Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
21 de julho de 2020

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Inciso LIX – Direito de queixa subsidiária

"Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”

DIREITO DE QUEIXA

O inciso LIX do artigo 5° da Constituição Federal garante ao cidadão que, se o Ministério Público não oferecer uma denúncia no prazo estabelecido legalmente, a vítima ou seus representantes têm o direito de queixa. O direito de queixa pode, então, ser considerado uma transferência de uma ação que geralmente seria pública para uma ação privada.

Quer entender o que a Constituição diz sobre essa garantia e qual a sua importância no contexto histórico brasileiro? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série do projeto “Artigo Quinto”.

Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros.

DESCOMPLICANDO O INCISO LIX

O inciso LIX do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:

será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal

Esse inciso trata do direito fundamental da vítima e de sua família de buscar a aplicação da lei penal, assegurando seu acesso à justiça. 

É importante notar que a ação penal e sua iniciativa, como regra geral, são públicas e promovidas pelo Ministério Público (MP). Essa atribuição do MP é uma importante garantia do processo penal, pois busca afastar a tarefa da acusação de pressões sociais. Seu propósito é proteger a prerrogativa do órgão que a exerce de concluir pelo não oferecimento da denúncia, arquivando um inquérito criminal. 

Excepcionalmente, a ação penal pode ter iniciativa privada. Isso ocorre porque o legislador infraconstitucional reconhece que, em certos tipos de crimes, o interesse privado em sua repressão prevalece sobre o interesse público, como nos casos dos crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação). 

Além disso, nos demais casos, a regra geral de iniciativa do Ministério Público para a propositura da ação penal é equilibrada pelo direito de queixa subsidiária. Esse direito permite que a vítima busque a Justiça quando o Ministério Público não age.

Segundo Fernando Capez, uma ação penal privada 

É aquela em que o Estado, titular exclusivo do direito de punir, transfere a legitimidade para a propositura da ação penal à vítima ou a seu representante legal. A distinção básica que se faz entre ação penal privada e ação penal pública reside na legitimidade ativa. Nesta, o tem o órgão do Ministério Público, com exclusividade (CF, art. 129, I); naquela, o ofendido ou quem por ele de direito. Mesmo na ação privada, o Estado continua sendo o único titular do direito de punir e, portanto, da pretensão punitiva. Apenas por razões de política criminal é que ele outorga ao particular o direito de ação. Trata-se, portanto, de legitimação extraordinária, ou substituição processual, pois o ofendido, ao exercer a queixa, defende em nome próprio um interesse alheio  – o do Estado na repressão dos delitos.

Para entender a diferença entre a ação penal pública e a ação penal privada subsidiária da pública, imagine que seu carro foi furtado. Você então leva esse fato ao conhecimento das autoridades, para que haja uma investigação e sejam tomadas providências contra quem praticou aquele crime contra seu patrimônio. 

De acordo com a lei processual penal (artigo 46 do Código de Processo Penal – CPP), após encerradas as investigações e encaminhados os autos ao MP, esse órgão tem um prazo para propor a denúncia na Justiça Criminal contra quem praticou um crime. 

Contudo, se o MP não respeitar esse prazo – e não determinar a realização de novas diligências –, a pessoa ofendida ou seu representante legal pode entrar com um pedido de queixa substitutiva ou subsidiária. A queixa subsidiária não é o caminho comum de processo penal, mas um caminho alternativo que só pode ser seguido caso o MP não apresente a denúncia no prazo, omitindo-se de forma injustificada no cumprimento do seu dever. 

Ou seja, no caso do exemplo, você ou seu representante legal teriam o direito de “transformar” uma ação penal pública em uma ação penal privada. O instrumento para fazer isso seria é, pois, a  queixa subsidiária. Ela  substitui a denúncia do MP que não foi feita dentro do prazo. É exatamente a esse direito – o de “transformar” uma ação penal pública em uma ação penal privada – que o inciso LIX do artigo 5º se refere. 

Cadeado | Direito de queixa subsidiária - Artigo Quinto
Cadeado representando ação penal privada | Direito de queixa subsidiária – Artigo Quinto

HISTÓRICO DESSA GARANTIA

No Brasil, há um caso emblemático em que esse direito foi colocado em prática. Trata-se do caso amplamente noticiado da morte de Marcelo Dino, filho do então presidente do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) Flávio Dino. Após o falecimento de Marcelo Dino em um hospital do Distrito Federal em fevereiro de 2012, foi aberto um inquérito policial para investigação do ocorrido.

O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) recebeu o inquérito concluído da autoridade policial e não apresentou a denúncia nem pediu novas diligências externas dentro do prazo de 15 dias previsto no CPP (artigo 46). Com o prazo legal expirado, os pais de Marcelo Dino apresentaram uma queixa-crime subsidiária.

Na época, os julgadores do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) discutiram se realmente havia inércia ou descaso do MP em não apresentar denúncia contra os supostos responsáveis pela morte de Marcelo Dino. 

Esse ponto era central para determinar se os pais de Marcelo Dino poderiam apresentar a queixa subsidiária. Essa discussão surgiu porque, apesar de o MPDFT não ter apresentado a denúncia no prazo legal de 15 dias, o órgão tomou medidas internas nesse período.

O debate sobre a legitimidade dos pais de Marcelo Dino para apresentar a queixa subsidiária chegou até a última instância dos tribunais brasileiros, o STF. O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, entendeu que o texto da Constituição Federal é claro. 

