Você já ouviu falar em capitalismo tardio? O termo pode soar técnico, mas descreve uma realidade bastante presente: a desigualdade social crescente, a precarização do trabalho, as crises econômicas recorrentes, a mercantilização da cultura e até a forma como usamos nosso tempo e nosso corpo.
Desde os anos 1970, intelectuais e militantes têm usado essa expressão para se referir à fase mais recente do capitalismo, marcada por globalização intensa, poder das corporações multinacionais, avanço da financeirização e transformação radical das formas de trabalhar e consumir.
Para muitos autores, como o economista Ernest Mandel e o filósofo Fredric Jameson, essa etapa vai além de mudanças econômicas: ela altera a vida cotidiana, as relações sociais e até as formas de pensar e sentir.
No capitalismo tardio, não compramos apenas bens; consumimos identidades, estilos de vida e experiências. Outros, como Habermas , enfatizam as contradições de racionalização e colonização da vida cotidiana.
Neste texto, vamos explorar tanto as críticas quanto os diferentes olhares sobre esse conceito.
Vamos lá?!
- O que é o Capitalismo Tardio?
- Como funciona o trabalho no capitalismo tardio?
- As fases do capitalismo: uma linha do tempo
- 1. Capitalismo Comercial (séculos XV a XVIII)
- 2. Capitalismo Industrial (século XVIII até meados do século XX)
- 3. Capitalismo Monopolista e de Estado (1900–1970)
- 4. Capitalismo Tardio (1970 até hoje)
- A contribuição de Ernest Mandel
- Outros autores e perspectivas
- Fredric Jameson (filósofo e crítico cultural)
- David Harvey (geógrafo marxista)
- Zygmunt Bauman (sociólogo)
- Nancy Fraser (filósofa feminista)
- Visões alternativas sobre o capitalismo tardio
- Capitalismo tardio no Brasil
- Referências
O que é o Capitalismo Tardio?
Karl Marx analisou pela primeira vez o último estágio do capitalismo em sua obra O Capital: Uma Crítica da Economia Política, no qual uma aceleração na rotação do capital, concentrando a riqueza nas mãos de poucos, resultaria em uma tendência contínua a crises. Isso, acreditava ele, acabaria por levar o sistema ao colapso.
No entanto, Marx não utilizou o termo “capitalismo tardio”. Ele foi criado por Werner Sombart, economista histórico alemão, que definiu três períodos do sistema econômico capitalista: capitalismo inicial ou protocapitalismo, capitalismo avançado e capitalismo tardio, que referia-se às privações econômicas, políticas e sociais associadas às consequências da Primeira Guerra Mundial.
Ele passou a ser amplamente utilizado após a publicação do livro O Capitalismo Tardio, de Ernest Mandel, em 1972. Para Mandel, trata-se de uma fase marcada pela expansão global do capital, pela centralidade das grandes corporações multinacionais e pela financeirização da economia.
Mas o conceito foi além da economia. Outros autores, como o filósofo Fredric Jameson, usaram a expressão para pensar também as transformações culturais e sociais desse período. Jameson argumenta que o capitalismo tardio é a fase em que o consumo, a estética e até as emoções passam a ser moldadas pelo mercado, uma fusão entre capitalismo e cultura que marca a era do “pós-modernismo”.
Mais recentemente, Jonathan Crary, em seu livro”Last Capitalism and the Ends of Sleep” (Capitalismo Tardio e os Fins do Sono), argumenta que nossa versão atual de capitalismo 24 horas por dia, 7 dias por semana, possibilitada por tecnologias intrusivas e mídias sociais, está corroendo necessidades humanas básicas, como o sono suficiente, tornando o trabalhador alienado.
Em resumo, o capitalismo tardio representa: uma economia globalizada e interligada; o predomínio do setor financeiro sobre a produção material; a incorporação da tecnologia e da informática nos processos produtivos; a flexibilização e precarização do trabalho; e a mercantilização da cultura, do tempo livre e da vida cotidiana.
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Como funciona o trabalho no capitalismo tardio?
