O que é o laicismo e qual é o papel do Estado nisso?

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O que é o laicismo e qual é o papel do Estado nisso?
14 jun 2022
14 / jun / 2022

O que é o laicismo e qual é o papel do Estado nisso?

Até onde vai a separação entre religião e política? Esse questionamento muitas vezes vem à tona na sociedade em episódios que envolvem o laicismo estatal (a existência de um Estado laico). Isso ocorre principalmente em vista de confusões em relação ao seu significado e verdadeiro papel no ordenamento jurídico e social de um país.

Uma polêmica recente no Brasil diz respeito ao ensino religioso nas escolas públicas do país, em que o Supremo Tribunal Federal (STF), no ano de 2017, permitiu que aulas de ensino religioso confessional sobre uma ou mais religiões sejam ministradas no país. Nesse caso, muitos argumentam que o Estado não deveria intervir ou promover tal agenda.

Mas os casos que envolvem a relação entre religião e políticas públicas não geram debates apenas aqui. Episódios como o ocorrido na França com a proibição do uso do véu por mulheres, e na Itália em relação às críticas do Vaticano à lei contra a homofobia, evidenciam que o laicismo é um assunto que causa controvérsias ao redor do mundo.

Dessa forma, considerando a liberdade religiosa como um direito humano reconhecido no mundo, neste texto do Equidade vamos falar sobre o que o laicismo significa e quais as suas premissas em um Estado, entendendo suas origens e características.

O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, a Civicus e o Instituto Mattos Filho voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado(a) para entender sobre o laicismo e o papel do Estado nisso? Segue com a gente!

Confira também o nosso podcast sobre o assunto, no qual conversamos com a Marcelle Fazzato Lopes, advogado de Infraestrutura do escritório Mattos Filho:

As origens do Estado laico

A teocracia, forma de governo em que o poder político é fundamentado em normas e em dogmas religiosos, existe como sistema governamental desde a Antiguidade. Essa forte ligação entre religião e política foi marcada em diversas importantes civilizações no passado, como no Egito Antigo, na Mesopotâmia e no Império Bizantino.

Foi o Império Bizantino (330 – 1453), por exemplo, que deu origem ao famoso termo “cesaropapismo”, representando a junção da palavra “caesar” que significava “imperador” com a palavra “papa”, que remete ao líder religioso máximo da Igreja Católica.

Isso significa que a organização política do Império era caracterizada por envolver uma forte associação entre a religião e os seus governantes.

Ainda na Idade Média (476 – 1453). outro movimento que representou essa vinculação foi a Inquisição, em que a Igreja Católica Romana tinha permissão dos governos absolutistas para perseguir e condenar pessoas que não seguiam os ritos e dogmas da religião.

Nesse contexto de vinculação entre crenças e assuntos políticos, especialmente a partir dos séculos XVII e XVIII, surgem os pensamentos e as ideias iluministas de liberdade. Essas ideias viam a separação entre Estado e religião como fundamental para a livre consciência individual. 

Para o filósofo iluminista John Locke, por exemplo, uma sociedade livre corresponderia a uma sociedade em que as pessoas são autônomas para decidir sobre as suas crenças. 

O movimento do Iluminismo e os seus princípios de igualdade, fraternidade e liberdade e a Revolução Francesa (1789), além de outros acontecimentos históricos, resultaram na elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

O documento determinou que ninguém podia ser incomodado por suas opiniões religiosas, além de prezar pela liberdade individual e expressar que o objetivo de toda associação política é a preservação dos direitos naturais do indivíduo.

Imagem de uma pessoa sentada de joelhos com a mão em posição de oração representando o laicismo e o papel do Estado nisso

Dessa forma, apesar de não declarar de maneira explícita, a revolução promoveu a ideia de Estado laico, em que não há o envolvimento da religião no sistema de governo.

E o que significa laicismo?

Com o impulsionamento da Revolução Francesa, o termo “laico” (aquilo que não pertence ao clero) veio a aparecer de maneira explícita no final do século XIX na França, quando foi decidido que no ensino público francês não seria permitida a instrução religiosa. 

Além disso, pouco tempo depois, já no início do século XX, a França promulgou uma lei especial que decretava a separação definitiva entre o Estado e a religião, considerando o Estado neutro em relação a todas as religiões.

Assim, tomando como exemplo as determinações francesas, interpreta-se que o laicismo está relacionado com o não envolvimento da religião em assuntos de Estado. Ou seja, preza por uma separação em que a religião passa a não influenciar nas tomadas de decisões políticas.

