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Violência doméstica na pandemia: Dados Pandêmicos #1

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Violência doméstica na pandemia. Imagem: Politize!
Imagem: Politize!

Você sabe qual a situação da violência doméstica na pandemia?

A série Dados pandêmicos é uma parceria entre Politize! e Instituto Norberto Bobbio. Por meio da criação de infográficos e posterior análise teórica, apresentamos dados produzidos nos últimos dois anos que revelam como a pandemia de Covid-19 impactou – e ainda impacta – a sociedade brasileira como explicitam suas fissuras.

Nosso objetivo é, assim, tanto discutir questões atuais, como evidenciar de que modo a crise sanitária (mas também política e econômica) agrava e escancara a obscuridade da realidade brasileira

Para tanto, procuramos relacionar esses dados com o pensamento de Norberto Bobbio, dando continuidade à parceria anterior sobre os conceitos fundamentais da democracia na perspectiva do filósofo italiano. 

Se a apresentação de temas clássicos da ciência política – como as regras do jogo democrático e sua vinculação com as promessas não cumpridas da democracia, as discussões sobre democracia representativa e direta, além dos embates entre democracia e segredo – já justificaram sua importância, em Dados pandêmicos buscamos demonstrar a atualidade da reflexão bobbiana em um dos momentos mais críticos da nossa sociedade.

Neste primeiro texto, nosso objeto de análise é a relação da violência doméstica com os impactos da pandemia no Brasil. A percepção de que a violência contra a mulher é um problema estrutural é cada vez mais robusta no imaginário da população.

Veja também nosso vídeo no YouTube sobre violência contra a mulher

Violência doméstica na pandemia

De acordo com a terceira edição do relatório “Visível e Invisível: A vitimização das mulheres no Brasil” (2021), elaborado pelo Fórum de Segurança Pública em parceria com o Datafolha, 73, 5% da população acredita que este tipo de violência aumentou durante a pandemia

Este é um dado nada casual. Cotidianamente, mulheres e meninas sofrem agressões que variam desde o assédio moral ao feminicídio, de tal modo que as vítimas têm de arcar com o peso de consequências psicológicas, físicas e, lamentavelmente, até fatais. 

Trata-se de uma situação que comprova a imprescindibilidade do movimento feminista – para Bobbio, a revolução das mulheres foi a mais importante revolução do século XX –, na medida em que pressupõe discriminações sociais que, “sendo um produto artificial da sociedade dirigida pelos homens, podem (ou devem) ser eliminadas” (BOBBIO, 2002, p. 113). 

Entretanto, esses dados pandêmicos não são compatíveis com a existência de uma série de medidas protetivas formuladas pelo direito brasileiro, cujo objetivo é coibir e prevenir a violência de gênero e, de modo geral, fazer valer a igualdade perante a lei mesmo diante de discriminações sociais ainda existentes (BOBBIO, 2000, p. 314). 

Nesse sentido, existem exemplos importantes de produção legislativa que procuraram garantir a liberdade pela igualdade de poder (BOBBIO, 1999, p. 42), tais como a Lei Maria da Penha (Lei 11. 340/2006), a Lei Carolina Dieckmann (Lei Nº 12.737/2012) e a Lei do Minuto Seguinte (Lei Nº 12.845/2013).

Como se vê, é inegável a tensão entre a aplicação eficaz das leis incorporadas em nosso ordenamento jurídico e a realidade vivida todos os dias. Conforme destacado por Bobbio, “uma coisa é falar dos direitos do homem, direitos sempre novos e cada vez mais extensos, e justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva” (BOBBIO, 2004, p. 60).

Daí a oportuna questão: como compreender a simultaneidade entre a percepção de aumento dos casos de violência contra a mulher durante a atual pandemia e a existência de normas que protegem a sua dignidade física e psicológica?

Uma das principais razões está nos efeitos da intensificação da pandemia a partir de março de 2020.

Analisando os dados pandêmicos sobre a violência doméstica

Apesar das medidas de isolamento social e quarentena serem adequadas e necessárias, as consequências perversas para milhares de mulheres que vivem em situação de violência no convívio domiciliar revelaram-se um indesejado efeito colateral.

Não por acaso, a subnotificação já era um problema grave. Se o Ligue 180 registrou em 2020 um aumento de 36% em casos de violência contra a mulher, a pesquisa “Violência Doméstica durante a pandemia de Covid-19 – 3ª Ed” elaborada pelo Fórum de Segurança Pública revelou: 

  • (i) redução nos registros de lesão corporal dolosa – 27, 2% de modo geral – em todas as unidades da Federação entre março/2020 e maio/2020 em comparação com o mesmo período do ano anterior; 
  • (ii) redução geral de 50, 5% nos registros de estupro e estupro de vulneráveis com vítimas mulheres;  
  • (iii) e redução geral de 32, 7% nos registros de ameaça.