A lógica do trabalho mudou profundamente no capitalismo tardio. Se, no modelo fordista (característico da primeira metade do século XX), o trabalhador tinha uma jornada regular, estabilidade e acesso a direitos sociais, no capitalismo tardio o cenário se torna mais instável e fragmentado.
Principais características:
- Precarização das relações de trabalho: cresce o número de contratos temporários, terceirizações e trabalhos informais. A segurança trabalhista diminui, e com ela os direitos.
- “Uberização”: trabalhadores deixam de ser empregados e se tornam “parceiros” de plataformas digitais, como Uber, iFood e Rappi. Isso significa menos direitos, menos proteção social e jornadas incertas.
- Automação e Inteligência Artificial: o avanço da tecnologia substitui trabalhadores humanos por máquinas ou algoritmos, o que reduz custos para as empresas, mas aumenta o desemprego estrutural.
- Trabalho remoto e vigilância digital: mesmo fora do ambiente físico da empresa, trabalhadores continuam conectados e monitorados. O controle por metas, desempenho e produtividade se intensifica.
- Trabalho emocional e simbólico: cresce o setor de serviços e da economia criativa, em que o trabalhador deve não só produzir, mas também demonstrar empatia, simpatia e engajamento, algo chamado por alguns teóricos de “trabalho afetivo”.
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Essa nova configuração leva a um cenário onde há empregos, mas poucas carreiras; trabalho, mas pouca segurança; produtividade, mas alto esgotamento físico e mental.
Segundo sociólogo Gabriel Peters, professor de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), depressão e o capitalismo estão intimamente ligados pois “em vez de falar da falta de direitos, se elogia a flexibilidade e a suposta autonomia que se tem para construir o seu próprio horário”.

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As fases do capitalismo: uma linha do tempo
O capitalismo, como sistema econômico, passou por diversas fases desde seu surgimento. Entender essas transformações ajuda a compreender o que distingue o “capitalismo tardio” das etapas anteriores.
1. Capitalismo Comercial (séculos XV a XVIII)
Fase de acumulação primitiva de capital, marcada pelas grandes navegações, colonização, tráfico transatlântico de escravizados e comércio intercontinental.
O lucro vinha da troca de mercadorias e da exploração colonial.
2. Capitalismo Industrial (século XVIII até meados do século XX)
Com a Revolução Industrial, a produção passa a ser baseada em fábricas, mecanização e trabalho assalariado. O foco é na produção em massa de bens de consumo. Surge o proletariado industrial urbano.
3. Capitalismo Monopolista e de Estado (1900–1970)
Após a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, o Estado passa a intervir mais na economia (modelo keynesiano). Grandes corporações dominam o mercado e o fordismo se consolida: produção em série, altos salários, sindicatos fortes e consumo em massa.
4. Capitalismo Tardio (1970 até hoje)
Com a crise do modelo anterior, emerge um novo regime: globalizado, neoliberal, financeirizado, tecnológico. A produção se descentraliza (cadeias globais), o Estado encolhe, os sindicatos perdem força e o capital se valoriza mais no setor financeiro do que na produção real.
Entenda mais sobre a mais-valia
A contribuição de Ernest Mandel
Ernest Mandel (1923–1995) foi um economista e militante marxista belga que teve grande influência nos estudos sobre economia política. Tinha a teoria das grandes ondas onde diz que capitalismo se desenrola não apenas por meio de ciclos econômicos curtos com duração de sete a dez anos, mas também por meio de variações de longo prazo de cerca de cinquenta anos (aproximadamente vinte e cinco anos para cima e vinte e cinco anos para baixo).
Em seu livro O Capitalismo Tardio, Mandel propõe que o capitalismo passou por três grandes ondas de desenvolvimento:
- Capitalismo liberal concorrencial (século XIX): marcado pela livre concorrência entre pequenas empresas e pelo domínio do capital industrial;
- Capitalismo monopolista (início do século XX): as empresas crescem, se fundem e formam monopólios; o capital financeiro começa a se fortalecer;
- Capitalismo tardio (pós-Segunda Guerra): desenvolvimento tecnológico acelerado, planejamento corporativo, consumo em massa, globalização das empresas e financeirização da economia.
