Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
22 de abril de 2020

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Inciso XLVI – Individualização das penas

"A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos"

INCISO XLVI – INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

Você sabia que a Constituição Federal estabelece tipos de pena para aqueles que forem condenados, e determina que cada crime merece uma punição individualizada à luz de sua gravidade e circunstâncias? Essa foi uma das formas que a assembleia constituinte achou para regular o poder punitivo do Estado e, assim, respeitar os direitos humanos. 

Quer saber mais sobre como a Constituição define este direito e por que ele é tão importante, bem como a sua história e sua aplicação prática? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série do projeto “Artigo Quinto”.

Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa a tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros.

O QUE É O INCISO XLVI?

O inciso XLVI do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:

a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos;

O inciso XLVI do artigo 5º da Constituição define que cabe à lei estabelecer quais critérios nortearão o juiz na aplicação de penalidades aos condenados por um crime. 

Trata-se do princípio da individualização da pena, segundo o qual a punição imposta a um indivíduo deve guardar proporção com a sua conduta e, também, levar em conta fatores como as circunstâncias do crime. Deve-se considerar, entre outros, o meio usado para sua execução e a personalidade do agente (se ele comete um crime pela primeira vez ou é reincidente). De forma exemplificativa, o inciso cita algumas penalidades possíveis de serem aplicadas:

  • privação ou restrição da liberdade (prisão);
  • perda de bens;
  • multa;
  • prestação social alternativa (serviço comunitário);
  • suspensão ou interdição de direitos (por exemplo, do direito de dirigir, do exercício de uma dada atividade profissional etc.). 

Além dessas, outras penas são possíveis, desde que estabelecidas previamente ao fato pela lei. Os exemplos apenas demonstram o caminho adotado para penas mais humanitárias, com o objetivo não apenas de punir condutas criminalizadas de maneira adequada e proporcional, mas também de futuramente reinserir essas pessoas na sociedade.

Ademais, o  inciso XLVII do artigo 5º, proíbe  penas de morte (salvo em caso de guerra declarada contra agressão estrangeira), além de penas de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e penas cruéis – como tortura.

O legislador deve prever as situações que se caracterizam como ilícitos penais (roubo, homicídio etc.) de forma taxativa e clara, evitando fórmulas genéricas. Deve também  estabelecer penas adequadas e razoáveis. Busca-se, assim,  impedir a aplicação de penas arbitrárias, dissociadas das condutas praticadas pelos sujeitos incriminados. 

O bem maior protegido por essa definição é a liberdade do indivíduo, sendo a pena um instrumento de controle social criado pelo Estado para que somente ele possa estabelecer legitimamente uma penalidade (na figura do legislador), atribuir uma pena a um indivíduo e executá-la (na figura do juiz).

A individualização da pena ocorre em três fases: legislativa, judicial e executória, todas importantes do ponto de vista da proteção aos direitos humanos, pois visam garantir segurança jurídica e a proporcionalidade das punições. Na primeira, o legislador estabelece como cada delito será punido e os parâmetros mínimo e máximo da pena a ser aplicada (por exemplo, de um a quatro anos de reclusão), conforme o ato praticado e o bem jurídico – o interesse ou direito de outrem – que a conduta criminosa prejudicou. 

Além disso, o legislador estabelece as circunstâncias que podem aumentar ou diminuir a reprovabilidade da conduta, como as atenuantes e agravantes ou as causas de aumento e diminuição da pena. 

Na segunda, o juiz – baseado na legislação em vigor – verifica, em cada caso concreto, as circunstâncias da prática do ato; os motivos, os antecedentes e o grau de culpa do agente; o comportamento da vítima quando do cometimento do ato (por exemplo, se houve ou não alguma provocação anterior); e, ainda, a presença de circunstâncias agravantes ou atenuantes e de causas de aumento ou diminuição de pena, todas previstas no Código Penal e legislação complementar. Só, então, ele prossegue à aplicação da pena, dentro dos parâmetros estabelecidos pela lei, de forma fundamentada. 

Por fim, na terceira fase, a condenação é concretamente efetivada, com a execução da punição imposta na sentença. Como se costuma dizer, a liberdade de uma pessoa termina onde começa a de outra. Assim, a lei trata de estabelecer as consequências jurídicas (penas) para cada ofensa a direitos alheios que seja grave a ponto de caracterizar um crime. 

Esse poder por parte do Estado, logicamente, requer cautela para prevenir  situações de injustiça, nas quais a punição pode ser mais grave que a própria ofensa anterior. Isso poderia deslegitimar  o poder estatal de punir cidadãos em nome do interesse social.

