Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
8 de julho de 2020

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Inciso LVII – Princípio da presunção de inocência

"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"

INCISO LVII – PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Você sabia que a nossa Constituição estabelece que todas as pessoas devem ser consideradas inocentes até que se prove o contrário? É dessa garantia que o inciso LVII do artigo 5º trata. Ele assegura que o Estado não deve exercer sua autoridade de forma abusiva ou autoritária, mas sim assegurar um processo penal justo e democrático. Além disso, o Estado só pode impor penas após a comprovação de culpa segundo as regras processuais que todos, inclusive ele mesmo, devem observar.

Quer saber mais sobre como a Constituição define este princípio e por que ele é tão importante, bem como a sua história e sua aplicação na prática? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série do projeto Artigo Quinto.

O QUE É O INCISO LVII?

O inciso LVII do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:

Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Ele consagra o princípio da presunção de inocência, também conhecido por “princípio da não culpabilidade”. Isso significa que qualquer pessoa só pode ser considerada culpada por um crime após o seu julgamento definitivo, respeitando-se o devido processo legal (ver  inciso LIV). Deve-se observar, portanto, o direito ao contraditório e à ampla defesa (ver inciso LV) – e quando não for mais possível recorrer da decisão judicial.

Esse princípio orienta o processo penal brasileiro, condicionando o tratamento de uma pessoa como culpada pelo Estado, com todas as consequências negativas (punições) que isso impõe à liberdade, ao patrimônio e à reputação de cidadãos, à conclusão do processo penal. Trata-se de um direito constitucional fundamental para a consolidação do Estado Democrático de Direito, que busca preservar a dignidade da pessoa humana e sua liberdade.

HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Com as Revoluções Francesa e Americana, consolidou-se um movimento político para a defesa dos direitos e das garantias fundamentais dos cidadãos com relação ao Estado. Isso porque esses movimentos buscavam romper com os ideais autoritários, característicos do Estado absolutista da época. Esse tipo de regime frequentemente perseguia e punia pessoas sem observar requisitos de segurança jurídica e direito de defesa, o que não raro resultava na injusta punição de inocentes, por erros judiciários ou por perseguições políticas deliberadas. 

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, elaborada na França, foi um marco na história da defesa dos direitos e das garantias fundamentais do indivíduo, hoje conhecidos como direitos humanos. Em seu artigo 9º, ela trouxe o princípio da presunção de inocência como resistência à ação arbitrária do Estado.

Já no século XX, por conta das evoluções políticas, civilizatórias, do constitucionalismo e da teoria dos direitos fundamentais da pessoa humana, a presunção de inocência passou a ser mais desenvolvida e aplicada.  A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, da Organização das Nações Unidas (ONU), consagrou o princípio da presunção da inocência. Também influenciou diversas normas internacionais que passaram a resguardar essa garantia de forma cada vez mais clara. 

Em nosso país, a primeira Constituição a prever esse direito expressamente foi a Constituição Cidadã, de 1988. Ela consagrou, no inciso LVII, o princípio da presunção de inocência como uma garantia constitucional e fundamental no Brasil. Trata-se de direito indisponível do cidadão em face dos poderes do Estado, que se aplica principalmente na esfera penal

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A IMPORTÂNCIA DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Martelo do juiz | Princípio da presunção da inocência - Artigo Quinto
Martelo do juiz representando a justiça | Princípio da presunção da inocência – Artigo Quinto

A presunção de inocência protege a dignidade dos cidadãos no curso do processo. Faz isso de duas formas. Primeiro, ao impedir que sejam  prematuramente considerados culpados, jurídica ou moralmente.  Segundo, ao assegurar todos os instrumentos previstos pelo ordenamento jurídico para comprovar a sua inocência. 

Para que alguém seja considerado culpado por um crime, primeiramente devem existir provas lícitas que comprovem sua culpa. Além disso, o devido processo legal deve ser respeitado (ver inciso LIV), devendo  a obtenção dessas provas observar as regras legais cabíveis. 

Também é necessário ouvir os argumentos de defesa da pessoa e lhe permitir produzir provas em seu favor e garantir o direito de recorrer de eventual sentença da qual discorde. Assim, caberá ao poder judiciário garantir os direitos fundamentais previstos em nossa Constituição.

Em suma, o propósito do inciso LVII é proteger o indivíduo contra o poder punitivo do Estado antes de ser considerado culpado, nos termos da lei. Isso só acontece após o esgotamento dos recursos judiciais pela defesa, e deve seguir rigorosamente as normas processuais. Obviamente, há casos em que a restrição de direitos pode ocorrer antes da conclusão do julgamento, como o da prisão cautelar — fundamentada não na culpa, mas em riscos concretos (de fuga, de obstrução da justiça etc.).  

