a imagem apresenta uma ilustração do economista Frédéric Bastiat

Libertarianismo: um liberalismo mais radical ou algo além?

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Já imaginou viver em um lugar onde o governo cuida apenas da justiça e da segurança pública, interferindo muito pouco na vida das pessoas? E se o Estado sequer existisse, sendo até mesmo a polícia e os tribunais deixados à iniciativa privada? Essas realidades – para alguns, inimagináveis – traduzem justamente o modelo de sociedade almejado pelo libertarianismo.

Para que você entenda melhor o pensamento libertário, a Politize! preparou um conteúdo explicando as principais características dessa ideologia política.

Definição e origem do libertarianismo

O libertarianismo é uma corrente de pensamento que se opõe à intervenção do Estado, seja na economia, seja em outros aspectos da vida humana. Os libertários, como são chamados seus defensores, partem do pressuposto de que a compreensão da realidade social e das normas éticas deve estar centrada no indivíduo, e não na coletividade.

Para essa doutrina, os indivíduos possuem determinados direitos naturais, que podem ser deduzidos filosoficamente e não derivam da lei estatal nem da vontade de uma autoridade. As ações individuais são vistas como produto da escolha livre e dotadas de um propósito. Quando realizadas de forma voluntária, isto é, livre de coerção, elas são capazes de gerar aumento de bem-estar social.

Não é fácil identificar uma origem precisa do pensamento libertário, mas existem alguns autores apontados pelos adeptos do libertarianismo como precursores dessa visão de mundo. Entre eles está o filósofo e jurista americano Lysander Spooner, que viveu no século XIX.

Considerado um anarquista individualista, Spooner lutou pela abolição da escravidão nos Estados Unidos, apoiou o livre mercado e opôs-se à Guerra da Secessão. No ensaio The Constitution of no authority (A Constituição da não autoridade), defendeu que o governo é uma associação criminosa e que sua legislação, oposta à lei natural, não deve ser seguida.

Além disso, nomes como o belga Gustave de Molinari e o francês Frédéric Bastiat influenciaram aquilo que viria mais tarde a se tornar a doutrina econômica do libertarianismo. Ambos eram ligados à escola clássica francesa de economia e defensores ferrenhos do laissez-faire.

Bastiat ficou conhecido pelas críticas ácidas ao protecionismo. Algumas delas vinham com um tom sarcástico, como na Petição dos fabricantes de velas.

No texto fictício de 1845, representantes do setor pedem à Câmara dos Deputados da França a criação de uma lei obrigando o fechamento de todas as janelas e cortinas para protegê-los de um grande concorrente estrangeiro – o Sol.

Economista clássico francês Frédéric Bastiat (1801-1850). Imagem: Wikipedia.

Saiba mais: quais são os espectros políticos?

Libertarianismo e Liberalismo

Embora tenham algumas bases filosóficas e econômicas comuns, existem diferenças entre o liberalismo e o libertarianismo. Este é visto por muitos como uma versão mais radical daquele, mas não é uma tarefa simples encontrar um único critério que os diferencie.

Ao explorar as duas ideologias, o filósofo e cientista político britânico Norman Patrick Barry propõe tratar o pensamento liberal como consequencialista, pois tende a analisar as consequências das políticas públicas sob a ótica da eficiência econômica, e o pensamento libertário como mais voltado à defesa dos direitos naturais do indivíduo. No último, a propriedade privada, por exemplo, é considerada completamente inviolável.

Leia também: o que é liberalismo?

Assim, os liberais geralmente aceitam a intervenção estatal em situações nas quais os libertários rejeitariam.

É possível que um liberal defenda políticas como a educação pública ou bolsas de estudo para escolas privadas pagas pelo governo, argumentando que o investimento público na área gera um retorno positivo para a sociedade. Já os libertários defendem que isso não cabe ao Estado.

Para alguns deles, essa instituição sequer deve existir. Os anarcocapitalistas, dos quais falaremos na próxima seção, entendem que a própria tributação necessária para manter o funcionamento do governo viola o direito natural à propriedade – daí a frase “imposto é roubo”, muito difundida no meio libertário.

Veja também nosso vídeo sobre liberalismo!

É importante deixar claro que, assim como o liberalismo, o libertarianismo não é um pensamento homogêneo. Apesar de seus representantes no campo teórico chegarem a conclusões semelhantes sobre quais políticas devem ou não ser adotadas, há uma grande variedade de argumentos e caminhos para fundamentá-las.

Tabela com diferenças filosóficas e metodológicas entre autores/vertentes do liberalismo e do libertarianismo, segundo o cientista político Norman P. Barry/ Tabela Politize!.

Autores e vertentes do libertarianismo

Dentre os teóricos mais influentes do libertarianismo estão Robert Nozick, Ayn Rand, Murray Rothbard e Hans-Hermann Hoppe. Vejamos as principais ideias de cada um deles.

Robert Nozick

Na imagem, Robert Nozick aparece com roupas claras
Robert Nozick. Imagem: Store Norske Leksikon.

