Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
1 de outubro de 2019

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Inciso XXI – Representação associativa

"As entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm representatividade para representar seus filiados judicialmente ou extrajudicialmente”

REPRESENTAÇÃO ASSOCIATIVA: A ASSOCIAÇÃO EM DEFESA DE SEUS MEMBROS

O direito de representação associativa ou, mais especificamente, o direito de uma associação representar judicial ou extrajudicialmente seus associados é assegurado pelo inciso XXI do artigo 5º da Constituição de 1988.

O inciso XXI, ao lado de outros quatro incisos — inciso XVII (Liberdade de Associação), inciso XVIII (Livre Constituição de Associações), inciso XIX (Dissolução de Associações) e inciso XX (Direito de Não se Associar) — para os quais temos posts específicos, constitui o arcabouço da Liberdade de Associação no artigo 5º da Constituição. 

Mas o que significa e qual a importância de uma associação poder representar seus associados? Quais os critérios e as polêmicas em torno disso? É para explicar isso e muito mais que fizemos este texto para você!

Para conhecer os outros direitos assegurados pela nossa Constituição, confira a página do Artigo Quinto, um projeto desenvolvido pelo Instituto Mattos Filho em parceria com a Civicus e a Politize! para explicar os direitos fundamentais de todos os cidadãos do país.

O DIREITO À REPRESENTAÇÃO ASSOCIATIVA

O artigo 5º, em seu inciso XXI, afirma que:

XXI – As entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm representatividade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente

Como já apresentamos em outros posts do projeto Artigo Quinto, uma associação é uma pessoa jurídica composta por um grupo de pessoas que se reúne para atuar e desenvolver atividades de interesse comum. Desse modo, alguns exemplos são associações de moradores, associações de bairro, associações de pais e mestres, associações filantrópicas, cooperativas, sindicatos, partidos políticos, empresas, entre outros. 

Agora que já relembramos o que é uma associação, fica mais fácil compreender o significado do inciso XXI. Nele está prevista a possibilidade de representação associativa, ou seja, de uma associação representar seus membros tanto em questões judiciais (aquelas levadas a algum tribunal ou autoridade de justiça), quanto em questões extrajudiciais (que não são levadas à justiça, mas mediadas para buscar soluções conciliatórias ou amigáveis).

O inciso XXI confere legitimidade para esse tipo de associação. Dessa forma, ela pode, em nome próprio, defender interesses coletivos (do grupo todo) ou interesses individuais dos associados. 

Um exemplo seria uma empresa que fornece más condições de trabalho a seus empregados. A associação sindical que representa esses trabalhadores poderia, em nome deles, entrar com uma ação judicial ou negociar melhores condições com a empresa. Isso poupa os trabalhadores de realizar tal processo individualmente. Além disso, também aumenta a eficiência das demandas do coletivo, que seria menor caso elas fossem negociadas ou judicializadas individualmente.

Para possibilitar a representação, no entanto, o inciso XXI exige a autorização dos associados.. Isso quer dizer que a associação não pode decidir por si só entrar com uma ação em nome de seus membros. 

Mas como deve ser essa autorização? E se uma associação consegue uma vitória judicial, quem é afetado por ela? Esses foram alguns dos temas tratados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

RE n. 573.232/2014

Em 2014, coube ao STF julgar o Recurso Extraordinário (RE) n. 573.232, proposto pela União. Conforme nota do STF, ele surgiu por conta de a União ser contrária a uma decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que “estendeu a todos os associados da Associação Catarinense do Ministério Público (ACMP) o direito de executar uma decisão que garantiu correção de 11,98% sobre a gratificação paga aos promotores eleitorais, retroativamente a março de 2014”.

Entendia-se, com isso, que a presença de uma cláusula autorizando a representação associativa no estatuto da associação seria suficiente para garantir que todos pudessem ser representados por ela. Dessa forma, todos poderiam se beneficiar da decisão judicial. No caso da ACMP, isso significaria que todos os promotores eleitorais poderiam se beneficiar da correção de 11,98%.

No entendimento da maioria do STF, no entanto, embora a correção estivesse estendida pelo acórdão a todos os promotores eleitorais da ACMP, a ação que resultou nessa decisão foi proposta em nome de associados que deram autorizações individuais expressas. Logo, a sentença somente se referia a eles. Assim, os associados que não deram autorizações individuais não poderiam ser representados.

Na conclusão do então ministro Teori Zavascki, a própria ACMP entendia que, no caso das associações em sentido estrito, disciplinadas pelo artigo 53 do Código Civil, “[a] simples previsão estatutária seria insuficiente para legitimar a associação, razão pela qual ela própria [a associação] tomou o cuidado de munir-se de autorizações individuais”.

