Você conhece o capitalismo tardio e a era do cansaço?

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Você já ouviu falar em capitalismo tardio? O termo pode soar técnico, mas descreve uma realidade bastante presente: a desigualdade social crescente, a precarização do trabalho, as crises econômicas recorrentes, a mercantilização da cultura e até a forma como usamos nosso tempo e nosso corpo.

Desde os anos 1970, intelectuais e militantes têm usado essa expressão para se referir à fase mais recente do capitalismo, marcada por globalização intensa, poder das corporações multinacionais, avanço da financeirização e transformação radical das formas de trabalhar e consumir.

Para muitos autores, como o economista Ernest Mandel e o filósofo Fredric Jameson, essa etapa vai além de mudanças econômicas: ela altera a vida cotidiana, as relações sociais e até as formas de pensar e sentir.

No capitalismo tardio, não compramos apenas bens; consumimos identidades, estilos de vida e experiências. Outros, como Habermas , enfatizam as contradições de racionalização e colonização da vida cotidiana.

Neste texto, vamos explorar tanto as críticas quanto os diferentes olhares sobre esse conceito.

Vamos lá?!

O que é o Capitalismo Tardio?

Karl Marx analisou pela primeira vez o último estágio do capitalismo em sua obra O Capital: Uma Crítica da Economia Política, no qual uma aceleração na rotação do capital, concentrando a riqueza nas mãos de poucos, resultaria em uma tendência contínua a crises. Isso, acreditava ele, acabaria por levar o sistema ao colapso.

No entanto, Marx não utilizou o termo “capitalismo tardio”. Ele foi criado por Werner Sombart, economista histórico alemão, que definiu três períodos do sistema econômico capitalista: capitalismo inicial ou protocapitalismo, capitalismo avançado e capitalismo tardio, que referia-se às privações econômicas, políticas e sociais associadas às consequências da Primeira Guerra Mundial.

Ele passou a ser amplamente utilizado após a publicação do livro O Capitalismo Tardio, de Ernest Mandel, em 1972. Para Mandel, trata-se de uma fase marcada pela expansão global do capital, pela centralidade das grandes corporações multinacionais e pela financeirização da economia.

Mas o conceito foi além da economia. Outros autores, como o filósofo Fredric Jameson, usaram a expressão para pensar também as transformações culturais e sociais desse período. Jameson argumenta que o capitalismo tardio é a fase em que o consumo, a estética e até as emoções passam a ser moldadas pelo mercado, uma fusão entre capitalismo e cultura que marca a era do “pós-modernismo”.

Mais recentemente, Jonathan Crary, em seu livro”Last Capitalism and the Ends of Sleep” (Capitalismo Tardio e os Fins do Sono), argumenta que nossa versão atual de capitalismo 24 horas por dia, 7 dias por semana, possibilitada por tecnologias intrusivas e mídias sociais, está corroendo necessidades humanas básicas, como o sono suficiente, tornando o trabalhador alienado.

Em resumo, o capitalismo tardio representa: uma economia globalizada e interligada; o predomínio do setor financeiro sobre a produção material; a incorporação da tecnologia e da informática nos processos produtivos; a flexibilização e precarização do trabalho; e a mercantilização da cultura, do tempo livre e da vida cotidiana.

Veja também: A origem do sistema capitalista

Como funciona o trabalho no capitalismo tardio?

A lógica do trabalho mudou profundamente no capitalismo tardio. Se, no modelo fordista (característico da primeira metade do século XX), o trabalhador tinha uma jornada regular, estabilidade e acesso a direitos sociais, no capitalismo tardio o cenário se torna mais instável e fragmentado.

Principais características:

  • Precarização das relações de trabalho: cresce o número de contratos temporários, terceirizações e trabalhos informais. A segurança trabalhista diminui, e com ela os direitos.
  • Uberização”: trabalhadores deixam de ser empregados e se tornam “parceiros” de plataformas digitais, como Uber, iFood e Rappi. Isso significa menos direitos, menos proteção social e jornadas incertas.
  • Automação e Inteligência Artificial: o avanço da tecnologia substitui trabalhadores humanos por máquinas ou algoritmos, o que reduz custos para as empresas, mas aumenta o desemprego estrutural.
  • Trabalho remoto e vigilância digital: mesmo fora do ambiente físico da empresa, trabalhadores continuam conectados e monitorados. O controle por metas, desempenho e produtividade se intensifica.
  • Trabalho emocional e simbólico: cresce o setor de serviços e da economia criativa, em que o trabalhador deve não só produzir, mas também demonstrar empatia, simpatia e engajamento, algo chamado por alguns teóricos de “trabalho afetivo”.

Veja também: Fim da escala 6×1: entenda a proposta da deputada Erika Hilton

Essa nova configuração leva a um cenário onde há empregos, mas poucas carreiras; trabalho, mas pouca segurança; produtividade, mas alto esgotamento físico e mental.