Filósofo e professor da Universidade de Harvard, nos EUA, Robert Nozick é o autor libertário com maior aceitação pela academia, devido à sua análise inovadora e rigorosa no campo da filosofia política. Crítico do conservadorismo, do liberalismo social e do socialismo, Nozick questiona a legitimidade do Estado moderno, que, segundo ele, viola os direitos individuais.

Na sua visão, cabe a essa instituição apenas proteger o cidadão contra crimes e garantir o direito à propriedade privada, assim como o bom funcionamento do sistema de contratos. Além disso, ele rejeita o utilitarismo, ligado a teóricos como John Stuart Mill. Sua principal influência teórica é a noção de ética deontológica, desenvolvida pelo filósofo Immanuel Kant.

Veja mais: Kant e o Iluminismo

Ayn Rand

A imagem é uma fotografia de Ayn Rand. ela está sentada, usa roupas escuras e tem um braço fechado em punho sob o rosto
Ayn Rand. Imagem: Wikimedia Commons.

Nascida Alissa Zinovievna Rosenbaum, a filósofa e escritora russa adotou o nome Ayn Rand após mudar-se para os EUA e adquirir a cidadania americana. Seu sistema filosófico, conhecido como objetivismo, é centrado na ideia de que o conhecimento e os valores humanos são objetivos.

Rand defende que há uma virtude no egoísmo e argumenta que o altruísmo pode ser problemático. Para ela, a intenção moral da existência é a busca pela felicidade e o único sistema compatível com esse objetivo é o capitalismo laissez-faire.

Muitas de suas ideias foram expressas por meio de obras literárias. A mais famosa delas é Atlas Shrugged (A Revolta de Atlas), cujo título faz referência à figura da mitologia grega que carregava o mundo em seus ombros.

No livro, grandes industriais americanos decidem deixar o país quando o governo adota uma política de forte taxação e regulação de suas atividades.

Anarcocapitalismo

A imagem é uma colagem que apresenta nomes relacionados ao anarcocapitalismo. Ludwig von Mises, Hans-Hermann Hoppe e Murray Rothbard
Da esquerda para a direita: Ludwig von Mises, Hans-Hermann Hoppe e Murray Rothbard. Imagem: Instituto Rothbard.

Os economistas e filósofos americanos Murray Rothbard e Hans-Hermann Hoppe são adeptos do anarcocapitalismo, isto é, defendem que o Estado não deve existir e que todos os serviços – inclusive segurança e justiça – devem ser privados. Ambos foram influenciados pelo pensamento do economista austríaco Ludwig von Mises.

Embora não tenha sido representante dessa vertente, mas sim um liberal defensor do Estado mínimo, Mises desenvolveu a chamada praxeologia, utilizada mais tarde como método que sustentaria as conclusões dos anarcocapitalistas. Trata-se de um sistema puramente dedutivo de análise social, com base em premissas sobre a ação humana.

Saiba mais: o que é Estado mínimo?

Além de argumentar que um modelo político totalmente livre de coerção geraria melhores resultados econômicos, Rothbard o defende a partir de uma ética calcada no chamado princípio da não agressão (PNA), segundo o qual não se pode iniciar uma agressão contra outra pessoa ou sua propriedade, como faz o aparato estatal. De acordo com o PNA, a violência só é legítima se for utilizada defensivamente.

Já a justificativa central de Hoppe para a defesa de uma sociedade livre do Estado parte da chamada ética argumentativa. De acordo com essa teoria, o próprio ato de argumentar implica o reconhecimento da autonomia e da autopropriedade do outro.

Disso deriva o direito às demais propriedades privadas, o que tornam antiéticos os atos que as agridem, a exemplo da cobrança de impostos – uma subtração de parte da propriedade mediante ameaça de violência pelo aparato estatal, já que a resistência ao pagamento pode levar à prisão, em última análise.

Libertarianismo na política

Nos Estados Unidos, o Partido Libertário foi criado como uma tentativa de superar a dicotomia entre o Partido Democrata e o Partido Republicano. Seus apoiadores não se veem representados por nenhum dos dois, mas sua visão se aproxima mais da republicana na economia e da democrata em outras questões sociais, a exemplo da legalização da maconha.

Apesar de contar com adeptos fiéis, o partido não possui uma grande força eleitoral. Seu candidato à presidência, Garry Johnson, recebeu 0,99% dos votos em 2012 e 3,28% em 2016 e a candidata Jo Jorgensen, 1,18% em 2020.

Devido à estrutura reduzida da agremiação, em muitas ocasiões, políticos identificados com o libertarianismo acabam se filiando ao Partido Republicano. Foi o caso do próprio Johnson, que governou o estado do Novo México de 1995 a 2003 enquanto membro do GOP (Grand Old Party).

O mesmo ocorreu com o ex-deputado pelo Texas, Ron Paul. Candidato nas primárias republicanas de 2012, ele obteve a quarta posição, com 10,89% dos votos. O primeiro colocado, Mitt Romney, perdeu a disputa nacional para o democrata Barack Obama, reeleito na ocasião.