Assim, o STF entendeu que a decisão do TRF-4 só poderia se aplicar aos associados que deram autorização individual para serem representados. Desde então, a jurisprudência sobre representação associativa entende que um estatuto é insuficiente para garantir representatividade. Assim, é indispensável a autorização dos associados que queiram ser representados, seja individualmente, seja por meio de uma assembleia dentro da associação, registrada em ata. 

RE n. 612.043/2017

Em outra decisão, em 2017, dessa vez no RE n. 612.043, o STF tratou da abrangência, isto é, do alcance das decisões judiciais em ações de representação associativa. 

A Corte entendeu que, para que um associado se beneficie de uma decisão judicial, é preciso que: 

(i) o indivíduo tenha se associado antes de a ação ser promovida – por exemplo, se um tribunal julgar uma indenização, e uma pessoa se associar apenas depois do início ação, ela não pode receber essa indenização; 

(ii) o indivíduo seja residente na jurisdição do órgão julgador – por exemplo, um indivíduo que mora no Amazonas não pode se beneficiar de uma decisão promovida por uma associação e julgada por um tribunal do Paraná.

AgR no RE n. 555.720/2008

O STF entende que os sindicatos são espécies associativas que detêm legitimidade ativa para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais homogêneos dos integrantes da categoria que representam, independente da vontade dos substituídos e sem a necessidade de prévia autorização destes. 

Tal prerrogativa decorre da previsão do artigo 8º, inciso III, da Constituição de que “ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas”.  

A HISTÓRIA DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO ASSOCIATIVA

Cinco mulheres negras e executivas debatendo | Representação associativa – Artigo Quinto
A representação associativa é um reconhecimento dos direitos coletivos e dos direitos difusos presentes nas associações | Representação associativa – Artigo Quinto

Assim como o direito de não se associar, tratado no inciso XX, o direito de representação associativa é recente na jurisdição brasileira. Foi só com a Constituição de 1988 que ele passou a ser definitivamente assegurado.

Se lembrarmos que o direito de livre associação está expresso no catálogo de direitos fundamentais desde 1891, a contemporaneidade do direito de representação associativa fica ainda mais evidente. Enquanto a liberdade de associação tem 128 anos no Brasil, o direito de representação associativa tem apenas 31 anos.

Nessa linha, o direito de representação associativa foi fruto de um longo processo de avanços na liberdade de associação. As Constituições de 1934, 1937 e 1946 deram passos importantes ao impedir a dissolução compulsória de associações. A partir delas, determinou-se que as associações só podem ser dissolvidas por decisão judicial. 

A Constituição de 1988, enfim, não só mantém a liberdade de associação como amplia seu alcance ao vedar interferência estatal e restringir o poder de dissolução compulsória às decisões judiciais com trânsito em julgado. Além disso, a Constituição Cidadã, em seu inciso XXI, permite que as associações representem os interesses de seus associados.

 Ao sustentá-la, a Constituição de 1988 consolidou uma previsão da Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985), publicada três anos antes. O artigo 5º dessa lei prevê que associações com mais de um ano de existência têm legitimidade para propor ações.

Dessa forma, o inciso XXI reconheceu os direitos coletivos (de um grupo ou categoria específica, como uma associação de classe) e os direitos difusos (de natureza indivisível, cujos titulares são indeterminados) das associações e reforçou um de seus pilares, o do agrupamento de interesses comuns.

 QUAL A RELEVÂNCIA DA REPRESENTAÇÃO ASSOCIATIVA?

Conforme afirma Luis Eduardo Patrone Regules a representação associativa é um meio para a defesa de outros direitos e interesses. Ela permite que um único ente (a associação) possa atuar na defesa de uma comunidade inteira (seus membros).

A ideia, com isso, é garantir a efetividade de outros direitos constitucionais dos membros da associação. Em termos práticos, uma associação tem mais poder de barganha em uma mesa de negociação do que um indivíduo isoladamente. 

Assim, permitir que a associação represente o grupo aumenta o equilíbrio entre as partes quando há assimetria de poder. Por exemplo, uma associação de moradores, ao entrar com uma ação contra o município, traz maior visibilidade e pressão do que um morador isolado. Igualmente, um sindicado com milhares (ou milhões) de trabalhadores certamente terá mais sucesso ao negociar com patrões do que teria um funcionário só.

Além disso, permitir a representatividade associativa gera economia processual. Em outras palavras, em vez de cada morador do bairro ou trabalhador de uma categoria entrar com uma ação contra o município, apenas a associação de moradores ou o sindicato entra, gerando melhor aproveitamento de recursos. 

Evita-se, também, decisões incoerentes entre os  moradores ou trabalhadores. Se, para o mesmo caso, tivéssemos uma decisão favorável a um morador (ou trabalhador) em uma ação individual e uma favorável ao município (ou patrões) em outra, isso poderia gerar incongruências na jurisprudência. Contudo, quando a ação é proposta pela associação, temos apenas uma decisão, em uniformidade jurisprudencial

São vários os exemplos que demonstram a relevância da representação associativa. Em um deles, no âmbito do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), na Ação Rescisória (AR) n. 497/BA, de 1998, a Fundação de Assistência Social à Comunidade de Pescadores recebeu autorização para defender seus membros contra a construção de uma fábrica de celulose. A Fundação argumentou que o empreendimento degradaria o ecossistema em que viviam os pescadores, ainda que a defesa do meio ambiente não estivesse explicitada no estatuto da associação. Sem a associação, os pescadores dificilmente teriam a mesma influência na discussão.

