Crise no Peru: o que está acontecendo?

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O presidente Martin Vizcarra durante´pronunciamento a nação peruana' em meio à crise no Peru. (Foto: Juan Pablo Azabache/ Fotos Públicas)
O presidente Martin Vizcarra durante´pronunciamento a nação peruana’ em meio à crise no Peru. (Foto: Juan Pablo Azabache/ Fotos Públicas)

O que vem à sua cabeça quando falamos em casos de corrupção envolvendo o grupo brasileiro Odebrecht? E se acrescentarmos a Operação Lava Jato, um processo de impeachment de um presidente e uma grande polarização política? Não, não estamos falando do Brasil recente, mas sim da crise no Peru. Nosso vizinho sul-americano passa pela maior crise política de sua história, com todos os presidentes eleitos neste século sendo investigados por envolvimento em algum esquema de corrupção.

Essa situação ficou ainda mais evidente em outubro de 2019, com episódios de nomeação de juízes, fechamento do Congresso e até a existência de dois presidentes. Não entendeu? Fique tranquilo(a) que nesse texto o Politize! trará os principais elementos que você precisa saber para entender a crise no Peru. Siga com a gente!

O contexto da crise no Peru

Uma boa forma de entender uma crise é começar pelo seu momento mais tenso. No caso peruano, isso aconteceu no dia 30 de setembro de 2019. 

Nesse dia, o atual presidente do Peru, Martín Vizcarra, utilizou um instrumento previsto no artigo 134 da Constituição do país. De acordo com esse artigo:

O Presidente da República está facultado a dissolver o Congresso se este tiver censurado ou negado sua confiança a dois Conselhos de Ministros […] (Tradução do autor)

Então quer dizer que Vizcarra dissolveu o Congresso utilizando a própria Constituição como base? Exatamente! Com isso, os mandatos dos parlamentares do país foram suspensos e uma nova eleição legislativa foi marcada para 26 de janeiro de 2020.

Mais curioso ainda é que os parlamentares eleitos em 2020 só terão mandato de um ano, até a próxima eleição geral peruana, que ocorre em 2021. Vale lembrar ainda que, no Peru, desde 2018, as reeleições imediatas são proibidas para todos os cargos. Isso significa que os eleitos em 2020 não poderão se candidatar em 2021.

Mas e quanto ao Congresso peruano? Aceitou passivamente a decisão de Vizcarra? Não exatamente. Algumas horas depois de o presidente suspender o parlamento, esse mesmo congresso (já suspenso) determinou a suspensão do próprio presidente, dando posse à sua vice, Mercedez Araóz. Depois disso, durante um dia, como no caso venezuelano, o Peru passou a ter dois presidentes.

Saiba mais: Crise da Venezuela: entenda o país com dois presidentes!

Contudo, no dia seguinte após ter sido nomeada, Araóz renunciou ao cargo pedindo por novas eleições.  

Mas uma pergunta interessante é: se Vizcarra dissolveu o parlamento constitucionalmente, por que o Congresso questionou a decisão? A grande disputa entre os dois lados está na existência ou não dos requisitos necessários para que o presidente pudesse ter suspendido constitucionalmente o parlamento, no caso, duas “negações de confiança”.

Voltaremos logo a esse tópico. Antes disso, precisamos entender um pouco melhor o modelo político peruano e os acontecimentos que trouxeram o país até a crise atual.

O modelo político do Peru

O modelo político peruano apresenta algumas peculiaridades para nós, que estamos acostumados ao modelo presidencialista brasileiro. Vejamos algumas delas:

