezes, também com os dos seus pais já idosos?

“Que horas ela volta?”

O filme de Anna Muylaert consegue exemplificar a realidade de mulheres pobres que se submetem a cuidar da família de terceiros em detrimento dos seus. Em “Que horas ela volta?” percebe-se claramente que não se trata de uma escolha. Na realidade, muitas vezes, é a única alternativa disponível para sobreviver e manter os seus.

A história retrata o microcosmo de uma família da elite paulistana. Aborda temáticas vinculadas ao trabalho doméstico, à experiência feminina, e à estratificação social no Brasil. Destaca a perpetuação de desigualdades que foram internalizadas e tornaram-se invisíveis nas relações do dia a dia. Também explora a possibilidade de transformação através da conscientização e da quebra dessas relações.

Na narrativa, Val é uma mulher nordestina que fugiu para São Paulo da violência que sofria do marido. Deixou para trás a filha Jéssica. Trabalhou por 10 anos como empregada doméstica e babá residindo no local de trabalho e sustentando a filha à distância. Cuidou de um menino como se seu filho fosse, mas precisou delegar o cuidado de sua filha à outra mulher.

Em um elo composto por mulheres, Val cuida do filho, do marido e da casa da patroa branca para que ela possa trabalhar. Outra mulher assume os cuidados da filha de Val para que ambas possam ter a possibilidade de sobreviver. Por fim, quando a filha, já crescida, precisa prestar vestibular, mais uma mulher entra em cena. Desta vez, assumindo os cuidados do neto de Val.

A conclusão a que se chega é que, na grande maioria das vezes, “quem cuida de quem cuida” será sempre uma mulher.

Estatísticas

Sobre o trabalho do cuidado e sua invisibilidade, alguns dados merecem destaque:

Segundo o IBGE, através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, em 2022:

  • Mulheres brasileiras dedicam quase o dobro de tempo que os homens aos afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas. São 21,3 horas semanais, contra 11,7 horas, em média.
  • 86% das mulheres com idades entre 14 e 24 anos cuidam de afazeres da casa; entre os homens da mesma idade, só 69%.
  • Entre as mulheres brancas, 31,5% tiveram de cuidar de pessoas. A proporção sobe para 36% quando se trata de mulheres pretas e 38% em relação às pardas.
  • Os homens gastam mais tempo cumprindo tarefas domésticas quando moram sozinhos. Para as mulheres, é o inverso: elas têm mais trabalho quando dividem o lar com alguém.
Gráfco comparando a divisão de tarefas domésticas por gênero.
Gráfico de elaboração própria [Fonte: PNAD].

Você já tinha ouvido falar sobre o trabalho ou economia do cuidado antes do ENEM 2023? Deixe sua opinião sobre o tema nos comentários.

Referências:

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1 comentário em “Economia do cuidado: o trabalho não remunerado das mulheres”

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Conteúdo escrito por:
Pesquisadora. Graduada em Direito pela UFRRJ. Mestranda em Ciência Política pela UFF. Ativista Social. Advogada (mas só nas horas vagas).

Economia do cuidado: o trabalho não remunerado das mulheres

22 abr. 2024

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