INCISO LVI – PROVAS ILÍCITAS
Se você acompanha nossa série de textos sobre o artigo 5º da Constituição, já sabe que todos os incisos da nossa Magna Carta têm consequências bastante diretas em nossas vidas, apesar de, por vezes, parecerem distantes. Esse é o caso do inciso que vamos explicar hoje: o LVI, que define que provas ilícitas são inadmissíveis em processos.
Neste texto, explicaremos mais sobre como a Constituição define o que são provas obtidas por meios ilícitos e por que isso é tão importante, bem como um pouco da história dessa garantia fundamental de todo cidadão e como ela vem sendo aplicada. Esse é mais um conteúdo do projeto Artigo Quinto, uma parceria do Instituto Mattos Filho com a Civicus e a Politize!, que tem como objetivo descomplicar direitos fundamentais previstos na Constituição.
O QUE É O INCISO LVI E O QUE SÃO PROVAS ILÍCITAS?
O inciso LVI do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 define que:
são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos
O inciso LVI do artigo 5º da Constituição define que provas ilícitas são inadmissíveis em processos. As provas são os instrumentos que as partes envolvidas (como autor da ação e réu) usam para explicar os acontecimentos e convencer o(s) juiz(es). Aquelas que não podem ser consideradas em processos judiciais classificam-se em duas categorias:
- provas ilegais; ou
- provas que, mesmo que não infrinjam a legislação por si só, tenham sido obtidas sem que fossem respeitados os procedimentos definidos pela lei.
Ao não admitir provas ilícitas em um processo, impedindo seu uso contra uma pessoa, estamos protegendo os direitos e as garantias dos indivíduos definidos pela Constituição. Reconhecemos que o Estado, seus agentes ou outros particulares não podem violar a legislação a pretexto de cumpri-la. Não faz sentido violar a lei para “cumprir a lei”.
Com isso, os direitos individuais se sobrepõem à busca por informações e à resolução de conflitos judiciais a qualquer custo. Afinal, o Estado existe para organizar a vida em sociedade e para afirmar e proteger os direitos fundamentais dos cidadãos.
Alguns exemplos de provas de natureza ilegal ou obtidas por meios ilícitos são:
- confissões obtidas sob tortura (ver post sobre o inciso III);
- objetos coletados por meio da violação de domicílio, sem autorização judicial (ver post sobre o inciso XI);
- áudios gravados em interceptações telefônicas não autorizadas judicialmente ou autorizadas por decisão judicial sem fundamentação suficiente (ver post sobre o inciso XII).
Por isso, imagens, áudios, documentos e todo tipo de informações obtidas a partir desses meios ilegais e que configurariam provas ilícitas não podem fazer parte do processo.
Se, ainda assim, essas provas forem submetidas à avaliação do(s) julgador(es), elas não poderão ser consideradas na formulação da decisão. Além disso, elas deverão ser removidas do processo para evitar a “contaminação” do convencimento do(s) julgador(es).
Aqui, é fundamental destacar que o inciso LVI do artigo 5º limitou-se a prever a não admissão de provas ilícitas em um processo, não proibindo explicitamente a produção dessas provas. Seu objetivo não é tratar da produção de provas, mas sim de sua apreciação pelo juiz.
Ou seja, embora as partes de um processo tenham direito à produção de provas, como já vimos no post sobre o inciso LV, este direito não é amplo e irrestrito. Outros incisos definem a proibição da produção de provas ilícitas, como os incisos III, XI e XII, que trataram, respectivamente, sobre a proibição da tortura, da violação de domicílio e da quebra de sigilo.
Reflexos do inciso LVI na legislação brasileira
Além de um inciso próprio no artigo 5º da nossa Constituição, a proibição de provas ilícitas também é apreciada em outros dispositivos de nossa legislação.
Podemos observar estes reflexos em leis como o Código de Processo Civil (Lei n. 13.105), de 16 de março de 2015:
Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.
