Dentre as conquistas e avanços obtidos na história recente do Brasil, são inegáveis a maior visibilidade da questão racial e os marcos importantes quanto à representatividade e à luta pelo fim da discriminação. No entanto, para além do reconhecimento do avanço que já foi feito, é sempre importante conhecermos – ou relembrarmos – os movimentos e organizações que estão na linha de frente desse combate cotidiano. O Movimento Negro Unificado é uma delas.
A demarcação de terras indígenas, a lei de cotas, o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas, o Dia Nacional de Consciência Negra… Nada disso foi dado de mãos beijadas pela tradicional elite política brasileira. São todas vitórias importantes que não foram obtidas sem manifestações, pressão direta, apoio popular e muita luta política das organizações que sempre tiveram o combate ao racismo como prioridade e razão de existência.
Continue lendo e confira parte da história do MNU, suas conquistas e principais integrantes. Boa leitura!
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O que é o MNU?
O Movimento Negro Unificado (MNU) surge em 1978 como expressão da ebulição social que sucede uma série de episódios racistas na cidade de São Paulo.
Diante da crescente e escancarada manifestação da estrutura racista que permeia a sociedade brasileira desde a escravidão, organizações como o MNU emergem, frequentemente, de ambientes que acabam servindo como espaços de convivência compartilhada pela população negra, tais como o teatro, o hip hop e núcleos jornalísticos específicos.
É nesse contexto que os jovens militantes constroem o seu próprio movimento e definem como principal luta a “defesa do povo negro em todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais”.
A fim de derrubar o mito da democracia racial no país, essa defesa parte da premissa fundamental de que em nossa sociedade o negro era deixado à própria sorte, sofrendo cotidianamente com a discriminação, o desemprego, a condição sub-humana de vida nos presídios, o abandono no tratamento de menores, a violência policial, e a permanente colonização e esmagamento da cultura negra brasileira.
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História do MNU
Especialmente após a promulgação do AI-5 durante a ditadura civil-militar, toda e qualquer manifestação contra o regime seria necessariamente obstaculizada pela dura repressão do aparato policial. Diante disso, o movimento negro e as mobilizações estudantis foram forças fundamentais para a contestação do governo de Ernesto Geisel e o enfraquecimento da ditadura.
Afora o cenário nacional, há de se ter em conta o destaque da cultura para os primeiros encontros e mobilizações do que viria a ser o Movimento Negro Unificado, sobretudo o teatro.
Associações culturais como o Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN), formadas mais ou menos na mesma época, acabavam servindo como espaços de convivência da comunidade negra, protegendo-a das constantes agressões e expulsões e servindo também, é claro, como centro de discussão e reflexão acerca dos temas que seriam pautados pelo MNU.
Três principais acontecimentos levaram militantes do Núcleo Negro Socialista da Liga Operária a criar o MNU em 1978. Naquele ano, quatro jovens negros foram impedidos de usar a piscina do Clube de Regatas Tietê, em São Paulo.
Em Guaianases, zona leste da capital paulista, outro fato marcante foi a prisão de Robson Silveira, acusado de ter furtado bananas de um feirante na volta para casa. Na mesma cidade, o trabalhador negro Nilton Lourenço foi assassinado pela polícia no bairro da Lapa.
É nesse cenário de efervescência da questão racial no país que alguns núcleos menores do movimento negro no país se unem a outros militantes, organizados em partidos de esquerda, para compor o MNU. A fundação oficial ocorreu no dia 7 de julho de 1978, numa cena que entraria para a história do movimento negro no país.
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Em frente às escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, juntavam-se mais de 2 mil pessoas e organizações importantes como o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, o Centro de Estudos Brasil África, a Escola de Samba Quilombos e o Núcleo Negro Socialista. Em plena vigência do AI-5 na ditadura militar, a movimentação era bastante expressiva.