O INCISO LVII NA PRÁTICA

Escultura "A Justiça" | Princípio da presunção da inocência - Artigo Quinto
Escultura “A Justiça” em frente ao STF, Praça dos Três Poderes, Brasilia, DF, Brasil. | Princípio da presunção da inocência – Artigo Quinto

 

O Código de Processo Penal (CPP) é o responsável por regulamentar o direito constitucional ao devido processo legal e garantir que a presunção de inocência seja respeitada na prática, principalmente no que tange à pena de prisão. Seu artigo 283 determina que “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado”.

Contudo, existe a possibilidade de aplicação de medidas cautelares, que podem restringir a liberdade de ir e vir e direitos pessoais do indivíduo antes que o processo seja concluído, sem que isso implique violação ao princípio da presunção de inocência, como:

  • prisões preventiva ou temporária (restringe a liberdade);
  • monitoramento por tornozeleira eletrônica ou outro dispositivo (restringe a liberdade e a intimidade);
  • proibições de se ausentar da comarca ou de se aproximar de determinadas pessoas (restringe a liberdade);
  • interceptação telefônica (restringe a intimidade);
  • sequestro de bens (restringe o patrimônio).

Além disso, outro ponto que deve ser levado em consideração é a definição conceitual da expressão “trânsito em julgado”. Conforme ensinam a doutrina especializada e a jurisprudência predominante, esse conceito refere-se ao esgotamento total dos recursos possíveis.

O posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a presunção de inocência e a prisão após a conclusão do processo foi alterado ao longo do tempo. Em 2016, o STF alterou a jurisprudência para admitir a execução da pena depois da condenação em 2ª instância e antes do trânsito em julgado. 

Entretanto, o tribunal voltou atrás pouco tempo depois, em novembro de 2019, quando reafirmou que a execução da pena antes do trânsito em julgado não é possível, em respeito ao princípio da presunção de inocência. 

O entendimento anterior a 2016, e que voltou a vigorar a partir do julgamento de 2019, embasa-se na premissa de que o artigo 283 do Código de Processo Penal prevê apenas duas espécies de prisão: a prisão-pena e a prisão cautelar. 

A prisão cautelar, aplicada durante o processo, não possui correlação com eventual culpa do acusado, mas sim com circunstâncias processuais específicas (flagrante, risco de fuga, risco à segurança pública, entre outros). Já a prisão-pena, que pressupõe sua culpabilidade, poderia apenas ser aplicada após o trânsito em julgado. Nesse sentido, resta claro que a execução provisória de uma prisão-pena significaria a antecipação da formação de culpa em relação ao indivíduo, ao arrepio do que prevê a Constituição.

Em sentido oposto, o posicionamento aplicado pelo STF entre 2016 e 2019 parte do pressuposto de que a prisão em 2ª instância não violaria a presunção de inocência. Isso porque os recursos aos tribunais superiores não podem reanalisar as provas acerca dos fatos que levaram à condenação. Tiraria-se, assim, a razão para adiar o cumprimento da sentença. 

Com efeito, os tribunais superiores – como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF – não analisam fatos, somente avaliam se a interpretação de normas legais ou constitucionais aplicada aos processos é a correta. Porém, com frequência, a  análise de adequação da interpretação das leis e da Constituição aos processos pode conduzir à alteração de penas. Isso inclui anulações de sentenças ou  absolvições, e por isso o constituinte optou por garantir esse direito até o trânsito em julgado da condenação.

Apesar disso, com a decisão recente do STF, existe uma segurança jurídica maior de como o princípio da presunção de inocência deve ser aplicado. Dessa forma, garante-se o respeito à igualdade, à liberdade, à dignidade humana, à ampla defesa e à nossa Constituição.

CONCLUSÃO

A presunção de inocência é uma garantia constitucional fundamental do Estado Democrático de Direito e é importante para preservar a dignidade do cidadão, principalmente no curso do processo criminal. 

O debate sobre esse princípio e a sua aplicação tem dividido juristas e a própria sociedade e representa um obstáculo à segurança jurídica que dele deveria emanar. Não é impossível que o entendimento atual do STF volte a ser alterado nos próximos anos ou que haja um movimento no Congresso Nacional para promover essa mudança em breve. Por isso, como cidadãos, é importante ficarmos atentos ao que a Constituição define e ao que está sendo debatido pela sociedade. 

  • Esse conteúdo foi publicado originalmente em julho/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.

 

 

Sobre os autores:

Felipe Castro Batista dos Santos

Advogado de Gestão patrimonial, Família e Sucessões do Mattos Filho

Inara Chagas

Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.

Mariana Mativi


Fontes:

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