No Código de Processo Penal (Decreto-Lei n. 3.689), de 3 de outubro de 1941, existe um texto ainda mais claro, fruto de reforma legislativa ocorrida em 2008:
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
- 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
Em suma, provas ilícitas ou informações delas derivadas não podem constar nos autos de um processo. Os autos são um conjunto de documentos organizados que evidenciam todas as informações relacionadas a um processo, podendo ser digitais ou físicas, e que serão avaliados pelo(s) julgador(es) para fundamentar sua(s) decisão(ões).
HISTÓRICO DESSE DIREITO NO BRASIL
A garantia constitucional de que provas ilícitas não sejam admitidas em processos é recente no Brasil. Antes da Constituição de 1988, os tribunais não seguiam uma única linha de interpretação sobre o tema, tampouco havia clareza sobre o conceito de prova ilícita.
Por muito tempo, os tribunais brasileiros consideravam apenas a carga de convencimento de cada prova, mesmo as obtidas ilicitamente. Ou seja, no julgamento da admissibilidade da prova, era mais importante considerar sua relevância do que a legalidade da sua obtenção.
Caso uma prova fosse ilícita, isso deveria ser investigado e tratado em outro processo, cabendo punição àquele que utilizou de meio ilícito para a produção da prova, mas sem prejudicar o processo original no qual ela seria utilizada.
Um exemplo disso é um caso julgado em fevereiro de 1964. Nele, o julgador entendeu que, apesar da confissão do réu ter sido obtida por meio de maus tratos, ela seria considerada no julgamento porque as informações eram coerentes com as demais provas. O texto dizia: “Eventuais maus tratos impostos ao réu não informam o valor probante da confissão, que os demais elementos de convicção demonstram ter sido veraz”.
Outro exemplo é o de um caso julgado em março de 1967, no qual o réu confessou ter envolvimento com o “jogo do bicho” depois de ter sido espancado por policiais. Na ocasião, o julgador também entendeu que a confissão era válida e seria levada em consideração. Segundo o juiz, o réu poderia apenas abrir uma reclamação nos órgãos que supervisionam a polícia.
A decisão definia que:
“Inválida não é a confissão policial, por haver sido prestada mediante espancamento, se se acha em harmonia absoluta, completa e perfeita com as demais circunstâncias que determinaram a prisão em flagrante do acusado como contraventor do ‘jôgo do bicho’, inclusive a apreensão em seu poder das respectivas listas de apostas”.
Mas, como explicamos anteriormente, essa interpretação variava muito de decisão para decisão, justamente por ainda não ser uma garantia constitucional.
Ainda, em São Paulo, em 1972, um julgador decidiu que as provas obtidas por busca domiciliar ilegal deveriam ser desconsideradas. Nesse julgamento, o réu foi absolvido porque o juiz considerou que não havia provas suficientes para condená-lo.
O texto dizia o seguinte: “Tratando-se de busca domiciliar ilegal, pois realizada sem mandado e lavratura de auto circunstanciado, nos termos da lei processual, o vício de origem contamina a prova, sacrifica a acusação e não autoriza uma condenação penal”.
Em outro julgamento, também em São Paulo, sobre o envolvimento do réu com o “jogo do bicho”, já em 1983, o julgador deixou claro que o Estado não pode violar direitos com o objetivo de conseguir provas e “buscar justiça”. No caso, também havia sido feita uma busca domiciliar ilegal. Segundo ele, os fins não justificam os meios:
A ilegalidade da busca e apreensão domiciliar, por si só, prejudica, irreparavelmente, a ação penal, independentemente da própria veracidade da acusação. Ao Estado não se pode permitir a violação da lei, a pretexto da colheita de elementos probatórios. Os fins não justificam os meios. O direito de prova, meramente adjetivo, não se sobrepõe às garantias individuais de natureza constitucional substantiva.