Lida em coro pelos manifestantes na ocasião, foi distribuída uma carta aberta do movimento, convocando a população a se organizar em seus bairros, trabalho e prisões contra a discriminação racial e a violência das instituições policiais. Iniciava da seguinte forma:
“Durante seus mais de 40 anos de história, o MNU acumulou uma série de conquistas para a população negra e quilombola do Brasil – muitas delas concretas, outras tantas mais subjetivas – , sendo por isso fundamental nos determos mais especificamente no tamanho de sua importância para o debate racial nas últimas décadas.”
A importância do MNU
São inúmeras as implicações do racismo e dos resquícios da mentalidade escravocrata para a população negra, que hoje é maioria (pretos e pardos compõem 56% do total, segundo o IBGE) Dentre elas estão maior número de assassinatos, violência policial, oportunidades reduzidas de educação e emprego, encarceramento em massa, trabalho precarizado como mão de obra barata da classe média.
Isso sem falar, é claro, da deterioração identitária e do dano moral cotidiano que resultam dos episódios constantes de discriminação racial. Mesmo com tudo isso, porém, na história do senso-comum e do pensamento acadêmico brasileiro muito se falou na “democracia racial”.
Difundido de maneira mais ampla a partir da obra do escritor Gilberto Freyre, tal mito propaga a ideia de que a história de mestiçagem e convivência de múltiplas raças no Brasil teria conduzido a uma sociedade plural, mista e sem racismo.
Entretanto, é precisamente essa a principal ideia que o MNU, desde a sua concepção como movimento, se propõe a combater, de modo a denunciar as evidências explícitas do racismo em múltiplas esferas da sociedade brasileira.
Como a denúncia, apesar de importante, nunca é suficiente, os principais objetivos concretos de movimentos como o MNU envolvem a melhoria das condições de vida da população negra e a construção do caminho para a igualdade racial. A importância também se reflete, portanto, nas conquistas do movimento. Vejamos algumas:
Principais conquistas
Embora grandes esforços já estivessem sendo realizados há muito tempo para a inclusão da cultura afro-brasileira no currículo escolar, somente em 2003 seria promulgada a Lei 10.639/03, como resultado de mobilizações do MNU e do movimento negro como um todo.
Essa lei institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas disciplinas do ensino fundamental e médio. Assim, é estabelecida formalmente a importância de se levar em conta a contribuição das matrizes indígena e africana para a formação do povo brasileiro.
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Outra conquista significativa do movimento dentro dessa mesma lei é o reconhecimento do dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra no calendário escolar. Em 1695, nessa data morria Zumbi dos Palmares, grande símbolo de resistência contra o sistema escravista.
A Lei de Cotas do Ensino Superior (Lei 12.711/12), um dos maiores avanços na luta pela igualdade racial nos últimos anos, também deve muito ao MNU. A partir de 2012, passaram a ser levados em conta os critérios sociorraciais para a definição de 50% das vagas nas universidades federais. Em 2018, pela primeira vez a população negra se tornou maioria no ambiente universitário.
Por último, deve ser ressaltada a contribuição do pensamento do Movimento Negro Unificado em incluir os povos marginalizados na Constituição de 1988, sobretudo os quilombolas.
Entretanto, ainda há muitos avanços por conquistar nessa pauta, visto que uma parte majoritária dos territórios remanescentes dos quilombos ainda precisa ser demarcada pelo governo
Figuras conhecidas do MNU
Lélia Gonzalez
Uma das maiores pensadores da história do Brasil, Lélia de Almeia Gonzalez nasceu em 1935, na cidade de Belo Horizonte. Lélia se formou em história e filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e foi professora de Cultura Brasileira na PUC-Rio, tornando-se posteriormente chefe do departamento de Sociologia e Política da mesma universidade.
No interior da variedade de noções encontradas em sua vasta obra intelectual, mesclam-se psicanálise, marxismo negro, feminismo, sociologia e filosofia.
Dentre elas, pode-se destacar sua representação e denúncia das particularidades vivenciadas pela mulher negra no racismo estrutural, bem como a ideia da amefricanidade – isto é, a reivindicação de uma identidade afro-latino-americana.