Dessa forma, o laicismo consiste na neutralidade do Estado sobre questões religiosas, em que não há o privilégio de nenhuma crença ou religião, não permitindo a interferência de correntes religiosas na dimensão governamental.

Nesse sentido, a implementação do laicismo garante aos cidadãos que nenhuma religião poderá se apropriar dos assuntos estatais para contemplar os seus interesses, assegurando o respeito à liberdade de consciência em que todos têm o direito de ter ou não a sua convicção religiosa.

Isso significa que o laicismo prevê que uma pessoa ter ou não uma religião é uma decisão individual, no qual o Estado não pode influenciar e muito menos impor. Sendo assim, é importante ressaltar que o Estado laico não exclui a livre manifestação religiosa. 

Ao contrário, ele busca promover a pluralidade de religiosidades e garantir o convívio harmônico de diversas religiões na sociedade, em que a igualdade de tratamento deve ser assegurada.

O laicismo e a liberdade religiosa

Entendido o conceito, é possível considerar que o laicismo contribui para a promoção da liberdade religiosa enquanto direito humano universal. 

Ou seja, as características do Estado laico, em princípio, valorizam a ideia de que o governo não deve ser anti-religioso, e sim aberto a todas as práticas religiosas desde que respeitem o ordenamento jurídico e não violem direitos fundamentais.

Isso porque a separação oficial entre religião e o poder político apenas determina que as fundamentações religiosas não devem intervir nos rumos políticos e jurídicos de uma nação.

Nesse sentido, o laicismo seria um sistema que oferece a liberdade religiosa, em que nenhum indivíduo pode ser discriminado pelo Estado por adotar uma religião.

Isto é, como aponta o especialista em direito processual Guilherme Bessa Neto (2014), a laicidade está fundamentada nos princípios da independência e da autonomia entre o Estado e as comunidades religiosas.

Imagem de uma pessoa em pé segurando uma vela com as suas mãos representando o laicismo e o papel do Estado nisso

Se olharmos para o relatório Liberdade Religiosa no Mundo, elaborado pela Aid to the Church in Need em 2021, essa concepção pode ser corroborada. O relatório indica que os países que menos garantem a plena liberdade religiosa se concentram – em sua maioria – no norte da África e na Ásia. 

Como, por exemplo, Argélia, Líbia, Turquia, Síria, Arábia Saudita, Irã, Iêmen, Iraque, Afeganistão, Líbano, Catar, Paquistão, entre outros. Desses países citados, nenhum possui um Estado laico.

Mas, isso não quer dizer que a liberdade religiosa não pode ser violada em países que prezam pelo laicismo. O próprio caso citado na introdução deste texto, sobre a proibição do uso de véu por mulheres na França, gera controvérsias. 

Isso porque o uso do véu por muçulmanos pode ser interpretado como uma manifestação religiosa, e, nessa perspectiva, a sua proibição estaria impedindo a livre religiosidade dessas pessoas. Ou seja, indo contra os próprios princípios de um Estado laico.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no entanto, entendeu em 2014 que a lei francesa está de acordo com a Convenção Europeia de Direitos Humanos.

O Brasil é um Estado laico?

Mesmo citando a palavra “Deus” no preâmbulo de sua Constituição, o que ignora religiões politeístas, budistas, ateus e agnósticos, o Brasil é oficialmente um país laico.

Isso porque o preâmbulo é um trecho simbólico, que indica os valores a serem seguidos pelo documento, e não possui caráter normativo (ou seja, não é uma norma obrigatória).

Além disso, a Constituição Federal de 1988 garante em seu artigo 19, inciso I, que o Estado brasileiro não pode se manifestar religiosamente, não podendo estabelecer alianças ou relações de dependência com nenhuma religião. 

O documento também não estabelece nenhuma religião oficial para o país, protegendo também o direito dos cidadãos em aderir a qualquer religião e realizar os seus cultos.  

Essas garantias são previstas nos incisos VI e VII do artigo 5º, que expressam que a liberdade de consciência e de crença são invioláveis, assim como diz que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa.

Contudo, o Brasil apresenta recentes discussões polêmicas na esfera governamental referentes ao conceito de laicismo e sua aplicação nas políticas públicas. Entre elas:

  • Influência de Missionários Neopentecostais em Presídios: Crescimento da influência de missionários neopentecostais nos presídios a partir de 2015, incluindo a separação de detentos com base na religião, o que fere a Lei de Execução Penal, que determina separação por tipos de delito.
  • Ensino Confessional nas Escolas: Em 2017, o STF autorizou o ensino confessional nas escolas públicas, com base no entendimento de que o ensino religioso pode ser vinculado às diversas religiões.
  • Educação Religiosa e Contratação de Professores: Em 2020, o Brasil apoiou na OEA uma proposta que autoriza os pais a impor educação religiosa ou moral aos filhos. O texto permitiria a adoção do ensino domiciliar em que os pais poderiam interferir na contratação de professores a partir de suas crenças, assim como impedir o ensino da teoria da evolução.
  • Restrições a Cultos Presenciais: Em 2021, por decisão do STF, os cultos presenciais foram restringidos para conter a transmissão do novo coronavírus (Covid-19). 

