Legítima defesa da honra: por que foi declarada inconstitucional?

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Em agosto de 2023, a tese da legítima defesa da honra foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. A decisão foi proferida no julgamento da ADPF 779.

A Politize! preparou este texto para você entender os fundamentos da decisão, seu impacto e recepção no meio jurídico. Vamos conferir?

O que é a legítima defesa?

A legítima defesa é um instituto do Direito Penal. Por ele, alguém, usando moderadamente dos meios necessários, pode repelir injusta agressão a direito seu ou de outra pessoa. Por ser uma reação a uma ação injusta, o Código Penal prevê que a conduta em legítima defesa é lícita. Isso afasta a configuração de um crime, conforme os artigos 23 e 25.

Em outras palavras, um fato que seria ilícito (criminoso) em condições normais torna-se lícito em razão das circunstâncias particulares em que o fato foi praticado.

Para tanto, alguns requisitos são indispensáveis. São eles: (i) agressão injusta; (ii) atual ou iminente; (iii) contra direito próprio ou de terceiro; (iv) uso moderado dos meios necessários para repelir a agressão; (v) intenção de defesa.

Na falta de qualquer deles, não estará configurada a legítima defesa. Nesse caso, o agente responde pelo crime praticado.

Leia mais: O que é legítima defesa?

Onde a “honra” entra nisso?

A origem do discurso que sustenta a tese remonta ao Brasil colonial. Neste período, teve início a institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres. Consequentemente, naturalizou-se a violência doméstica.

Antigamente, a honra masculina era considerada um bem jurídico merecedor de proteção estatal. Nas Ordenações Filipinas, conjunto de leis que vigeram no Brasil até o advento do Código Criminal do Império, em 1830, era concedido ao homem o direito de matar a esposa quando flagrada em adultério.

No Código Criminal do Império do Brasil e no Código Penal da República, o adultério era crime. Sua configuração, porém, era diferente para homens e mulheres. Enquanto ao homem se exigia a comprovação da relação extraconjugal estável e duradoura, para a mulher bastava a presunção de ocorrência da traição.

Mesmo com o passar dos anos, a mulher continuou subjugada, social e institucionalmente, ocupando papel de inferioridade em relação ao homem. Nesse cenário, construiu-se a tese de legítima defesa da honra como um recurso argumentativo em favor dos acusados de feminicídio ou violência contra mulher, imputando às vítimas a culpa pelas próprias mortes ou lesões corporais.

Nas palavras do Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal:

Percebe-se, portanto, o anacronismo da ideia de legítima defesa da honra, a qual remonta a uma concepção rigidamente hierarquizada de família, na qual a mulher ocupa posição subalterna e tem restringida sua dignidade e sua autodeterminação. Segundo essa percepção, o comportamento da mulher, especialmente no que se refere à sua conduta sexual, seria uma extensão da reputação do ‘chefe de família’, que, sentindo-se desonrado, agiria para corrigir ou cessar o motivo da desonra.“.

Saiba mais: A Tese da Legítima Defesa da Honra: o que é e por que é inconstitucional?

E como a legítima defesa da honra era utilizada no direito brasileiro?

A tese era utilizada para suscitar a aplicação dos artigos 23 e 25 do Código Penal. O fundamento era de que o homem que praticou o feminicídio ou a violência o fez para se defender da injusta agressão que o adultério causou à sua honra.

Pretendia-se, com isso, afastar a aplicação da lei para que a conduta não fosse considerada criminosa. Por anos, foi largamente utilizada e aceita. Com a redemocratização do Brasil, a partir da Constituição de 1988, o ideal social se repaginou, diante da luta feminina para garantia da igualdade formal e material entre os grupos.

A Carta Republicana trouxe diversas garantias às mulheres. São exemplos: o princípio da igualdade (art. 5º, I), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e o direito fundamental à vida (art. 5º, caput). Além disso, trouxe o dever de punição a atos discriminatórios e atentatórios aos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI e art. 226, §8º).

Com a mudança de pensamento e as medidas político-legais criadas desde então, a tese de legítima defesa da honra tornou-se incompatível com os preceitos da sociedade atual. Assim, deixou de encontrar amplo apoio social e jurídico.

Leia também: Movimento feminista: história no Brasil

Como a discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal? Quais foram os fundamentos da decisão?

Atual composição do Supremo Tribunal Federal. Imagem: Migalhas.

O Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) junto ao Supremo Tribunal Federal. O pedido formulado foi para que a Corte, como principal responsável pela guarda da Constituição, decidisse sobre a (im)possibilidade de se enquadrar a tese nos artigos 23 e 25 do Código Penal.

Por votação unânime, os Ministros entenderam pela sua inconstitucionalidade. Os fundamentos podem ser divididos em quatro grandes pontos.

1º A legítima defesa da honra não encontra amparo no ordenamento jurídico

A tese não é, tecnicamente, legítima defesa.

Prova disso é sua utilização mais frequente no âmbito do Tribunal do Júri, no qual se admite o emprego de argumentos jurídicos e extrajurídicos, em virtude da plenitude de defesa (art. 5º, XXXVIII, Constituição Federal).

A traição se insere no contexto das relações amorosas, sendo homens e mulheres suscetíveis de praticá-la ou sofrê-la. O desvalor da conduta, portanto, está no âmbito ético e moral, não havendo o direito à ação violenta.

