PROIBIÇÃO DA PRISÃO CIVIL POR DÍVIDAS
O inciso LXVII do artigo 5º da Constituição define a regra geral de que não haverá prisão civil por dívidas, ou seja, caso algum indivíduo deva para uma loja, por exemplo, este não poderá ser preso, embora esteja cometendo um ilícito civil (não criminal). Contudo, o mesmo inciso traz duas exceções a essa regra, as quais serão tratadas mais adiante no texto. Além disso, trataremos sobre a diferenciação entre prisão civil e prisão-pena, de grande relevância para o entendimento do inciso em questão.
Quer saber mais sobre como a Constituição define este direito e por que ele é tão importante, bem como a sua história e como ele é aplicado na prática? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série do projeto “Artigo Quinto”.
Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros.
DESCOMPLICANDO O INCISO LXVII
O inciso LXVII do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:
não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;
A garantia contida neste inciso estabelece uma regra geral e autoriza duas exceções. Primeiramente, o texto constitucional declara a regra geral: “não haverá prisão civil por dívida”. Isto é, ninguém poderá ser preso civilmente por conta de uma dívida.
Depois, são anunciadas as exceções permitidas pela Constituição: “salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Em outras palavras, a legislação permite a possibilidade de prisão civil para casos em que não há o pagamento de pensão alimentícia devida ou quando alguém não cumpre suas responsabilidades como depositário.
Para entender o que seria um depositário infiel, primeiro é necessário entender o conceito de depositário fiel. Sob a perspectiva do direito privado (direito civil e direito comercial), o depositário fiel é aquele que assume a guarda de determinado bem que não lhe pertence, devolvendo-o quando for solicitado por quem de direito.
Um exemplo de depositário fiel é o devedor de um financiamento de carro. É comum que as pessoas financiem bens de alto valor, como carros, dando o próprio veículo como garantia em caso de inadimplência. No entanto, apesar de o veículo ser de propriedade da financiadora até o adimplemento total, ou seja, o pagamento completo do financiamento, o próprio devedor detém, enquanto isso, a posse do veículo, atuando como seu depositário.
Assim, se após deixar de pagar o financiamento o devedor não devolver o veículo à financiadora, ele se torna seu depositário infiel. Portanto, um depositário infiel é aquele que não devolve o bem ao proprietário uma vez que seja demandado.
Contudo, no tocante à prisão do depositário infiel, o Supremo Tribunal Federal (STF), com base no julgamento do Recurso Extraordinário n. 466.343/SP, editou a Súmula Vinculante n. 25, dispondo que “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, seja qual for a modalidade do depósito”.
Dessa forma, por mais que a permissão para prisão civil de depositários infiéis esteja prevista no inciso LXVII do artigo 5º, foi decidido que tal ação não pode ser praticada pelo Estado brasileiro, por estar em desacordo com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Isso significa que a única possibilidade de prisão civil válida na legislação brasileira é a de inadimplência por pensão alimentícia.
Vale esclarecer que a prisão civil, no sistema jurídico brasileiro, não é considerada uma pena, mas um meio processual que se vale da força estatal para que o indivíduo cumpra com uma obrigação.
Desse modo, a prisão civil não se origina de uma infração penal (em que o acusado será julgado por um juiz criminal e, posteriormente, acusado ou absolvido). Origina-se, sim, do não cumprimento de uma obrigação civil – o pagamento de uma pensão alimentícia.
HISTÓRICO DESSA GARANTIA
As Constituições de 1824, 1891 e 1937 nada dispuseram sobre o tema da prisão civil, mas a legislação infraconstitucional vigente na época previa a sua existência em diversos diplomas legais, como no caso do antigo Código Comercial de 1850 (art. 20, 90 e 284) e do Código Civil de 1916 (art. 1.287: prisão civil do depositário infiel).
Por sua vez, sucessivos textos constitucionais passaram a restringir a prisão civil, nas seguintes situações:
- Constituição de 1934, artigo 113, § 30: vedou a prisão por dívidas, multas ou custas.
- Constituição de 1946, artigo 141, § 32: estabeleceu a vedação de prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo nos casos de depositário infiel e de inadimplemento de obrigação alimentar na forma da lei. Tal dispositivo foi reproduzido pela Constituição de 1967, em seu artigo 150, § 17, e pela EC nº 1/1969, em seu artigo 153, § 17.
A IMPORTÂNCIA DO INCISO LXVII
A proibição da prisão civil por dívidas relaciona-se ao direito à liberdade de locomoção – o “direito de ir e vir” –, visto que a inadimplência e a maior parte dos ilícitos civis protegem interesses puramente patrimoniais. Isso porque esses ilícitos, geralmente, não são considerados condutas tão reprováveis a ponto de justificar a restrição desse direito fundamental.