O Supremo Tribunal Federal (STF), em 1984, já entendia que as provas ilícitas deveriam ser inadmissíveis em processos, mesmo antes da Constituição de 1988. O entendimento era o de que havia uma garantia de nível constitucional, ainda que não se tratasse de algo expressamente inscrito na Constituição.
Vejamos um exemplo em que o julgador decidiu que a interceptação telefônica usada no caso (i) era ilegal, (ii) era contrária às garantias constitucionais, e (iii) deveria ser removida dos autos do processo. A decisão explicava que:
Infringente da garantia constitucional do direito da personalidade e moralmente ilegítimo é o processo de captação de prova, mediante a interceptação de telefonema, à revelia do comunicante, sendo, portanto, inadmissível que venha a ser divulgada em audiência de processo judicial, de que sequer é parte. Lesivo a direito individual, cabe o mandado de segurança para determinar o trancamento da prova e o desentranhamento dos autos da gravação respectiva. Recurso extraordinário conhecido e provido.
Não apenas os fins não justificam o uso de quaisquer meios, mas é precisamente o oposto. A legitimidade de uma intervenção estatal tão grave nos direitos fundamentais de cidadãos depende da correta observância dos meios, pelo estrito cumprimento das “regras do jogo” processual.
Ou seja: em um Estado Democrático de Direito, o direito e o poder de punir do Estado dependem da observância estrita das leis por seus agentes, inclusive na produção de provas para acusar e condenar alguém.
DISCUSSÕES ATUAIS SOBRE O INCISO LVI
Acabamos de ver que, antes da Constituição atual, a linha interpretativa sobre o uso de provas ilícitas variava e dependia da forma como os diferentes julgadores avaliavam os direitos da personalidade, que eram garantidos pela Constituição em vigor à época.
A interpretação de que esse tipo de prova deveria ser absolutamente inaceitável foi consolidada apenas pela Constituição de 1988, como cláusula pétrea no inciso LVI do artigo 5º. Assim, os tribunais não podem mais interpretar essas questões de forma livre e irrestrita.
Mas não pense que o assunto ficou completamente resolvido. Embora a garantia esteja fixada na Constituição, o direito, como a sociedade, está sempre em movimento. Em outras palavras, passa por discussões e mutações.
Assim, existe ainda uma discussão sobre possíveis exceções em relação à admissão de provas ilícitas em processos. Ademais, pela complexidade das relações e dos conflitos sociais, nem todos previstos pelo direito, sempre pode haver casos em que haja dúvidas sobre a licitude ou ilicitude de determinadas provas.
Influenciados por decisões judiciais em países onde são admitidas provas ilícitas em processos, julgadores e estudiosos do direito brasileiro discutem uma possível flexibilização na interpretação do inciso LVI do artigo 5º.
Um dos países que mais nos influencia nesse sentido são os Estados Unidos. Lá, a inadmissibilidade de provas ilícitas no processo não é uma garantia constitucional, mas uma construção jurisprudencial histórica da Suprema Corte. Isso significa que a inadmissibilidade de provas ilícitas fundamenta-se em sucessivos julgamentos anteriores e é sujeita a revisões, conforme a evolução do entendimento dos tribunais. No Brasil, o STF tratou deste assunto mais recentemente, em 2001:
Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo […], resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real do processo: conseqüente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação.
O ministro quer dizer que é inadequado recorrer a teorias de outros países que não têm uma Constituição como a brasileira. Não importa a gravidade do crime ou da infração investigados: provas obtidas por meios ilícitos não devem ser levadas em consideração pelo(s) julgador(es) na formação do seu convencimento.
O INCISO LVI NA PRÁTICA
Como vimos nos parágrafos anteriores, é notável, na prática, a importância dessa garantia nas decisões tomadas após a promulgação da Constituição Federal, pois, com a consagração constitucional da não admissão de prova ilícita no processo, julgadores e tribunais receberam um mandamento claro sobre a forma como essas provas devem ser tratadas.