Mandel via o capitalismo tardio como uma tentativa de resolver as contradições do sistema por meio da expansão global e do aumento do consumo.
No entanto, ele alertava que essas “soluções” apenas adiavam novas crises, pois a lógica da superacumulação e da exploração permanecia intacta. A intervenção do Estado na economia é limitada, e quando ela se desvia das previsões ele pode intervir de forma restrita por meio da mudança governamental relativa à moeda, ao crédito, aos impostos, ao comércio exterior ou à atividade pública de investimentos
O conceito de capitalismo regulado pelo Estado é apropriado por Habermas onde destaca as seguintes características para o estágio avançado do processo de acumulação: (a) processo de concentração de empresas (surgimento das corporações nacionais e transnacionais); (b) organização do mercado de bens, de capitais e trabalho; (c) intervenção estatal na economia para intervir nas crescentes falhas de funcionamento do mercado.

Outros autores e perspectivas
Embora o termo “capitalismo tardio” seja amplamente utilizado por autores marxistas e críticos do sistema capitalista, ele também enfrenta críticas de pensadores liberais e conservadores. Essas críticas se concentram principalmente em três frentes: críticas conceituais, críticas empíricas e críticas ideológicas.
Fredric Jameson (filósofo e crítico cultural)
Em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, Jameson argumenta que a cultura contemporânea está profundamente imersa na lógica capitalista.
A arte, o entretenimento e até a política são “colonizados” pelo mercado. Tudo vira produto. Para ele, o capitalismo tardio é a era da superficialidade, da estética do consumo e do esvaziamento das utopias.
David Harvey (geógrafo marxista)
Harvey analisa o capitalismo tardio como parte do processo de acumulação por despossessão: em vez de gerar riqueza por meio da produção, o capital cresce apropriando bens públicos, privatizando serviços, destruindo direitos trabalhistas e promovendo especulação financeira.
Zygmunt Bauman (sociólogo)
Bauman conecta o capitalismo tardio à ideia de “modernidade líquida” , uma época em que tudo é volátil: empregos, relações afetivas, valores, identidades.
Isso cria uma sensação constante de insegurança e isolamento, mesmo em meio à hiperconectividade.
Nancy Fraser (filósofa feminista)
Fraser aponta como o capitalismo tardio também se apropria do trabalho reprodutivo (doméstico, afetivo, de cuidado), muitas vezes feito por mulheres, e invisibiliza sua importância econômica.
Para ela, a crise do cuidado é um dos sintomas mais graves desse estágio do capitalismo.
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Visões alternativas sobre o capitalismo tardio
Economistas liberais e autores de centro-direita argumentam que a globalização e a inovação tecnológica, características centrais desse período, contribuíram para a redução da pobreza extrema em várias regiões do mundo, especialmente na Ásia, e para o aumento da expectativa de vida, da conectividade global e do acesso a bens e serviços.
Para esses pensadores, o dinamismo do setor privado impulsionou descobertas científicas, o avanço da medicina, a revolução digital e a criação de novos mercados e formas de trabalho, como o empreendedorismo digital e o trabalho remoto, que podem oferecer mais autonomia e flexibilidade ao trabalhador.
Autores como Deirdre McCloskey ressaltam que a chamada “Grande Enriquecimento”, um crescimento sem precedentes da renda per capita nos últimos séculos deve-se ao espírito inovador e à valorização da liberdade econômica, elementos centrais do capitalismo moderno.
Já para Thomas Sowell, economista de orientação liberal-conservadora, o foco em redistribuição pode obscurecer o papel que as instituições de mercado têm no combate à pobreza.
Ele argumenta que a criação de riqueza por meio da produtividade e do mérito é mais eficaz, a longo prazo, do que políticas baseadas apenas na redistribuição.
Capitalismo tardio no Brasil
No cenário brasileiro, o conceito de capitalismo tardio foi aprofundado pelo economista e sociólogo João Manuel Cardoso de Mello, cuja obra O Capitalismo Tardio (1982) é considerada uma referência clássica para entender as especificidades do desenvolvimento econômico do país.