Imagine que você comprou um celular e decidiu parcelar o valor total em seis vezes, mas não pôde pagar todas as parcelas da compra. Caso o inciso LXVII do artigo 5º não existisse, seria possível que a legislação autorizasse a loja a abrir um processo judicial que resultasse na sua prisão até que a dívida fosse paga.
Ora, se alguém não tem condições de arcar com uma dívida, dificilmente passaria a ter condições estando encarcerado. E se tiver condições, mas se recusa a pagar, existem maneiras menos gravosas de conseguir a satisfação dessa dívida, agindo sobre o patrimônio do devedor. Dessa maneira, fica claro o quão desproporcional, injusta e arcaica seria uma sociedade em que o Estado pudesse prender cidadãos por dívidas.
Agora, discutiremos a importância da existência de exceções a essa regra, como o caso da prisão civil do devedor de alimentos, e a relevância da decisão do STF que proibiu a prisão civil do depositário infiel.
PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR DE ALIMENTOS
O direito a alimentos encontra fundamento nos princípios constitucionais da dignidade humana (art. 1º, inciso III), da solidariedade (art. 3º) e, no caso da relação entre filhos e genitores, da proteção integral à criança e ao adolescente e no dever de assistência familiar (arts. 227 e 229).
Nesse contexto, os alimentos têm como objetivo suprir as necessidades daqueles que não têm condições de prover por si mesmos, seja devido à idade, doença ou outras incapacidades que os impeçam de obter os recursos necessários para uma vida digna.
Logo, segundo o princípio da solidariedade familiar, que deve existir também entre ex-cônjuges ou ex-companheiros, os parentes deverão se responsabilizar por eventual impossibilidade de acesso à alimentação adequada.
Portanto, o direito brasileiro reconhece como constitucional a prisão do devedor inadimplente de prestação alimentícia. Esta é uma forma de coerção visando ao pagamento de obrigação legal para garantir o direito a uma vida digna do beneficiário, que não tem meios de manter a sua própria sobrevivência.
PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), assinada pelo Brasil em 1969 e incorporada à legislação brasileira por meio do Decreto n. 678/1992, veda, em seu artigo 7, item 7, toda forma de prisão civil, sendo a única exceção a prisão do devedor de alimentos.
Em observância ao comando da Convenção e aos demais princípios constitucionais, o marco divisório quanto à prisão do depositário infiel na jurisprudência do STF foi, como dito, o Recurso Extraordinário n. 466.343/SP. Ele proibiu a prisão civil do depositário infiel, que até então era admitida na legislação infraconstitucional brasileira, tal como autorizado pela Constituição.
Uma das questões enfrentadas naquele julgamento foi saber quais os efeitos do Pacto de San José sobre a previsão contida no inciso LXVII do artigo 5º, que permitia a prisão por dívida em hipótese não admitida pelo tratado internacional. A resposta a essa questão pode ser encontrada no voto do ministro Gilmar Mendes na ocasião do julgamento do Recurso:
diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na CF/1988, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da CF/1988 sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, LXVII) não foi revogada […], mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria […]. Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. […] Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao PIDCP [Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos] (art. 11) e à CADH [Convenção Americana de Direitos Humanos] – Pacto de São José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, LXVII, da CF/1988, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel.
Ou seja, o que de fato aconteceu não foi a modificação da norma constitucional, mas apenas a não aplicação da exceção nela prevista, uma vez que o tratado internacional de direitos humanos se sobrepôs à legislação infraconstitucional que previa o procedimento da prisão do depositário infiel.
O INCISO LXVII NA PRÁTICA
O texto da atual Constituição dispõe acerca da inclusão dos tratados de direitos humanos (art. 5º, § 2º) no rol dos direitos fundamentais. No plano do direito internacional dos direitos humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, no seu artigo 11, estabelece que “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”. Já a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no já citado artigo 7, item 7, consagra que “Ninguém deve ser detido por dívidas”.
Assim, diante de dívidas contratuais, é admitido procurar a Justiça para fazer valer o direito de receber os valores correspondentes, mas não por meio de constrangimento ao direito de ir e vir do devedor, e sim por meio de execução patrimonial (o leilão de bens do devedor para pagar o credor). Contudo, vale reforçar que os referidos textos não limitam os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.
CONCLUSÃO
Ao longo deste texto, sobre o inciso LXVII do artigo 5º da nossa Constituição, entendemos um dos fundamentos da nossa sociedade democrática – a inconstitucionalidade da prisão por dívida, com exceção da alimentícia – que é de extrema importância para a manutenção da liberdade de todos os cidadãos.
- Esse conteúdo foi publicado originalmente em setembro/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Autores:
- Fernanda Araújo José
- Mariana Mativi
- Matheus Silveira da Silva
Fontes:
- Instituto Mattos Filho;
- Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;
- Prisão – DireitoNet