Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
2 de outubro de 2020

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INCISO LIV – DEVIDO PROCESSO LEGAL

Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

DEVIDO PROCESSO LEGAL

Você sabia que a Constituição tem um inciso em seu artigo 5º para garantir que nenhuma pessoa perca sua liberdade ou seus bens sem que o devido processo legal tenha ocorrido? Esse é um direito determinado pelo inciso LIV e é fundamental para que ninguém seja preso ou perca seus bens de forma arbitrária ou por motivos que não estejam previstos em lei.

Quer saber mais sobre como a Constituição define esta garantia e qual diferença isso faz na nossa vida cotidiana? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série do projeto “Artigo Quinto”.

Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa a tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros, por meio de textos com uma linguagem clara.

O QUE É O INCISO LIV?

O inciso LIV do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:

ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal

O inciso LIV do artigo 5º da Constituição determina que todas as pessoas devem passar pelo processo legal de forma correta e adequada antes de serem presas ou de perderem algum bem – seja uma quantia financeira ou algum outro tipo de bem material ou imaterial. Isso pode parecer bastante abstrato e óbvio, mas, na prática, significa que todos têm direito a que seus processos sejam completamente embasados na lei e respeitem as regras previstas na nossa legislação

Mas não é tão simples assim. O devido processo legal tem duas formas: processual ou substancial (também chamada de material). O devido processo legal processual obriga o Estado a respeitar os procedimentos legais para decretar a prisão ou a perda de bens de alguém, de modo a garantir que os cidadãos possam se defender de forma adequada — direito à defesa.

Já o devido processo legal substancial dita as regras para que as leis sejam elaboradas e aprovadas e garante que estejam de acordo com os interesses sociais e os fundamentos do Estado democrático. Ou seja, novas leis não devem ser concebidas de forma contrária aos interesses da população e à democracia. 

Dessa forma, leis autoritárias e que impedem a participação da população na política não podem ser criadas. Quando o devido processo legal substancial não ocorrer na concepção de uma lei, essa legislação deve ser objeto de controle. Por isso, se uma lei antidemocrática for aprovada, o poder judiciário pode entrar em ação e declará-la inconstitucional, por exemplo.

Histórico do direito ao devido processo legal

A história do devido processo legal remonta ao início do século XIII, na Inglaterra, durante o reinado do rei João Sem Terra. O rei recebeu esse nome após perder vários territórios para o rei da França. Ele passou muitos anos tentando recuperá-los e, nesse período, o rei João se desentendia frequentemente com o Papa e os barões ingleses. 

Essas duas instituições, influentes da sociedade inglesa, pressionaram o reinado a impor limitações aos poderes do governante. Por conta dessa pressão, em 1215, João Sem Terra assinou um dos primeiros documentos do mundo a impor limites ao Estado: a Magna Carta inglesa. Ela foi um dos primeiros documentos a abordar alguns dos direitos humanos fundamentais que temos até hoje.

O Capítulo 39 desse documento estabelecia a “lei da terra”. Ela definia que nenhum homem poderia ser preso, perder seus bens ou algum de seus direitos sem ser julgado por seus “iguais” e pela lei da terra. Na prática, a expressão “lei da terra” fazia referência a toda a legislação em vigor naquele país ou região e protegia principalmente os interesses dos barões ingleses. 

Ou seja, um homem só poderia ser julgado por leis vigentes naquele local e por seus “iguais”. Sem esse julgamento, ninguém poderia perder direitos ou bens. Então, a lei da terra faz parte do direito britânico desde 1215. Em 1354, ela passou a ser chamada de “devido processo legal” por um decreto do rei Eduardo III. Posteriormente, o princípio se expandiu e deixou de atender apenas aos interesses dos barões, abrangendo todos os cidadãos. Em outras palavras, a proteção do devido processo legal acabou estendendo-se a muito mais do que somente terras.

Esse mesmo princípio também foi incorporado pelos Estados Unidos, ex-colônia inglesa, pelas emendas V e XIV da sua Constituição. A prática jurídica norte-americana efetuou a influente subdivisão do devido processo legal em processual e substancial, critérios que atualmente usamos no Brasil, acima explicados. 

Na França, o devido processo legal consagrou-se após a Revolução Francesa. No século XX, com o fim da Segunda Guerra Mundial e diante das atrocidades e arbitrariedades cometidas naquele período, ficou clara a necessidade de uma legislação que garantisse que todos os indivíduos tivessem direito a tratamento igual, imparcial e baseado em fundamentos e critérios definidos pela lei.