Veremos duas decisões recentes que são claras neste sentido. A primeira é do STF, em 2007, quando o julgador foi enfático ao estabelecer que não há margem para qualquer interpretação no sentido de que uma prova ilícita possa ser considerada no âmbito processual.
O texto reforça que a interpretação de que as provas ilícitas são absolutamente vedadas no processo foi consagrada pela Constituição Federal. Aqui uma parte do texto da decisão:
A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do ‘due process of law’, que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo. A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do ‘male captum, bene retentum’.
No segundo caso, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2017, as provas foram coletadas por meio de coerção. O acusado foi pressionado a reproduzir uma conversa com uma terceira pessoa pelo viva-voz do seu celular. Isso levou os policiais até a sua residência onde coletaram as provas.
A decisão do STJ esclarece que, já que as provas foram geradas por meio da coerção do acusado, elas eram ilícitas e que todas as outras provas obtidas a partir das informações da conversa também deveriam ser desconsideradas. Ou seja, mesmo que essas informações tivessem seguido o procedimento legal correto, elas não poderiam ser admitidas, já que partiram da conversa obtida ilicitamente.
O Tribunal de origem considerou que, embora nada de ilícito houvesse sido encontrado em poder do acusado, a prova da traficância foi obtida em flagrante violação ao direito constitucional à não autoincriminação, uma vez que aquele foi compelido a reproduzir, contra si, conversa travada com terceira pessoa pelo sistema viva-voz do celular, que conduziu os policiais à sua residência e culminou com a arrecadação de todo material estupefaciente em questão. […]
O relato dos autos demonstra que a abordagem feita pelos milicianos foi obtida de forma involuntária e coercitiva, por má conduta policial, gerando uma verdadeira autoincriminação. Não se pode perder de vista que qualquer tipo de prova contra o réu que dependa dele mesmo só vale se o ato for feito de forma voluntária e consciente.
Outro aspecto de extrema importância em relação ao tema refere-se à possibilidade da utilização de provas obtidas ilicitamente em processos penais, quando corroborarem com a tese do acusado. Em outras palavras, as provas obtidas ilicitamente podem continuar nos autos quando for favorável ao réu.
De acordo com uma interpretação literal do dispositivo constitucional, a conclusão mais correta parece ser aquela que defende a proibição de sua utilização em todo e qualquer processo, ainda que sirva para inocentar o indivíduo.
Todavia, apesar da interpretação literal, há um consenso na doutrina no sentido de que, sopesando-se o direito à liberdade do acusado com o direito que fora violado para a obtenção da prova, prevalece o primeiro. Assim, a prova pode ser utilizada em benefício do acusado, principalmente quando for apta a comprovar sua inocência.
Esse tema permeou, inclusive, embate recente no Supremo Tribunal Federal, por ocasião de um julgamento no qual se pleiteava o reconhecimento da suspeição do juízo em relação ao acusado.
Os votos prevalentes, ainda que não tenham adentrado direta e expressamente à discussão acerca da possibilidade de utilização de provas obtidas de forma ilícita, utilizaram-se em sua argumentação de trechos de conversas entre Procuradores da República e um juiz federal (obtidas sem autorização judicial e, portanto, de forma ilegal) para corroborar a fundamentação empregada em benefício do acusado.
CONCLUSÃO
Assim chegamos ao fim de mais um inciso. Durante esse texto, explicamos o que exatamente é uma prova ilícita e mostramos casos reais e importantes em que o inciso LVI do artigo 5º garantiu que elas não deveriam ser admitidas nos processos, ajudando a assegurar outros direitos dos(as) cidadão(ãs) consagrados na Constituição Federal.
De agora em diante, você já sabe que o ditado popular “os fins não justificam os meios” também se aplica ao Direito!
- Esse conteúdo foi publicado originalmente em junho/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Sobre os autores:
Danilo Soares Oliveira
Advogado de Fundos de Investimentos do Mattos Filho
Mariana Fernandes
Coordenadora de Conteúdo e Comunicação do Politize!.
Fontes:
- Instituto Mattos Filho;
- Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;