O Paradoxo da Tolerância: devemos dialogar com todos?

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Paradoxo da tolerância. Imagem: Pixabay.
Paradoxo da tolerância. Imagem: Pixabay.

Recentemente, debates sobre a liberdade de expressão e o paradoxo da tolerância têm sido frequentes. Nas mídias sociais, vemos a ascensão de grupos extremistas, além de muitas falas e posts disseminando o ódio e incitando a violência. Em anos eleitorais, esse cenário se amplifica. Vivemos um contexto de grande polarização e são comuns os ataques à dignidade de grupos ou pessoas com base apenas no posicionamento político.

Diante desse cenário de diversidade de ideias, fala-se muito sobre a tolerância e a habilidade de dialogar com todos esses grupos. Mas será que devemos mesmo dialogar com todos? Até mesmo com aqueles que pregam ideias intolerantes? É aqui que esbarramos no famoso paradoxo da tolerância.

Quer entender melhor esse conceito e como ele pode ajudar na construção de um debate público mais saudável? Continue a leitura!

Leia também: Como a polarização é percebida no Brasil e no mundo

O que é tolerância, afinal?

O dicionário Michaelis define a tolerância como o “ato ou efeito de tolerar, admitir ou aquiescer”. Nesse sentido, quando se trata do convívio social, usamos o termo para se referir à capacidade de reconhecer o direito de outros indivíduos de manifestarem suas opiniões, mesmo que elas sejam completamente opostas às nossas.

Ao mesmo tempo que a tolerância garante a liberdade de expressão, ela também depende dela. Para que possa haver respeito e diversidade de ideias, é preciso que os indivíduos possam expressar suas opiniões livremente. E para que as pessoas se sintam à vontade para expressar suas ideias, não devem ter medo de perseguição ou censura.

Assim, em uma sociedade democrática, a tolerância se torna um valor essencial para a convivência e para a coexistência dos grupos.

Mas e quando as opiniões desses grupos são, elas mesmas, intolerantes?

Nos dias de hoje, as consequências da intolerância são visíveis. Diariamente ouvimos relatos de desrespeito com opiniões e modos de vida diferentes, seja por orientação sexual, raça, religião ou posicionamentos políticos. Em casos extremos, a intolerância levou até mesmo a atrocidades como o Holocausto.

Com a anonimidade promovida pelas redes sociais, ficou ainda mais fácil divulgar conteúdos de teor intolerante sem consequências diretas. Por isso, a busca por maior tolerância e respeito aos direitos humanos tem sido uma luta constante.

Em 2021, o caso do deputado federal Daniel Silveira chamou a atenção da mídia. Silveira foi preso após publicar um vídeo ofendendo e ameaçando ministros do Supremo Tribunal Federal, além de ter feito apologia ao AI-5, ato que marcou o período de maior repressão na Ditadura Militar. Sua fala foi considerada antidemocrática e um atentado contra a honra do Poder Judiciário e dos ministros do Supremo Tribunal Federal, crime previsto pela Lei de Segurança Nacional.

Porém, a defesa de Daniel Silveira alegou que o deputado estava apenas exercendo seu direito de livre expressão, mas o caso levantou o debate: como lidar com discursos desse tipo, que vão contra a ordem democrática e incitam a violência?

Outro exemplo que podemos citar é o caso do podcaster Bruno Aiub, mais conhecido como Monark. Aiub foi afastado do Flow Podcast após defender a possibilidade da existência de um partido nazista no Brasil durante uma das entrevistas do canal. Além de trazer questões como a responsabilidade que criadores de conteúdo têm diante da sua audiência, o ocorrido teve grande repercussão nas redes sociais e acendeu novamente o debate sobre a liberdade de expressão.

Assim, surge a pergunta: seria correto, então, em nome desse direito, que um partido nazista – que tem como principal objetivo o extermínio de um grupo, os judeus – fosse legalmente reconhecido? Para pensar sobre o assunto, precisamos entender o paradoxo da tolerância.

Ouça também nosso podcast sobre o que é intolerância!

O paradoxo da tolerância de Karl Popper

Karl Popper foi um filósofo austro-britânico considerado um dos maiores teóricos da ciência do século XX. De origem judaica, Popper foi forçado a emigrar de sua terra natal em 1937 devido à ascensão do Nazismo na Alemanha. É conhecido principalmente por sua defesa da democracia liberal e do que chamou de “sociedade aberta”.

Em seu livro “A Sociedade Aberta e seus Inimigos” (publicado originalmente em 1945), em resposta aos movimentos totalitários da época, cunhou a ideia do “paradoxo da tolerância” para responder a seguinte questão: devemos tolerar os intolerantes?

Para Popper, a resposta é não.

Ele explica que, para ser verdadeiramente tolerante, a sociedade deve ser intolerante à intolerância. Parece confuso, não é? Mas a ideia é simples: se existe a tolerância ilimitada, grupos que pregam ideias intolerantes acabam corrompendo o debate público, podendo até mesmo ameaçar a democracia e a liberdade de expressão de outros grupos. A tolerância ilimitada leva à extinção da própria tolerância.

Por isso, devemos estar preparados para defender a sociedade de tais ideias. Nas palavras de Popper, devemos “reservar o direito de não tolerar os intolerantes”. Portanto, qualquer movimento que pregue a perseguição e a intolerância deve ser ilegal.

Imagem: Freepik.
Imagem: Freepik.

Intolerância x Liberdade de Expressão

Isso significa que não há espaço para a existência de opiniões divergentes? Muito pelo contrário. Popper afirma que a primeira via de ação sempre deve ser tentar combater as ideias intolerantes com argumentos racionais e “mantê-las em xeque frente à opinião pública”. Em resumo, é preciso dialogar.