Segundo sociólogo Gabriel Peters, professor de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), depressão e o capitalismo estão intimamente ligados pois “em vez de falar da falta de direitos, se elogia a flexibilidade e a suposta autonomia que se tem para construir o seu próprio horário”.

Charfe de um entregador de comida andando de bicicleta e com vários malefícios em volta daa charge do emprego em questão
Caracteristicas do trabalho tardio – Reprodução Jus Brasil

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As fases do capitalismo: uma linha do tempo

O capitalismo, como sistema econômico, passou por diversas fases desde seu surgimento. Entender essas transformações ajuda a compreender o que distingue o “capitalismo tardio” das etapas anteriores.

1. Capitalismo Comercial (séculos XV a XVIII)

Fase de acumulação primitiva de capital, marcada pelas grandes navegações, colonização, tráfico transatlântico de escravizados e comércio intercontinental.

O lucro vinha da troca de mercadorias e da exploração colonial.

2. Capitalismo Industrial (século XVIII até meados do século XX)

Com a Revolução Industrial, a produção passa a ser baseada em fábricas, mecanização e trabalho assalariado. O foco é na produção em massa de bens de consumo. Surge o proletariado industrial urbano.

3. Capitalismo Monopolista e de Estado (1900–1970)

Após a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, o Estado passa a intervir mais na economia (modelo keynesiano). Grandes corporações dominam o mercado e o fordismo se consolida: produção em série, altos salários, sindicatos fortes e consumo em massa.

4. Capitalismo Tardio (1970 até hoje)

Com a crise do modelo anterior, emerge um novo regime: globalizado, neoliberal, financeirizado, tecnológico. A produção se descentraliza (cadeias globais), o Estado encolhe, os sindicatos perdem força e o capital se valoriza mais no setor financeiro do que na produção real.

Entenda mais sobre a mais-valia

A contribuição de Ernest Mandel

Ernest Mandel (1923–1995) foi um economista e militante marxista belga que teve grande influência nos estudos sobre economia política. Tinha a teoria das grandes ondas onde diz que capitalismo se desenrola não apenas por meio de ciclos econômicos curtos com duração de sete a dez anos, mas também por meio de variações de longo prazo de cerca de cinquenta anos (aproximadamente vinte e cinco anos para cima e vinte e cinco anos para baixo).

Em seu livro O Capitalismo Tardio, Mandel propõe que o capitalismo passou por três grandes ondas de desenvolvimento:

  1. Capitalismo liberal concorrencial (século XIX): marcado pela livre concorrência entre pequenas empresas e pelo domínio do capital industrial;
  2. Capitalismo monopolista (início do século XX): as empresas crescem, se fundem e formam monopólios; o capital financeiro começa a se fortalecer;
  3. Capitalismo tardio (pós-Segunda Guerra): desenvolvimento tecnológico acelerado, planejamento corporativo, consumo em massa, globalização das empresas e financeirização da economia.

Mandel via o capitalismo tardio como uma tentativa de resolver as contradições do sistema por meio da expansão global e do aumento do consumo.

No entanto, ele alertava que essas “soluções” apenas adiavam novas crises, pois a lógica da superacumulação e da exploração permanecia intacta. A intervenção do Estado na economia é limitada, e quando ela se desvia das previsões ele pode intervir de forma restrita por meio da mudança governamental relativa à moeda, ao crédito, aos impostos, ao comércio exterior ou à atividade pública de investimentos

O conceito de capitalismo regulado pelo Estado é apropriado por Habermas onde destaca as seguintes características para o estágio avançado do processo de acumulação: (a) processo de concentração de empresas (surgimento das corporações nacionais e transnacionais); (b) organização do mercado de bens, de capitais e trabalho; (c) intervenção estatal na economia para intervir nas crescentes falhas de funcionamento do mercado.

Imagem de um homem sentado, de óculos e terno, olhando para o lado. Texto: Você conhece o capitalismo tardio e a era do cansaço?
Economista Ernest Mandel. Imagem: Wikipedia

Outros autores e perspectivas

Embora o termo “capitalismo tardio” seja amplamente utilizado por autores marxistas e críticos do sistema capitalista, ele também enfrenta críticas de pensadores liberais e conservadores. Essas críticas se concentram principalmente em três frentes: críticas conceituais, críticas empíricas e críticas ideológicas.

Fredric Jameson (filósofo e crítico cultural)

Em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, Jameson argumenta que a cultura contemporânea está profundamente imersa na lógica capitalista.

A arte, o entretenimento e até a política são “colonizados” pelo mercado. Tudo vira produto. Para ele, o capitalismo tardio é a era da superficialidade, da estética do consumo e do esvaziamento das utopias.