  • Tempo de mandato: os mandatos no Peru duram 5 anos, enquanto no Brasil duram 4. Apesar disso, desde 2018, são proibidas reeleições imediatas para todos os cargos. Ou seja, se alguém for eleito para governar de 2021 a 2026, não poderá se candidatar nas eleições de 2026, mas poderá se candidatar na eleição seguinte, em 2031.
  • Parlamento unicameral: diferente do Congresso Nacional brasileiro, que possui tanto uma Câmara de Deputados quanto um Senado Federal, o parlamento peruano, pela Constituição de 1993, é composto apenas por uma câmara, com um total de 130 representantes. Mas ele nem sempre foi assim. Pela Constituição de 1979, o modelo peruano também era bicameral. A situação só se alterou quando, em 1992, o então presidente Alberto Fujimori fechou o Congresso, no que ficou conhecido como “autogolpe“. No ano seguinte, com a nova Constituição, passou a valer o modelo unicameral presente até os dias de hoje.
  • O Conselho de Ministros: semelhante aos modelos parlamentaristas, o Peru possui um Conselho de Ministros responsável pela “direção e gestão dos negócios públicos”. O presidente desse Conselho de Ministros é o Primeiro-Ministro. Mas, diferente de um parlamentarismo clássico, como o britânico, onde o Primeiro-Ministro é nomeado pelo partido com maioria no Congresso, no Peru, essa escolha é do presidente. Assim, apesar da existência de um Primeiro-Ministro, o presidente é a principal figura política do país. Na visão de Marcus André Melo, o modelo é uma “variante presidencial parlamentar de semi-presidencialismo“.
  • A dissolução constitucional do parlamento: como já vimos, no artigo 134 de sua Constituição, o Peru prevê a possibilidade do presidente dissolver o parlamento, algo que não existe na Constituição brasileira. Para que isso aconteça, no entanto, é necessário que o parlamento tenha “censurado ou negado a confiança” do presidente por duas vezes. Ou seja, que duas propostas do presidente apresentadas como “moções de confiança” sejam negadas pela casa.

Como podemos perceber com algumas dessas características, a figura do presidente da República é fundamental no governo peruano, apresentando uma concentração de poderes que não vemos no sistema brasileiro.

A partir disso, podemos entender o tamanho do impacto ao observar que todos os presidentes peruanos eleitos neste século estão presos ou sendo investigados em consequência da Operação Lava Jato em território peruano. Vamos ver um pouco melhor o impacto da Lava Jato na crise no Peru.

A Lava Jato no Peru

Apesar de ter nascido brasileira, a Operação Lava Jato não se limitou a fronteiras nacionais. Segundo o jornal Correio Braziliense, mais de 49 países foram atingidos pela operação. E, se ela é a maior operação contra a corrupção da história brasileira, também é a maior da América Latina. Entre 2001 e 2016, as empresas Odebrecht e Braskem admitiram ter pago mais de US$ 1 bilhão em propina para obter favorecimentos em licitações em 12 países, dos quais 9 eram latino-americanos.

No caso peruano, a Lava Jato atingiu em cheio o cenário político, se tornando um pilar importante para entender a crise no Peru. A operação revelou que, entre 2005 e 2014, US$ 29 milhões foram pagos a funcionários do governo peruano para a obtenção de vantagens. Dentre esses funcionários, foram citados os nomes dos 4 últimos presidentes do Peru em delações, além da líder do principal partido do país. Olhemos um a um:

  • Alejandro Toledo (2001-2006): Alejandro Toledo estava foragido da justiça peruana desde 2017 – quando recebeu um mandado de prisão preventiva de 18 meses – até julho de 2019, quando foi preso nos Estados Unidos. Contra ele, pesa a acusação de ter recebido US$ 21 milhões das empreiteiras Odebrecht e Camargo Corrêa em troca da concessão de obras da Rodovia Interoceânica Sul.
  • Alan García (2006-2011): contra García, pesava a acusação de ter recebido US$ 7 milhões da Odebrecht para fornecer o contrato das obras no Metrô de Lima. Quando policiais chegaram em sua casa para realizar a prisão preventiva, em abril de 2019, García tentou suicídio, falecendo no hospital pouco depois.
  • Ollanta Humala (2011-2016): no caso de Humala, assim como de sua esposa, Nadine Heredia, a ligação com a Odebrecht teria se dado em uma doação de US$ 3 milhões na campanha da eleição de 2011, vencida por Humala. O casal teve prisão preventiva decretada em julho de 2017 e segue preso desde então.
  • Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018): conhecido como PPK, o ex-presidente peruano renunciou em março de 2018, em meio a um voto de desconfiança (uma espécie de impeachment peruano). Contra ele, pesa a acusação de ter recebido US$ 5 milhões da Odebrecht por supostos serviços de consultoria entre 2004 e 2013 e mais US$ 300 mil na campanha da eleição de 2011. Por problemas de saúde, desde 2018, o ex-presidente tem cumprido prisão preventiva domiciliar.
  • Keiko Fujimori: Além dos 4 presidentes, a líder do maior partido peruano (Fuerza Popular) e filha do ex-presidente Alberto Fujimori (1990-2000) está presa desde 31 de outubro de 2018 por obstrução de justiça. Ela é acusada de ter recebido US$ 1,2 milhão em fundos ilícitos por parte da Odebrecht em sua campanha para a eleição presidencial em 2011.