POLÊMICAS EM TORNO DA REPRESENTAÇÃO ASSOCIATIVA

Atualmente, a grande polêmica em torno do direito de representação associativa está na forma da autorização, a qual precisa ser expressa para determinados tipos de associação, dada pelos associados para que a associação possa os representar.

Como citado, o STF, no julgamento do RE n. 573.232, determinou duas possibilidades para a representação associativa em associações em sentido estrito. A primeira delas é a autorização individual, ou seja, cada associado oferece um documento autorizando que a associação o represente. A segunda possibilidade é a decisão de uma assembleia, registrada em ata, com o nome dos que nela participaram. 

Essa percepção do STF, contudo, não é unânime. Existem aqueles para os quais a mera presença de uma cláusula no estatuto já seria suficiente para garantir a autorização para que a associação represente seus associados. 

Um nome importante nesse sentido é Camilo Zufelato, professor da Universidade de São Paulo (USP). Ele entende que a decisão do STF no julgamento do RE n. 573.232 prejudica o próprio sentido coletivo das associações, tornando-as mais individualizadas. Nas palavras dele: 

a exigência de autorização transforma o processo coletivo em verdadeiro processo individual […] A nova jurisprudência do STF está promovendo uma conversão de um processo coletivo em processo individual, por meio de exigência de autorizações individuais, que inviabiliza um verdadeiro tratamento coletivo da matéria discutida (grifos nossos).

Nesse sentido, Zufelato concorda com a interpretação que o STF dava para a representação associativa antes de 2014. Essa interpretação era baseada no julgamento da Ação Ordinária (AO) n. 152, em 2000.

 Nele, entendeu-se que a autorização dos estatutos, bem como a de assembleia-geral, seria suficiente para garantir a representação associativa. Não se falava, portanto, em autorização individual, tida como insuficiente. Nas palavras do então ministro Sidney Sanches: “as entidades associativas recebem autorização dos estatutos ou da assembleia-geral. Não é possível exigir autorização de cada um, individualmente, porque, nesse caso, a própria finalidade da associação se esvaziaria”.

De uma forma ou de outra, contudo, a decisão do STF no RE n. 573.232 é a válida no momento. Ali, o STF priorizou o trecho “quando expressamente autorizadas” do inciso XXI. 

Assim, por mais que existam aqueles que discordem, hoje, a simples previsão estatutária não é suficiente para que a associação tenha o direito de representar um indivíduo. É preciso que os associados demonstrem claramente, em cada ação, que querem ser representados.

A ASSOCIAÇÃO EM DEFESA DOS INDIVÍDUOS

Cinco mãos fechadas fazendo cumprimento coletivo | Representação associativa – Artigo Quinto
Para ser representado, o associado deve demonstrar claramente, em cada ação, que ele deseja ser representado | Representação associativa – Artigo Quinto

Com este post, portanto, fechamos os cinco incisos que tratam da liberdade de associação. Como você pôde perceber, o inciso XXI tem grande relevância, pois dá legitimidade para as organizações atuarem em defesa de seus membros. Com isso, reforça uma das razões para a existência das associações: representar interesses coletivos. 

Justamente por essa relevância, é difícil alcançar um consenso sobre como a representação deve se dar na prática. As decisões do STF discutidas definem o entendimento sobre esse direito no momento, mas não encerram os debates. É possível que, nos próximos anos, o entendimento sobre representação associativa sofra reviravoltas.

  • Esse conteúdo foi publicado originalmente em outubro/2019 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre os direitos fundamentais de forma simples para toda a população. Para acessar mais detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.

 


Sobre os autores:

Laura de Ávila Degasperi

Advogada de Societário

Danniel Figueiredo

Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.


Fontes:

Migalhas – A postulação em juízo por entidades associativas

Conteúdo jurídico: considerações sobre a atuação das associações em juízo

Conjur: a associação deve ter autorização para defender seus membros

Jota: o STF e ações coletivas de associações

Aspectos Gerais da Liberdade de Associação no Brasil – André Camargo – 2014

Perfil Constitucional do Direito à Livre Associação – Luis Eduardo Regules -1998

Atuação das Associações no Processo Coletivo e tentativa de desfazimento de um grave mal-entendido na jurisprudência do STF e STJ: ainda o tema dos limites subjetivos e da coisa julgada – Camilo Zufelato – 2017

Recurso Extraordinário 573.232

Nota do STF sobre o julgamento do caso 573.232

Recurso Extraordinário 612.043

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