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Ela ajudou ainda a fundar o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), o Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga, a escola de tambores afro-brasileira Olodum, além do próprio MNU.
Num recente evento de lançamento, Angela Davis – uma das mais importantes feministas negras e intelectual estadunidense -, disse o seguinte sobre a pensadora brasileira:
“Eu me sinto estranha quando sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. E por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo.”
Abdias do Nascimento
Mais um dentre a lista dos importantes pensadores brasileiros, Abdias acumula uma diversidade de títulos: foi ator, poeta, artista plástico, professor universitário, político e ativista.
Tendo participado intensamente de todas as fases do movimento negro brasileiro, no geral, ele também estava presente, junto com Lélia, nas primeiras assembleias organizativas do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), que depois passaria a se chamar MNU. Os dois pensadores, inclusive, tiveram influência nessa mudança de nome.
Sem dúvidas, um dos principais e mais famosos feitos de Abdias é a criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944. Seu primeiro objetivo é o resgate aos “valores da cultura africana marginalizados à mera condição folclórica, pitoresca e insignificante”. Devido à sua importância histórica na valorização da cultura afro-brasileira, o TEN é citado no filme recente do rapper Emicida – AmarElo.
Intelectualmente, a tese de Abdias sobre o “genocídio do negro brasileiro” tornou-o mais conhecido em âmbito nacional. Opondo-se à noção tradicional de genocídio – aquela que o define como eventos específicos tal qual o do nazismo para com a população judaica -, Abdias retrata o conceito como processo.
Para ele, a trajetória de variados “assassinatos” vivenciada pela população negra no Brasil é antiga e se manifesta em diversos meios, com especial atenção dedicada ao cultural.
Milton Barbosa
“Miltão” nasceu em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, mas viveu a vida inteira na capital paulista. Após entrar na faculdade de Economia da USP, com 22 anos, desiludiu-se com o lado intelectual da vida universitária e focou nos diálogos e mobilizações que o movimento negro podia compor com as pautas estudantis.
Desde cedo envolvido com o samba, Milton por vezes combinou a música e a luta política, tendo inclusive aproximado os Racionais MC ‘s ao MNU no início dos anos 90. “Estive na Fundação Casa com Mano Brown, Edi Rock, fizemos algumas campanhas contra a violência policial. Era uma articulação importante”, conta ele em entrevista ao UOL.
Analisando a conjuntura mais recente do MNU, que acaba de fazer 44 anos, Milton demonstra entusiasmo com a nova geração de militantes, com sempre novas contribuições, mas afirma, na mesma entrevista:
“O custo é alto, há muito sacrifício, mas a gente supera e vê as coisas avançarem um pouco. Tudo isso vai nos calejando para uma luta que é sistemática. Entre erros e acertos, acredito que travei o bom combate”
Espero que tenha gostado do texto de hoje, e qualquer dúvida ou comentário pode escrever para nós aqui embaixo!
Referências
- Brasil de fato – Uma história oral do Movimento Negro unificado por três de seus militantes
- PT.org – 10 anos de Cotas: Movimento Negro Reivindica a continuidade e ampliação para corrigir desigualdades
- Passos de Luta – 40 anos do Movimento Negro Unificado
- MNU.org – Carta de Princípios
- Nova Escola Produção – Carta Convocatória MNU
- BRAUNS, Ennio; SA, José Adão de (org.). MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO: a resistência nas ruas. São Paulo: Edições São Paulo, 2020.
- CUSTODIO, Lourival Aguiar Teixeira. Um estudo de classe e identidade no Brasi: movimento negro unificado (MNU) – 1978 – 1990. 2017. 95 f. Dissertação (Doutorado) – Curso de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017
- UOL ecoa – Por um bom combate
- G1 – As fotos que mostram como negros combateram o racismo em plena ditadura
- Politize! – Democracia racial: o que significa? É um mito?
- Brasil de Fato – Em São Paulo, Angela Davis pede valorização de feministas negras brasileiras