Conclusão

A liberdade religiosa, em respeito à dignidade humana, é um instrumento que possibilita a convivência pacífica entre as diversas religiões e crenças existentes em uma sociedade. 

Dessa forma, a imposição de uma religião pelo Estado, por meio de mecanismos governamentais, fere o direito à liberdade de consciência individual e segrega a realização de práticas e cultos religiosos que não condizem com a religião oficial estatal.

Sendo assim, o laicismo preza pela ideia de que a separação entre Estado e religião deve servir para proteger a diversidade do culto ao sagrado e garantir a liberdade religiosa para todos os cidadãos. 

Nesse caso, o Estado laico também favorece a inclusão social e a tolerância, visto que defende o princípio da igualdade no qual nenhuma religião pode ser tratada de maneira discriminada. 

Como vimos, o Brasil é um Estado laico e defende não só a neutralidade estatal em questões religiosas, como garante a sua livre manifestação aos seus cidadãos por meio da legislação nacional. 

Dessa forma, para entendermos mais a fundo como a liberdade religiosa é assegurada no ordenamento jurídico brasileiro, no nosso próximo texto do Equidade vamos falar sobre como liberdade de culto é protegida no Brasil.

Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Liberdade Religiosa“, confere o vídeo abaixo!

Autores:

Bernardo Zahran Rache de Almeida
Eduardo de Rê
Felipe Lima Matthes
Giovanna de Cristofaro
Juliana Meneghelli de Barros
Mariana Carneiro Campos Niccoli
Mariana Carolina Rezende

Fontes:

1- Instituto Mattos Filho;

2- ALVIM, Mariana. Evangélicos marcam território dentro dos presídios do Rio. O Globo, 2015. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/evangelicos-marcam-territorio-dentro-dos-presidios-do-rio-16251517>. Acesso em: 25 de março de 2022.

3- Constituição Federal de 1988.

4- SOTTOMAIOR, Daniel. O Estado laico. Fundação Perseu Abramo. Coleção O que Saber, 2014. Disponível em: <https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/colecaooquesaber-06-2015.pdf>. Acesso em: 24 de março de 2022.

5- CURY, Carlos R. J. Por uma concepção do Estado Laico. In: D’AVILA-LEVY, Claudia; CUNHA, Luiz (orgs.). Embates em torno do Estado Laico. São Paulo: SBPC, 2018, p.41-52. 

6- DOMINGOS, Marília. Ensino Religioso e Estado Laico: uma lição de tolerância. Revista de Estudos da Religião, p. 45-70, 2009.

7- Folha de São Paulo. Proibição do véu aprofunda sectarismo na França. 2015. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/06/1637906-proibicao-do-veu-aprofunda-sectarismo-religioso-na-franca.shtml>. Acesso em: 24 de março de 2022.

8- G1. Vaticano se opõe a projeto de lei contra homofobia na Itália; premiê diz que Estado é laico. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/06/23/vaticano-se-opoe-a-projeto-de-lei-contra-homofobia-na-italia.ghtml>. Acesso em: 24 de março de 2022.

9- MARTÍN, Maria. STF decide que escola pública pode promover crença específica em aula de religião. El País, 2017. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/31/politica/1504132332_350482.html>. Acesso em: 24 de março de 2022.

10- MELLO, Patrícia. Brasil apoia na OEA proposta que autoriza pais a impor educação religiosa ou moral a filhos. Folha de São Paulo, 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/brasil-apoia-na-oea-proposta-que-autoriza-a-pais-impor-educacao-religiosa-ou-moral-a-filhos.shtml>. Acesso em: 25 de março de 2022.

11- NETO, Ítalo; BERBICZ, Rafael. A laicidade do Estado e a liberdade religiosa frente aos paradigmas modernos. Revista Jurídica Uniandrade, nº 22, vol. 1, 2015.

12- NETO, Guilherme Bessa. Estado laico, liberdade de expressão e democracia. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3072, 2011. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/20527/estado-laico-liberdade-de-expressao-e-democracia>. Acesso em: 24 de março de 2022.

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