Por isso, a necessidade de garantia do devido processo legal foi abordada pela Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, ocorrida em Roma em 1950, cinco anos após a guerra. Ministros de quinze países europeus assinaram a Convenção, um marco no Direito Internacional. Esse documento estabelece, em seu artigo 6, § 1º, que “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial”.

A partir daí, todos os países democráticos começaram a incorporar o direito ao devido processo legal em suas legislações de alguma maneira, além de passar a participar de tratados internacionais que garantem essa obrigatoriedade. 

No Brasil, a Constituição do Império de 1824 já definia que nenhuma lei deveria ser estabelecida sem utilidade pública, o que tem relação com o devido processo legal substancial dos Estados Unidos. Dessa forma, garantia-se que nenhuma lei contrária aos interesses da sociedade fosse criada. 

Apesar disso, o Brasil continuou sem nenhuma menção à expressão “devido processo legal” em sua legislação até 1988. Durante todo esse período, o princípio foi garantido apenas por decisões judiciais e acadêmicos de direito.

Foi somente em nossa Constituição Federal atual, promulgada em 1988, que o devido processo legal foi classificado expressamente como um direito fundamental. É importante lembrar que ela foi a primeira constituição depois da ditadura militar, que perseguiu, torturou, encarcerou e executou cidadãos sem possibilidade legal de justa defesa. Por isso, a garantia do devido processo legal foi e permanece sendo, como veremos a seguir, tão importante.

A importância do Inciso LIV

A garantia do devido processo legal é considerada um dos fundamentos de uma sociedade democrática e de um Estado de Direito.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o Estado de Direito é um princípio de governança em que todas as pessoas, as instituições e as entidades, privadas e públicas (incluindo o próprio Estado), são responsáveis pelas leis promulgadas.

Esse princípio também define que essas leis devem ser aplicadas e julgadas de forma igual e independente para todos e que devem ser consistentes com as normas e os padrões internacionais de direitos humanos. Ou seja, se temos uma lei que prejudica os direitos humanos ou julga os cidadãos de forma diferenciada e injusta, não podemos considerar que o princípio de um Estado de Direito está sendo seguido. 

Por isso, podemos dizer que a garantia do devido processo legal é, basicamente, a materialização de parte considerável do que compõe um Estado de Direito.

Não existe Estado de Direito sem assegurar o devido processo legal para todas as pessoas. Isso porque ele garante: que as normas respeitem os interesses dos cidadãos; que todos possam defender seus direitos em uma justiça imparcial; e que todos possam usufruir dos mecanismos procedimentais necessários (como assistência jurídica qualificada e o direito de ampla defesa) para garantir que sejam julgados de forma justa.

Além disso, o direito ao devido processo legal é um princípio limitador do Estado. Ao respeitá-lo, é dificultada a possibilidade de que regimes autoritários se imponham e de que cidadãos sejam privados de seus direitos ou posses sem ter cometido nenhum crime. Regimes autoritários frequentemente usam questões políticas, religiosas e ideológicas para punir sua população, o que não é permitido em um Estado em que o devido processo legal é respeitado. 

Além de ser um direito fundamental, o devido processo legal também é classificado como um sobreprincípio. Isso significa que ele funciona como base e fundamento para todos os demais princípios que devem reger um processo justo. Como veremos no próximo capítulo, o inciso LV só existe e pode ser garantido por conta do inciso LIV. 

Diversos especialistas do direito acreditam que o devido processo legal é difícil de conceituar, já que não é um princípio objetivo, que pode ser facilmente descrito, exemplificado ou sistematizado. Apesar disso, esse conceito é aplicado em normas distintas no direito nacional e internacional.

O Inciso LIV na prática

Como já explicamos, o devido processo legal costuma ser classificado por juristas como um sobreprincípio. Entre os princípios constitucionais fundamentados por ele e que asseguram a sua aplicação na prática, estão:

  • o princípio do juiz natural (abordado nos posts sobre os incisos XXXVII e LIII);
  • o princípio do contraditório (de acordo com esse direito, o réu deve ser ouvido durante o processo judicial e não é permitido chegar a uma decisão sem que todos os interessados tenham a oportunidade de se manifestar);
  • o princípio da ampla defesa (por conta desse direito, o réu pode utilizar todos os mecanismos possíveis e legais para se defender, seja apresentando provas ou entrando com recursos);
  • a garantia de assistência jurídica aos que não têm recursos financeiros (explicamos mais sobre o direito do acesso à justiça no post sobre o inciso XXXV);
  • a garantia da duração razoável e da efetividade do processo (ou seja, a garantia de que o processo não se prolongará por mais tempo do que o razoável e será conduzido da maneira mais efetiva possível, seguindo a legislação).