Todavia, caso a opção do diálogo não funcione, o combate mais incisivo a essas ideias não deve ser descartado, especialmente quando grupos intolerantes utilizam da violência como mecanismo de intimidação e convencimento.

Afinal, o ódio e a intolerância não são disseminados apenas por ações. Ainda que não sejam incitações diretas, as palavras e as opiniões podem criar um clima favorável à violência ou a atos mais diretos.

Incitação à violência

Um exemplo desse fenômeno é o incidente das marchas neonazistas em Charlottesville, Virginia, nos EUA, em 2017. Na ocasião, um grupo de supremacistas brancos carregava tochas e cartazes que pregavam ideias contra gays, negros, judeus e outros grupos minoritários, muitas delas violentas. Alguns portavam armas abertamente. Uma pessoa foi morta e mais de 30 pessoas ficaram feridas em meio à confusão.

O acontecimento gerou um debate acalorado a respeito dos limites da liberdade de expressão. A União Americana para as Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), uma das principais organizações progressistas do país, se posicionou de maneira contrária ao discurso. Entretanto, em seu pronunciamento, defendeu o direito dos supremacistas brancos à livre expressão de suas ideias.

O comunicado foi alvo de fortes críticas, como a da presidente da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), Janette Martin. Em uma entrevista ao Nexo, a ativista alertou que o debate sobre liberdade de expressão que surge a partir desse tipo de evento é, muitas vezes, falso. Na agenda dos supremacistas brancos, é mais relevante causar danos e promover o discurso de ódio do que de fato defender a pauta do direito à livre expressão.

Até que ponto vai a liberdade de expressão?

O alerta de Janette Martin é especialmente pertinente em anos eleitorais, que tradicionalmente despertam debates políticos intensos. Para proteger a democracia, precisamos nos atentar para grupos que reivindicam o direito à liberdade de expressão como pretexto para o espalhamento de discursos de ódio.

Mas como distinguir? Infelizmente, não há uma regra de ouro a ser seguida. Muitas vezes, a linha entre opinião e intolerância pode ser tênue. Daí vem a importância da educação política e do desenvolvimento do senso crítico: por esses meios, é possível identificar a motivação por trás dos discursos que lemos on-line ou ouvimos de candidatos. Assim, podemos pensar em maneiras de proteger a sociedade contra essas ideias nocivas.

Combate a intolerância: mobilizações jurídicas

O direito à liberdade de expressão é garantido pelo inciso IX do artigo 5° da Constituição Federal, mas, como já mencionado, não se trata de uma garantia absoluta. Também entram em jogo outros direitos fundamentais, como o direito à intimidade, à igualdade e à segurança, por exemplo. Considerando que não existe uma legislação específica que proíbe o discurso de ódio, a atuação do Poder Judiciário é fundamental no combate às ideias intolerantes.

O famoso caso Ellwanger, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2003, ilustra muito bem o conceito do paradoxo da tolerância.

Siegfried Ellwanger foi um industrial e editor gaúcho que utilizava sua editora para publicar várias obras nas quais negava a existência do Holocausto e disseminava outras ideias antissemitas. Em um julgamento polêmico e acirrado, justamente por tratar das questões paradoxais que vimos acima, a Corte decidiu condenar Ellwanger.

A decisão foi a seguinte: a publicação das obras era ilegal e não estava protegida pela liberdade de expressão por causa de seu conteúdo, que caracterizava crime de racismo.

Ou seja, a motivação não era divulgar discussões históricas relevantes, mas sim fazer propaganda antissemita.

Este é apenas um exemplo de como a liberdade de expressão pode ser discutida em espaços jurídicos.

Veja também nosso vídeo sobre direitos humanos!

Mobilizações civis

Além da via jurídica, outro mecanismo de combate é a moderação ativa de plataformas on-line como o Twitter e o Facebook. Nessas redes, é comum ver conteúdo hostil que viola as diretrizes da comunidade.

Em resposta à disseminação do discurso de ódio no ambiente virtual e em preparação para as eleições de 2022, várias redes sociais já se pronunciaram sobre mudar suas políticas de moderação. Na Europa, têm sido estudadas algumas leis com a mesma finalidade. O objetivo, que remete ao paradoxo da tolerância de Popper, é remover os posts ofensivos de maneira mais eficaz e tentar minimizar as ideias intolerantes.

Outros exemplos de mobilizações civis incluem: a retirada de patrocínios por empresas, como ocorreu no caso Monark, abaixo-assinados, manifestações, entre outros.

Não há apenas um caminho, e certamente não há solução simples para o problema, mas a célebre frase proferida pelo vencedor do prêmio Nobel de Literatura José Saramago pode ser um bom ponto de partida: “A tolerância para no limiar do crime. Não se pode ser tolerante com o criminoso. Educa-se ou pune-se.”

E você, como você entende o paradoxo da tolerância? Como podemos garantir um debate democrático e saudável sem suprimir a liberdade de expressão? Deixe sua opinião nos comentários!

Referências:

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3 comentários em “O Paradoxo da Tolerância: devemos dialogar com todos?”

  1. Ok.
    O problema surge quando os atores do jogo têm práticas intolerantes. Inclusive os que decidem o que é e o que não é discurso de ódio

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Conteúdo escrito por:
Brasiliense e cientista política em formação pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente atua na área de Relações Governamentais e, como escritora aspirante, acredita no potencial transformador da palavra para os movimentos políticos.

O Paradoxo da Tolerância: devemos dialogar com todos?

22 abr. 2024

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