Sua análise não se limita a uma descrição econômica, mas propõe um estudo integrado que combina economia, sociologia e história, com foco nas condições estruturais que moldam o capitalismo brasileiro.
Mello argumenta que o capitalismo no Brasil possui características próprias que o diferenciam dos modelos europeus ou norte-americanos. Ele identifica três elementos centrais dessa especificidade:
- Dependência estrutural : para Mello, a economia brasileira está marcada por uma inserção subordinada no mercado mundial, caracterizada pela exportação de produtos primários e pela dependência tecnológica e financeira. Essa condição estrutural não é fruto apenas de escolhas políticas, mas de um padrão histórico de integração desigual à economia global.
- Concentração de renda e poder econômico: capitalismo tardio no Brasil é acompanhado de um processo intenso de concentração de riqueza e poder em poucos grupos empresariais, aprofundando desigualdades sociais e regionais. Mello evidencia como essa concentração impacta a distribuição de oportunidades, o acesso a direitos e a dinâmica da política econômica.
- Persistência da desigualdade social: apesar de processos de modernização econômica, como industrialização e avanços tecnológicos, o Brasil mantém profundas desigualdades sociais. Para Mello, isso é uma marca do capitalismo tardio brasileiro, o progresso técnico e produtivo convive com exclusão social estrutural.

Além disso, Mello critica a abordagem da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), que predominou nos estudos econômicos latino-americanos durante grande parte do século XX. Ele sustenta que a teoria cepalina não consegue explicar a profundidade das contradições brasileiras, pois trata o subdesenvolvimento como um estágio a ser superado, sem reconhecer a natureza dependente e desigual da inserção brasileira no capitalismo global (MELLO, 1982).
Em sua análise, o capitalismo tardio no Brasil é resultado de uma dinâmica histórica específica , um processo em que modernização, concentração econômica e desigualdade coexistem.
Isso leva Mello a concluir que, no caso brasileiro, o capitalismo tardio não pode ser compreendido apenas pelas transformações tecnológicas ou culturais analisadas por Mandel, Jameson e outros, mas exige considerar o contexto histórico, a estrutura econômica e a posição subordinada do país no capitalismo mundial.
Diante disso, Mello tem se mostrado preocupado com os rumos do Brasil, especialmente diante de desafios econômicos e sociais. Em entrevista de 2021, ele afirmou que o país está enfrentando um retrocesso significativo, comparando a situação atual com a de mais de cem anos atrás, e destacou a necessidade de dinamizar o gasto social, os investimentos em infraestrutura e a reestruturação da indústria para a reconstrução do país.
O capitalismo tardio é um conceito central para entender o mundo contemporâneo. Ele nos ajuda a compreender por que o trabalho se tornou mais instável, por que o consumo se tornou uma forma de identidade, e por que as crises sejam econômicas, sociais ou ambientais, parecem mais frequentes.
Entender esse conceito é um passo importante para refletir sobre os limites do sistema atual e imaginar alternativas. Afinal, se o capitalismo tardio é uma fase histórica, ele também pode ser superado. A história continua sendo escrita, as escolhas políticas e sociais de hoje moldam o futuro de todos.
E aí você conseguiu entender o que é o capitalismo tardio? Deixe suas dúvidas e/ou reflexões nos comentários!
Referências
- BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
- Esquerda – O mundo da obesidade no capitalismo tardio
- FRASER, Nancy. Fortunas do Feminismo. São Paulo: Boitempo, 2014.
- HARVEY, David. O enigma do capital. São Paulo: Boitempo, 2011.
- Jacobina – Ernest Mandel e a economia do capitalismo tardio
- JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.
- MANDEL, Ernest. O Capitalismo Tardio. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
- Marco zero – A íntima relação entre o trabalho precarizado e o sofrimento psíquico
- SILVA, Aristóteles de Almeida- O capitalismo tardio e sua crise: Estudo das interpretações de Ernest Mandel e a de Jürgen Habermas.
- The University of Sidney – Desvendando o capitalismo tardio