Apesar de ser ampla e envolver uma série de atores, foi durante o governo de PPK que a crise no Peru “explodiu” e a disputa entre governo e oposição se acirrou.

O governo de Pedro Pablo Kuczynski

As eleições de 2016 no Peru foram extremamente disputadas. Pedro Pablo Kuczynski foi eleito em segundo turno com 50,12% dos votos, contra 49, 87% da concorrente Keiko Fujimori, que prometeu uma “oposição vigilante” a PPK.

E, segundo a jornalista Sylvia Colombo, em entrevista ao podcast Café da Manhã, essa oposição se manteve forte durante todo o governo PPK. Para ela, Kuczynski confrontou um Fujimorismo que ainda é forte no Peru, sobretudo nas classes humildes das grandes cidades e nas regiões andinas, apesar do autoritarismo pelo qual ficou marcado o regime Fujimori.

A importância da figura de Fujimori para a oposição pôde ser percebida com as negociações para indulto do ex-presidente, condenado a 25 anos de prisão por corrupção e violação de direitos humanos. O indulto foi concedido, mas também foi anulado posteriormente em 2018 e Fujimori permanece preso.

Quando explodiu o escândalo envolvendo PPK e a Odebrecht, somado a divulgação de um esquema de compra de votos para se manter no poder, Kuczynski renunciou ao cargo, em 21 de março de 2018, antes da votação de um processo de impeachment que foi aberta contra ele. Desde então, seu vice, Martín Vizcarra, tem governado o Peru.

O governo de Martín Vizcarra

O presidente Martin Vizcarra durante 'pronunciamento a nação peruana' em meio à crise no Peru. (Foto: Juan Pablo Azabache/ Fotos Públicas)
O presidente Martin Vizcarra durante ‘pronunciamento a nação peruana’ em meio à crise no Peru. (Foto: Juan Pablo Azabache/ Fotos Públicas)

Com um discurso embasado no combate à corrupção e em conciliação, Martín Vizcarra assumiu a presidência em 23 de julho de 2018. Com isso, Mercedes Araóz passou a ser a nova vice-presidente peruana.

Durante seu governo, Vizcarra continuou enfrentando dificuldades com o Congresso dominado pela oposição fujimorista. A situação se agravou quando, em julho de 2019, o mandato de 6 dos 7 juízes do Tribunal Constitucional (uma espécie de STF peruano) venceu.

A nomeação dos novos juízes deveria ser feita pelo Congresso. Vizcarra, contudo, lançou uma moção de confiança para o Congresso pedindo a reforma das regras de indicação ao Tribunal, em meio a um processo de reforma política.

Uma moção de confiança acontece quando o governo leva um tema para ser discutido no Congresso para ver se ainda conta com a confiança da casa. Para ser aprovada, a moção precisa de maioria simples favorável. Caso seja negada, o Primeiro-Ministro e todo o gabinete de ministros renunciam ou são removidos de seus cargos e é formado um novo gabinete.

Se isso acontece duas vezes durante um mesmo governo, é facultativo ao presidente dissolver o Congresso e convocar novas eleições dentro de 4 meses.

Em relação à moção proposta por Vizcarra, o que aconteceu foi que, ao invés de votarem a moção que mudava as regras de transição para a indicação de magistrados, os congressistas indicaram magistrados para o Tribunal Constitucional.