Se o prazo previsto na lei for ultrapassado sem que o MP apresente a denúncia ou adote alguma diligência externa ao órgão, para complementar o inquérito, as vítimas ou suas famílias têm legitimidade para apresentar a queixa substitutiva. 

Para o ministro, o fato de o MPDFT estar com o inquérito do caso Marcelo Dino para análise não anula a perda do prazo para apresentação da denúncia. Abrir uma exceção violaria a Constituição. Em razão desse entendimento, a queixa dos pais de Marcelo Dino foi considerada legítima pelo STF.

Há um trecho do voto do ministro Gilmar Mendes que resume o caráter objetivo do prazo para a propositura da denúncia pelo MP: “Se não promovida a ação penal pública no prazo legal, é admitida a ação penal privada, independentemente de ulteriores circunstâncias”. 

Em outras palavras, o texto constitucional não exige descaso ou culpa por parte do órgão acusador. Basta o  simples decurso de prazo, independentemente de justificativa, para conferir o direito da vítima ou de seu representante de propor a ação penal subsidiária.

Esse caso pode ser considerado um avanço na proteção do direito fundamental da vítima e de sua família à aplicação da lei penal. Com essa decisão do STF, fica claro que não há outros requisitos para dar entrada na queixa substitutiva para além da perda do prazo pelo MP, bastando demonstrar que a denúncia não foi apresentada no prazo previsto no Código de Processo Penal.

A IMPORTÂNCIA DO INCISO LIX

Outra aplicação prática desse direito fundamental é a possibilidade de ajuizar ação penal privada subsidiária para buscar a reparação por crimes ambientais. Isto é, as vítimas dos crimes ambientais podem apresentar a queixa subsidiária se o MP não o fizer no prazo legal. 

Existe discussão sobre a possibilidade de associações e outros agentes especializados na defesa do meio ambiente que não foram diretamente afetados pela ação criminosa proporem a ação penal privada subsidiária. 

A legitimidade dessas entidades para propor a ação penal privada subsidiária ainda não está pacificada. Em todo caso, esse tipo de ação penal privada subsidiária é extremamente relevante e atual, considerando a preocupação crescente com a proteção do meio ambiente. 

Outro emprego da ação penal privada subsidiária é no contexto dos crimes falimentares (crime definido na Lei das Falências). O administrador judicial da falência, bem como qualquer credor habilitado no processo falimentar, tem legitimidade para apresentar a queixa subsidiária se o representante do Ministério Público não o fizer no prazo legal. O mesmo raciocínio se aplica a diversos crimes em que as vítimas podem ser individualizadas ou se os membros de uma coletividade foram afetados.

Martelo justiça | Direito de queixa subsidiária - Artigo Quinto
Martelo justiça | Direito de queixa subsidiária – Artigo Quinto

 

O INCISO LIX NA PRÁTICA

A base legal do direito à ação penal privada subsidiária está, além da Constituição Federal, no Código Penal (artigo 100, § 3º) e no CPP (artigo 29). Ao reconhecer que vítimas e seus representantes podem apresentar a queixa, a Constituição empodera os indivíduos legitimados a propor a ação penal subsidiária, como ilustra o caso de Marcelo Dino. 

O principal avanço da efetivação desse direito fundamental desde a promulgação da Constituição de 1988 provavelmente foi o julgamento, com reconhecimento de repercussão geral, do caso de Marcelo Dino. O caso permitiu discutir se seria necessária a demonstração da descaso ou inércia culposa do Ministério Público para recorrer à ação penal privada subsidiária da pública. 

Na ocasião, o STF reafirmou “o direito da vítima e sua família à aplicação da lei penal, inclusive tomando as rédeas da ação criminal, se o Ministério Público não agir em tempo”. Reconheceu, assim,  o direito à queixa quando o MP deixa de apresentar a denúncia no prazo legal e tampouco requer diligências externas no inquérito ou seu arquivamento. 

Um dos desafios para a ampliação desse direito está na interpretação do conceito de vítima. Atualmente, a interpretação mais aceita é que vítimas são as pessoas físicas diretamente atingidas pela ação delituosa. Contudo, essa é uma questão que gera debate. 

Em matéria de proteção penal a interesses supraindividuais, de titularidade coletiva ou difusa – a exemplo do meio ambiente –, questiona-se se essa visão não seria restritiva e, consequentemente, limitadora do direito fundamental previsto na Constituição Federal. 

Por exemplo, defensores do meio ambiente argumentam que a sociedade como um todo é afetada por um crime ambiental. Nesse sentido, os crimes ambientais atentariam contra o direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 

Se os crimes ambientais geram efeitos difusos, a legitimidade para apresentar a queixa-substitutiva não deveria se restringir a uma pessoa, ou a um grupo determinado de pessoas. Faria mais sentido ampliar a interpretação para que outros membros da coletividade, ou grupos e entidades representativos, atuantes na defesa do meio ambiente, pudessem apresentar a queixa subsidiária.

CONCLUSÃO

O inciso LIX do artigo 5º estabelece que, caso o MP não apresente a denúncia dentro do prazo estipulado no Código de Processo Penal, a vítima ou seu representante têm o direito de entrar com uma queixa subsidiária, “transformando” a ação penal pública em uma ação penal privada subsidiária. Esse direito fundamental visa assegurar o direito da vítima e de sua família à aplicação da lei penal. 

  • Esse conteúdo foi publicado originalmente em julho/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.

Sobre os autores:

Laura Carneiro de Melo Senra

Advogada de Compliance e Ética corporativa do Mattos Filho

Matheus Silveira da Silva

Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.

Mariana Mativi


Fontes:

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