Redução ou aumento nos casos de violência doméstica durante a pandemia?

Note-se, no entanto, que a mesma pesquisa aponta um aumento geral de 2, 2% nos registros de feminicídio no mesmo período.

Como se vê, uma análise rigorosa desses dados deve considerar essa aparente contradição entre aumento da notificação de feminicídios e diminuição dos registros dos demais crimes. 

Discutindo justamente essa relação, o já citado relatório do Fórum de Segurança Pública sabidamente conclui:

A aparente redução da violência contra a mulher representada pela queda nos registros policiais tradicionais era confrontada, portanto, com o aumento da violência letal e das chamadas em canais oficiais de ajuda. Isso fez com que se indicasse que, embora a violência letal estivesse crescendo no período, as mulheres estavam encontrando mais dificuldades para realizar denúncias do que em períodos anteriores, provavelmente por dois motivos: em função do maior convívio junto ao agressor e da consequente ampliação da manipulação física e psicológica sobre a vítima; e das dificuldades de deslocamento e acesso a instituições e redes de proteção, que no período passavam por instabilidades, como diminuição do número de servidores, horários de atendimento reduzidos e aumento das demandas, bem como pelas restrições de mobilidade” (2021, p. 8).

O mesmo documento ainda traz outros dados emblemáticos sobre a gravidade dessa situação:

  • (i) 1 em cada 4 mulheres brasileiras (24,4%) acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão nos últimos 12 meses. Isso significa dizer que cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual nesse período;
  • (ii) 4,3 milhões de mulheres (6,3%) foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes. Ou seja, a cada minuto, 8 mulheres apanharam no Brasil;
  • (iii) Cerca de 3,7 milhões de mulheres (5,4%) sofreram ofensas sexuais ou tentativas forçadas de manter relações sexuais;
  • (iv) 2,1 milhões de mulheres (3,1%) sofreram ameaças com faca (arma branca) ou arma de fogo e
  • (v) 1,6 milhão de mulheres (2,4%) foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento.

É certo dizer que essas pesquisas revelam uma impactante agressão ao princípio da igualdade, elementar à preservação do Estado democrático de Direito, nos termos do artigo 5º caput da Constituição Federal. Trata-se de um pressuposto sem o qual a democracia torna-se mera fantasia. 

Violência doméstica sob as lentes de Bobbio

De acordo com Bobbio, a justiça é a responsável por fazer com que a igualdade seja humanamente desejável: “pode-se repetir, como conclusão, que a liberdade é o valor supremo do indivíduo em face do todo, enquanto a justiça é o bem supremo do todo enquanto composto por partes. Em outras palavras, a liberdade é o bem individual por excelência, ao passo que a justiça é o bem social por excelência” (BOBBIO, 1996, p. 16).

Apesar da importância dessas palavras, a situação de violência doméstica significa, essencialmente, a negação de todos esses valores, constituindo um cotidiano de desigualdade, dominação e injustiça que qualifica nossa sociedade.

Tal constatação é certamente assombrosa, mas não só. Mais do que um alarme para os desafios nacionais ainda vigentes, os dados acima apresentados sugerem uma mudança de rota profunda nas expectativas políticas que caracterizaram o pensamento progressista da segunda metade do século passado. 

O próprio Bobbio sugere, em A era dos direitos, que

Os direitos do homem, apesar de terem sido considerados naturais desde o início, não foram dados de uma vez por todas. Basta pensar nas vicitudes da extensão dos direitos políticos. Durante séculos não se considerou de forma alguma natural que as mulheres votassem. Agora, podemos também dizer que não foram dados todos de uma vez e nem conjuntamente. Todavia, não há dúvida de que as várias tradições estão se aproximando e formando juntas um único grande desenho da defesa do homem, que compreende os três bens supremos da vida, da liberdade e da segurança social” (BOBBIO, 2004, p. 209).  

Pode ser compreensível que essa certeza tenha sido formulada no início dos anos 1990. Apesar do direito de voto e de tantas outras conquistas jurídicas, a realidade material de violência contra a mulher, tão recorrente quanto naturalizada, constitui uma das características mais marcantes do Brasil ao longo de sua história. 

Que esse cenário não se modifique, e o que é pior, se agrave, demonstra quão estrutural é o panorama retratado nos parágrafos anteriores.

Como procuraremos demonstrar nas próximas publicações, a série Dados pandêmicos traz elementos que contribuem para o debate acerca do “atraso” brasileiro que, como sabemos, se moderniza cada vez mais.

Referências:

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Violência doméstica na pandemia: Dados Pandêmicos #1

22 abr. 2024

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