Além desses princípios previstos na Constituição, o devido processo legal também é garantido no cotidiano por vários mecanismos da legislação brasileira, que vão desde princípios constitucionais até leis infraconstitucionais (que existem para “materializar” a Constituição e que são inferiores a ela, hierarquicamente falando). 

Aqui tudo fica mais subjetivo, porque o simples fato de uma lei ter sido criada por conta de uma necessidade dos cidadãos já é uma forma de materializar o devido processo legal. Leis criadas para garantir o acesso dos cidadãos à justiça e aos seus direitos também são formas de traduzir esse princípio para a prática.

Isso quer dizer que toda nova lei já consolida e garante o devido processo legal simplesmente por existir, desde que tenha seguido o processo legislativo correto. Por conta dessa abrangência, absolutamente todas as áreas do direito têm normas que consolidam o princípio do devido processo legal. 

Os direitos civil e penal são as áreas mais impactadas por essa garantia, já que determinam as regras e os procedimentos que devem ser seguidos para que um cidadão seja privado de seus bens (no caso do direito civil) ou até de sua liberdade (no caso do direito penal).

Um exemplo é o Código de Processo Civil (CPC), que, em seus artigos 7º e 8º, garante que as partes (o autor do processo e o réu) sejam tratadas com igualdade nos processos civis. Essa igualdade não quer dizer simplesmente que elas devem ter acesso aos mesmos instrumentos (como convocar a mesma quantidade de testemunhas e seguir os mesmos prazos). Inclui  também que, caso uma parte seja mais fraca em relação à outra, sob qualquer aspecto, ela deve dispor de mecanismos capazes de equilibrá-las. 

Apesar de ser tão importante, precisamos destacar que esse princípio ainda é frequentemente descumprido e encontra várias barreiras para ser exercido. Isso pode acontecer por muitos motivos, entre os quais:

  • o despreparo ou a determinação de juízes em obter determinado resultado de julgamento, passando muitas vezes por cima dos princípios do contraditório e da ampla defesa; e
  • a lentidão do sistema judiciário, que faz com que os processos se arrastem por anos, tomando um tempo muitas vezes superior ao razoável.

Um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2019 concluiu que um processo em primeira instância das varas estaduais do Brasil leva em média 10 anos e 9 meses para chegar ao fim (depois que todos os recursos cabíveis foram esgotados e os procedimentos, finalizados). Isso prejudica a duração razoável do processo, intimamente ligada ao  devido processo legal. 

Ademais, e infelizmente, diversas questões de cunho político e ideológico permitem que cidadãos de grupos menos favorecidos da sociedade sejam presos ou privados de seus bens sem o mesmo rigor  do devido processo legal garantido às classes mais abastadas. Essa desigualdade de tratamento é uma grande ameaça ao devido processo legal, já que isso não deve ocorrer de nenhuma maneira em uma sociedade democrática.

CONCLUSÃO

Assim chegamos ao fim de mais um inciso do artigo 5º da nossa Constituição. Aqui pudemos entender o direito ao devido processo legal, que é um dos fundamentos da sociedade democrática e do Estado de Direito, tão importante para os cidadãos. Mesmo que você nunca tenha ouvido (ou lido!) a expressão “devido processo legal” antes desse texto, com certeza chegou à conclusão de que ele é essencial em nossas vidas, não é?

A partir de agora, convidamos você para ficar de olho nos processos judiciais que tem notícia, seja pela mídia ou em sua vida particular. Reflita se eles parecem estar seguindo três diretrizes fundamentais: as normas respeitam os interesses dos cidadãos; todos podem defender seus direitos em uma justiça imparcial; e todos podem usufruir dos mecanismos necessários para que sejam julgados de forma justa.

  • Esse conteúdo foi publicado originalmente em junho/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.

Autores: 
  1. Danniel Figueiredo
  2. Jaqueline Simas Claveland de Oliveira
  3. Mariana Mativi

Fontes: 
  1. Instituto Mattos Filho;
  2. Artigo 5° da Constituição Federal – Senado.

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