Para Vizcarra, essa indiferença configurou uma negação implícita da moção, pois fez exatamente o que ela pedia para não fazer. A oposição argumenta, no entanto, que como a decisão não foi votada, não poderia ser considerada uma negação.

O outro momento de negação alegado por Vizcarra para a dissolução do Congresso aconteceu ainda durante o governo PPK, do qual ele era vice, em 2017. Enquanto Vizcarra argumenta que é válido considerar essa negação, pois o governo é o mesmo (tanto ele quanto PPK foram eleitos em 2016), a oposição argumenta que, como a moção se deu sob outra presidência, não deveria entrar na soma.

Com essa justificativa, Vizcarra dissolveu o Congresso. E com a versão oposta, o Congresso tentou afastar Vizcarra, alegando “incapacidade moral”.

Os últimos acontecimentos da Crise no Peru

Conforme dissemos anteriormente, Mercedes Araóz, então vice-presidente, foi empossada presidente pelo Congresso, e renunciou ao cargo no dia primeiro de outubro, pedindo novas eleições.

Como o Congresso já estava dissolvido, sua decisão de afastar Vizcarra não tem validade. Então, a não ser que algum tribunal decida pela anulação da dissolução do Congresso realizada por Viscarra, ele segue sendo o presidente do país e novas eleições ocorrerão em janeiro de 2020.

Em paralelo a isso, as Forças Armadas e a polícia do Peru declararam apoio a Vizcarra no dia primeiro de outubro.

Seguindo o protocolo de um voto de desconfiança, o Primeiro-Ministro peruano, Salvador del Solar e o gabinete de ministros renunciou, sendo nomeado Vicente Zeballos como novo primeiro-ministro. Zeballos foi o responsável por negar a renúncia de Araóz, por não reconhecer sua nomeação por parte do Congresso em suspensão.

A situação de Vizcarra é estável pois, além das forças armadas, ele também conta com apoio popular. Conforme trazido pelo Correio Braziliense, a primeira pesquisa realizada pós dissolução do Congresso traz que mais de 89% da população peruana considera Vizcarra o presidente legítimo e apoia a dissolução do Congresso.

Dessa forma, até o momento, está mantida a dissolução do Congresso e a indicação de novas eleições legislativas em janeiro. A crise no Peru, contudo, parece longe de um último capítulo. Conforme novos acontecimentos surgirem, o Politize! continuará descomplicando-os para você.

Conseguiu entender a crise no Peru? Conta pra nós nos comentários tua opinião sobre ela!

Referências:

Café da Manhã (Podcast) – Xadrez Verbal (Podcast) – Constituição de 1979 – Constituição do Peru de 1993 – Decreto supremo (Dissolução do Parlamento e eleições) – El Comércio (Sobre as eleições de 2020) – G1 (Renúncia de Araóz) – Peru21 (Sobre o fechamento do Congresso por Fujimori) – Parliament.UK (Parlamentarismo no Reino Unido) – Folha de SP (Análise de Marcus André Melo) – Correio Braziliense (Sobre a Lava Jato internacionalmente) – G1 (Sobre a confissão da Odebrecht) – El País (Prisão de Alejandro Toledo) – BBC (Sobre investigação de Alan García) – G1 (Morte de Alan García) – O Globo (Suspeitas sobre PPK) – Clarín (Sobre a dissolução do Congresso) – O Globo (Prisão de Keiko Fujimori) – G1 (A oposição vigilate de Fujimori) –  G1(Sobre a anulação do indulto de A. Fujimori) – Folha de SP(Acusação de compra de votos de PPK) – Época (Renúncia de PPK) – Governo do Peru (O que é uma moção de confiança) – Extra (Forças armadas apoiam Viscarra) – Notícias.Uol (Novo primeiro-ministro peruano) – Correio Braziliense (Pesquisa pós dissolução do Congresso)

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Conteúdo escrito por:
Coordenador do portal e da Rede de Redatores do Politize!. Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Apaixonado por Política Internacional e pelo ideal de tornar a educação política cada vez mais presente no cotidiano dos brasileiros.

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19 mar. 2024

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