HISTÓRICO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DAS PENAS

No Brasil, no contexto do longo processo histórico de constitucionalização dos direitos fundamentais, o direito de todo cidadão à individualização da pena é relativamente recente. A primeira Constituição republicana, de 1891, a Constituição de 1934 e a Constituição de 1937 nada trouxeram sobre esse direito. Mas a questão foi tratada na legislação infraconstitucional, estando presente nos Códigos Penais de 1830 e 1890.

A Constituição de 1946 trouxe pela primeira vez, no seu artigo 141, § 29, a previsão de que “a lei penal regulará a individualização da pena e só retroagirá quando beneficiar o réu”. Depois disso, a Constituição de 1967 dispôs sobre o princípio de forma bastante sintética: “nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente. A lei regulará a individualização da pena”. 

Então, a Constituição de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã, fundamentada em princípios democráticos e com ênfase no princípio da dignidade da pessoa, finalmente editou o artigo 5º, inciso XLVI, na forma como o conhecemos hoje. 

A IMPORTÂNCIA DO INCISO XLVI

Como dito anteriormente, este dispositivo consagra que o juiz deve respeitar as penas estabelecidas pelo legislador, bem como sempre fazer uma análise da situação vivenciada pelo agente do crime à luz do que a lei estabelece. 

Dessa maneira, é criada uma sanção personalizada e justa para cada indivíduo. O juiz deve, ao individualizar a pena, examinar com detida atenção os elementos que compõem o delito e as circunstâncias de sua prática, para aplicar, de forma justa e sempre fundamentada, a pena necessária, compatível e suficiente para reprovação do agente que praticou o crime. Ainda que um mesmo crime tenha sido praticado por mais de um indivíduo, faz-se necessário individualizar a pena de cada um deles, pois as circunstâncias de suas condutas e suas contribuições para a concretização do crime podem ser distintas.

Segundo informações coletadas em 2018 pelo Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP 2.0), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o tipo de crime que mais leva pessoas à prisão no Brasil é o roubo, representando 27% dos crimes cometidos pela população carcerária. Depois, o tráfico de drogas (24%) e o homicídio (11%). Por fim, ainda de acordo com a pesquisa, à época, havia no Brasil 262.983 pessoas condenadas ao regime fechado, 85.681 cumprindo pena no regime semiaberto e 6.078 no regime aberto.

O grande número de pessoas no regime fechado sugere que o princípio de individualização da pena pode não estar sendo observado por juízes ou por legisladores. Não são raros os casos de condenados, cujas penas teriam de ser cumpridas em regime inicial semiaberto ou aberto, serem expostos a regimes fechados, por conta da falta de recintos apropriados para o cumprimento da pena no regime estabelecido e de uma cultura excessivamente punitivista dos aplicadores da lei.

Dessa forma, acaba-se por cometer exatamente os excessos que a Constituição pretendeu evitar, dificultando a reintegração social de apenados e gerando mais violência e maiores custos ao erário. Além disso, o  excesso de prisões facilita o recrutamento e a expansão das organizações criminosas. 

Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, em 2016, o Recurso Extraordinário (RE) n. 641.320, em que se discutiu a impossibilidade de cumprimento de pena em regime mais gravoso que aquele sentenciado. A principal consequência desse julgamento foi a ordem para que o CNJ adotasse providências para estruturação do cadastro nacional de presos, como vem sendo feito. Ele tem como função registrar dados relevantes sobre os detentos, incluindo informações sobre suas penas e regimes de cumprimento, bem como eventuais progressões e regressões de regime. Com o cadastro nacional de presos, as autoridades do sistema judiciário e prisional podem ter acesso rápido e atualizado às informações sobre o regime de cada sentenciado, o que ajuda a garantir que a execução da pena seja realizada de acordo com a decisão judicial e respeitando os direitos do detento.

O INCISO XLVI NA PRÁTICA

O Código Penal, especialmente em seu artigo 59, estabelece uma espécie de roteiro a ser seguido pelo juiz no processo de individualização da pena, exigindo do julgador análise ponto por ponto para atender a um dos preceitos mais importantes do direito: o dever de fundamentar a decisão e individualizar a imposição de uma pena. Em primeiro lugar, o juiz deverá aferir, à luz da prova produzida no processo: 

  1. a culpabilidade do agente, envolvendo um estudo do seu comportamento no momento do delito; 
  2. os seus antecedentes, com a análise do seu histórico de vida; 
  3. a sua conduta social, com base em seu modo de vida e em seus círculos sociais; e
  4. a sua personalidade.