Logo, a prática do feminicídio ou o uso da violência sob tal justificativa não é defesa, senão um ataque à mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa.

2º Ofensa constitucional à dignidade da pessoa humana, à vedação de discriminação e ao direito à vida e à igualdade

A dignidade da pessoa humana, fundamento da República, é baseada no conceito kantiano de que o ser humano é um fim em si mesmo. Por isso, não pode ter seu valor individual restringido por outro ser humano ou atrelado a uma coisa.

Trata-se de uma qualidade intrínseca e distintiva, apta a gerar um plexo de direitos e deveres. Por isso, confere a cada um o direito ao respeito e à tutela do Estado e da comunidade.

A legítima defesa da honra normaliza e reforça a compreensão de desvalor da vida da mulher, tornando-a secundária e passível de supressão em prol da afirmação da honra masculina. Além disso, essa tese viola os direitos à vida e à igualdade entre homens e mulheres. Seu acolhimento pode estimular práticas violentas, pois confere ao agressor a possibilidade de ver-se livre de punição.

Sugestões de leitura: Feminicídio: a faceta final do machismo no Brasil e Violência contra as mulheres e a Lei Maria da Penha.

3º Tribunal do júri, plenitude de defesa e impossibilidade de salvaguardar a prática ilícita

No Tribunal do Júri vigora o princípio constitucional da plenitude de defesa. Os acusados de crimes dolosos contra a vida podem apresentar defesa se valendo de argumentos jurídicos e extrajurídicos (por exemplo, sociológicos, políticos e morais).

Apesar disso, a legítima defesa da honra é uma estratégia cruel, subversiva e discriminatória.

Invocar a plenitude de defesa nesse contexto garante salvo-conduto à prática do feminicídio ou da violência contra a mulher. Isso é inaceitável em um país cuja vida é tida como o bem jurídico mais valioso do Direito.

4º Limitações argumentativas às partes na justiça criminal de um Estado democrático de Direito

O ordenamento jurídico prevê limitações argumentativas à acusação e à defesa.

São exemplos o artigo 28 do Código Penal, que veda a absolvição por emoção ou paixão, e o artigo 478 do Código de Processo Penal, que proíbe a menção, no Júri, a determinados temas. Logo, a limitação ao uso de estratégias não viola a Constituição Federal, eis que tal técnica já é empregada pelo próprio legislador.

E como foi a recepção da decisão no meio jurídico? Houve elogios ou críticas?

A decisão proferida dividiu opiniões.

Juristas como Silvia Pimentel, Valéria Pandjiarjian e Juliana Belloque concordam que a tese de legítima defesa da honra é machista e misógina. Em seus entendimentos, mistura o Direito à moral patriarcal, mescla já superada na academia.

Ana Elisa Bechara, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, expõe que a proibição do uso impacta positivamente no combate à desigualdade de gênero, impedindo o discurso de culpabilização da vítima.

A advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), aponta que a ação resgata a dignidade das mulheres. Afasta, definitivamente, a alegação de que a honra do homem está condicionada ao dever de fidelidade da mulher.

As vozes em sentido contrário criticam a decisão proferida.

Para o advogado Cezar Roberto Bitencourt, a mitigação à plenitude de defesa é inconstitucional. Não se pode restringir previamente a sustentação de teses fático-jurídicas no julgamento popular, no qual a defesa deve ser plena.

Para os defensores públicos Ana Carolina Bezerra e Gustavo Diniz Junqueira, o Tribunal do Júri é constitucionalmente soberano para acatar ou recusar qualquer tese a ele submetida.

Impor a proibição de citar a tese de legítima defesa da honra retira a competência dos jurados de absolvição do acusado. Além disso, limita o julgamento dos juízes leigos por uma decisão advinda de juízes togados.

Veja também nosso vídeo sobre direito das mulheres!

O que muda com a declaração de inconstitucionalidade da legítima defesa da honra?

Representação de um Tribunal do Júri. Imagem: Freepik.

Entendeu o Supremo Tribunal Federal que o Estado não pode ser conivente ou estimular tais comportamentos.

Por isso, os dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal devem ser interpretados de modo a excluir a legítima defesa da honra.

Os atores processuais ficam proibidos de invocá-la: defesa, acusação, autoridade policial e Juízo.

Assim, o uso da tese induzirá nulidade do ato e do julgamento. Isso, porque incompatível com o ordenamento jurídico e com princípios basilares da República do Brasil. Aquele que mencioná-la conferirá à parte interessada o direito de recorrer para ver declarada a nulidade do ato, com a imposição de um novo julgamento.

Consulte: Constituições do Brasil: Como chegamos até aqui?.

E aí, conseguiu entender melhor a tese da legítima defesa da honra? Conte nos comentários o que você achou e quais as suas dúvidas!

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Conteúdo escrito por:
Uma menina do interior de São Paulo que aos seis anos de idade decidiu transformar a sociedade em um lugar melhor. Desde então, formou-se em Direito pela PUC-SP, foi Assistente Jurídica no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e atualmente é advogada, estudando para, um dia, tornar-se juíza. Ah, ela também é amante de livros, fotografias e yoga.

Legítima defesa da honra: por que foi declarada inconstitucional?

23 abr. 2024

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