Libertarianismo no Brasil

O Brasil não possui nenhuma legenda libertária aprovada pelo TSE, mas o Partido Novo, de orientação liberal, possui alguns filiados adeptos do libertarianismo. Dentre eles está Raphaël Lima, provável candidato a vereador nas eleições municipais de 2024 e dono do canal Ideias Radicais no YouTube, que possui mais de 650 mil inscritos.

Dos parlamentares federais da sigla, apenas o deputado Gilson Marques (Novo-SC) se identifica como libertário. Ele já chegou a dizer que imposto é roubo em um discurso crítico ao atual pacto federativo realizado no plenário da Câmara.

Fora do Novo, uma das figuras mais conhecidas e polêmicas é a do youtuber Paulo Kogos. Sua principal marca é o discurso aguerrido e estridente. Transitando entre ideias libertárias e reacionárias, Kogos foi candidato a deputado estadual em São Paulo pelo PTB com o número 14038 e obteve 33.109 votos, mas não se elegeu. Ele afirma ser de “extrema direita assumida”.

Em termos institucionais, o maior think tank divulgador do libertarianismo no país é o Instituto Mises Brasil, presidido pelo empresário Helio Beltrão. A rede Students for Liberty Brasil cumpre um papel semelhante, difundindo o pensamento liberal e libertário com foco no público jovem.

Críticas ao libertarianismo

O libertarianismo é muito criticado por pessoas de diversos campos políticos. Os progressistas, por exemplo, tendem a privilegiar a coletividade e não enxergam o individualismo com bons olhos. Já para os conservadores, os libertários acabam defendendo uma certa “libertinagem”, e não uma liberdade verdadeira.

Veja também nosso vídeo sobre conservadorismo no Brasil!

Mesmo alguns liberais consideram as posições libertárias extremistas. Os defensores do liberalismo economicamente ortodoxos (visão predominante nos principais centros de estudo), como os da Escola de Chicago, reconhecem a existência de falhas de mercado. Por isso, defendem que o governo precisa intervir em determinadas situações para corrigi-las e aumentar o bem-estar social.

Além disso, eles apontam inconsistências na chamada Escola Austríaca, escola de pensamento econômico que fundamenta boa parte do pensamento libertário nessa área do conhecimento. Um exemplo é a crítica à teoria austríaca dos ciclos econômicos, que tenta explicar por que acontecem crises como a de 1929.

Leia também: crise de 29

Na academia, Ayn Rand também recebe duras críticas. Alguns estudiosos da área afirmam que ela sequer pode ser chamada de filósofa, devido à falta de rigor em seus escritos.

Já Nozick é mais respeitado no meio acadêmico, embora muitos estudiosos discordem de suas ideias. Há um conhecido embate entre sua teoria da justiça e a do filósofo John Rawls, cujo pensamento se aproxima do liberalismo social, de caráter mais igualitário.

Curiosidade: Existe um teste libertário na internet que você pode fazer para ver o quanto seu pensamento político se aproxima ou se afasta dessa visão de mundo.

E aí, o que mais te surpreendeu no libertarianismo? Deixe suas impressões nos comentários!

Referências

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5 comentários em “Libertarianismo: um liberalismo mais radical ou algo além?”

  1. Ivanildo Terceiro

    Olá!

    Gostaria de agradecer ao Politize! e ao Ricardo Grandi Bianco por terem feito um artigo equilibrado e imparcial sobre o tema.

  2. Mauricio Durigon

    Muito imparcial, gostei.
    Reitero que muitos fazem o mal uso, confundindo com libertinagem.
    É importante para quem defende essa corrente, resgatar o verdadeiro liberal.

  3. Parabéns pelo esclarecimento sobre a origem filosófica destas teorias, porém existe uma pequena falha. Fora apontado, equivocadamente, que Ayn Rand defende o libertarianismo. No entanto, tanto em “Ayn Rand Lexicon” quanto em outras obras, como “A virtude do egoísmo”, ela se opôs, veementemente, a esta ideologia política.
    Em suma, ela defendeu o laissez faire e o liberalismo clássico, com ênfase na república constitucional, na qual os direitos individuais estariam garantidos por leis objetivas – pois, segundo ela, este é o único papel legítimo do Estado – o controle objetivo da força física.
    * Já estudei as obras da Escola Austríaca de economia e o Objetivismo.
    Fontes: Ayn Rand Lexicon (pesquisa: libertários); A virtude do egoísmo e Capitalismo, o ideal desconhecido.

    1. Olá, Dean! Obrigado pelo toque. Em função da limitação de tamanho do texto e de seu caráter mais didático/informativo e menos acadêmico, acaba sendo inviável ir a fundo em cada minúcia e nuance dos conceitos. Por isso, optei por utilizar a definição trazida pelo cientista político Norman P. Barry, que enquadra Ayn Rand como libertária – talvez em razão das diferentes acepções dos termos “classical liberal” e “libertarian” em relação ao português. De qualquer forma, suas sugestões de bibliografia são boas para quem tiver se interessado e desejar um aprofundamento no tema.

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