Em seguida, o juiz examinará as circunstâncias judiciais de natureza objetiva, estabelecidas pela lei, que tratam do tipo penal em que o agente foi enquadrado (roubo, homicídio etc.):

  1. motivos do crime; 
  2. suas circunstâncias (o modo de agir, o meio utilizado, as condições de tempo e de lugar); 
  3. consequências do crime (qual o dano causado); e
  4. comportamento da vítima (se houve, por exemplo, provocação anterior indevida).

Em seguida, o juiz fará uma opção justificada por uma pena-base, conforme o disposto na lei e conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Em outras palavras, o crime será caracterizado e a ele será determinada uma pena correspondente. 

Fixada a pena-base, serão examinadas as circunstâncias legais previstas no Código Penal: as agravantes, dos artigos 61 e 62, e as atenuantes, dos artigos 65 e 66. Ainda, será preciso verificar a possível incidência de causas legais de aumento e/ou de diminuição de pena, que variam para cada delito e podem estar previstas em diferentes leis penais. 

Por fim, o último passo do processo de individualização da pena será  a definição do regime inicial de cumprimento da pena.

Um exemplo de situação em que se homenageou o direito à individualização da pena foi a decisão tomada pelo STF no julgamento do Habeas Corpus n. 82.959-7. Nele, foi declarada a inconstitucionalidade do § 1º do inciso II do artigo 2º da Lei n. 8.072/1990. 

Esse dispositivo impossibilitava a progressão de regime (de um mais rígido, como o fechado, para um menos rígido, como o semiaberto) para aqueles que praticaram crimes hediondos, aos quais, de qualquer forma, já se impõem penas mais graves. De acordo com o ministro Marco Aurélio, relator do HC:

a principal razão de ser da progressividade no cumprimento da pena não é em si a minimização desta, ou o benefício indevido, porque contrário ao que inicialmente sentenciado, daquele que acabou perdendo o bem maior que é a liberdade. Está, isto sim, no interesse da preservação do ambiente social, da sociedade, que, dia-menos-dia receberá de volta aquele que inobservou a norma penal e, com isso, deu margem à movimentação do aparelho punitivo do Estado. A ela não interessa o retorno de um cidadão, que enclausurou, embrutecido.

O poder legislativo adequou a norma legal à referida decisão do STF ao editar a Lei n. 11.464/2007, que deu nova redação ao artigo 2º, inciso II, da Lei n. 8.072/1990. Passou, assim,  a prever a progressão de regime aos condenados por crimes hediondos, estabelecendo para eles critérios mais restritivos, mas garantindo o direito à progressão como um valor fundamental do sistema de cumprimento de penas. 

Uma das mais recentes alterações em relação à legislação que trata dos crimes hediondos consistiu na Lei n. 13.769/2018, que estabeleceu fração de um oitavo de cumprimento da pena para a progressão de regime no caso de mulheres gestantes ou que forem mães ou responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência. A modificação legislativa delineou ainda outros requisitos para que essas mulheres façam jus à essa espécie de progressão de regime. São eles: 

  1. não ter cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;
  2. não ter cometido o crime contra seu filho ou dependente;
  3. ser primária e ter bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento; e
  4. não ter integrado organização criminosa. 

A dificuldade para a plena efetivação do direito à progressão da pena  está, sobretudo, em uma cultura que não vê as cidadãs e os cidadãos presos como sujeitos de direito e, portanto, protegidos pelos mesmos direitos humanos e fundamentais de qualquer pessoa. 

Essa é uma questão cultural e moral, que também atinge juízes e outros agentes públicos que trabalham no sistema de justiça e carcerário. Além disso, muitas vezes, a falta de sintonia entre as decisões judiciais e a realidade daqueles que estão sendo julgados ocorre pela carência de recursos públicos investidos no sistema de justiça criminal. 

Isso impossibilita a análise caso a caso – por não haver, por exemplo, juízes, defensores públicos, promotores, agentes penitenciários suficientes, tampouco estrutura adequada de funcionamento de fóruns e estabelecimentos prisionais. 

Nesses casos, são necessárias persistência e adoção das medidas judiciais cabíveis para reverter quadros de injustiça. Porém, não são todas as camadas da população que têm amplo acesso à Justiça, o que acaba gerando realidades distorcidas, como a que os dados do CNJ apontam.

CONCLUSÃO

O inciso XLVI do artigo 5º é de extrema importância para que as penas sejam aplicadas de maneira adequada e justa, visto que é por meio dele que se busca garantir que a resposta punitiva estatal àqueles que cometerem algum delito seja proporcional à conduta, tendo como norte o respeito aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana, como prevê nossa Constituição.

  • Esse conteúdo foi publicado originalmente em abril/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.

Autores:
  1. Mariana Mativi
  2. Matheus Silveira
  3. Rogério Taffarelo

Fontes:
  1. Instituto Mattos Filho;
  2. Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;

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