David Harvey (geógrafo marxista)

Harvey analisa o capitalismo tardio como parte do processo de acumulação por despossessão: em vez de gerar riqueza por meio da produção, o capital cresce apropriando bens públicos, privatizando serviços, destruindo direitos trabalhistas e promovendo especulação financeira.

Bauman conecta o capitalismo tardio à ideia de “modernidade líquida” , uma época em que tudo é volátil: empregos, relações afetivas, valores, identidades.

Isso cria uma sensação constante de insegurança e isolamento, mesmo em meio à hiperconectividade.

Nancy Fraser (filósofa feminista)

Fraser aponta como o capitalismo tardio também se apropria do trabalho reprodutivo (doméstico, afetivo, de cuidado), muitas vezes feito por mulheres, e invisibiliza sua importância econômica.

Para ela, a crise do cuidado é um dos sintomas mais graves desse estágio do capitalismo.

Veja também: ODS 8: como garantir trabalho decente para todos?

Visões alternativas sobre o capitalismo tardio

Economistas liberais e autores de centro-direita argumentam que a globalização e a inovação tecnológica, características centrais desse período, contribuíram para a redução da pobreza extrema em várias regiões do mundo, especialmente na Ásia, e para o aumento da expectativa de vida, da conectividade global e do acesso a bens e serviços.

Para esses pensadores, o dinamismo do setor privado impulsionou descobertas científicas, o avanço da medicina, a revolução digital e a criação de novos mercados e formas de trabalho, como o empreendedorismo digital e o trabalho remoto, que podem oferecer mais autonomia e flexibilidade ao trabalhador.

Autores como Deirdre McCloskey ressaltam que a chamada “Grande Enriquecimento”, um crescimento sem precedentes da renda per capita nos últimos séculos deve-se ao espírito inovador e à valorização da liberdade econômica, elementos centrais do capitalismo moderno.

Já para Thomas Sowell, economista de orientação liberal-conservadora, o foco em redistribuição pode obscurecer o papel que as instituições de mercado têm no combate à pobreza.

Ele argumenta que a criação de riqueza por meio da produtividade e do mérito é mais eficaz, a longo prazo, do que políticas baseadas apenas na redistribuição.

Capitalismo tardio no Brasil

No cenário brasileiro, o conceito de capitalismo tardio foi aprofundado pelo economista e sociólogo João Manuel Cardoso de Mello, cuja obra O Capitalismo Tardio (1982) é considerada uma referência clássica para entender as especificidades do desenvolvimento econômico do país.

Sua análise não se limita a uma descrição econômica, mas propõe um estudo integrado que combina economia, sociologia e história, com foco nas condições estruturais que moldam o capitalismo brasileiro.

Mello argumenta que o capitalismo no Brasil possui características próprias que o diferenciam dos modelos europeus ou norte-americanos. Ele identifica três elementos centrais dessa especificidade:

  1. Dependência estrutural : para Mello, a economia brasileira está marcada por uma inserção subordinada no mercado mundial, caracterizada pela exportação de produtos primários e pela dependência tecnológica e financeira. Essa condição estrutural não é fruto apenas de escolhas políticas, mas de um padrão histórico de integração desigual à economia global.
  2. Concentração de renda e poder econômico: capitalismo tardio no Brasil é acompanhado de um processo intenso de concentração de riqueza e poder em poucos grupos empresariais, aprofundando desigualdades sociais e regionais. Mello evidencia como essa concentração impacta a distribuição de oportunidades, o acesso a direitos e a dinâmica da política econômica.
  3. Persistência da desigualdade social: apesar de processos de modernização econômica, como industrialização e avanços tecnológicos, o Brasil mantém profundas desigualdades sociais. Para Mello, isso é uma marca do capitalismo tardio brasileiro, o progresso técnico e produtivo convive com exclusão social estrutural.
Charge representando o mundo 24/7 do capitalismo tardio - Reprodução Tiago Lucas
Charge representando o mundo 24/7 do capitalismo tardio. Imagem: Tiago Lucas

Além disso, Mello critica a abordagem da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), que predominou nos estudos econômicos latino-americanos durante grande parte do século XX. Ele sustenta que a teoria cepalina não consegue explicar a profundidade das contradições brasileiras, pois trata o subdesenvolvimento como um estágio a ser superado, sem reconhecer a natureza dependente e desigual da inserção brasileira no capitalismo global (MELLO, 1982).

Em sua análise, o capitalismo tardio no Brasil é resultado de uma dinâmica histórica específica , um processo em que modernização, concentração econômica e desigualdade coexistem.

Isso leva Mello a concluir que, no caso brasileiro, o capitalismo tardio não pode ser compreendido apenas pelas transformações tecnológicas ou culturais analisadas por Mandel, Jameson e outros, mas exige considerar o contexto histórico, a estrutura econômica e a posição subordinada do país no capitalismo mundial.

Diante disso, Mello tem se mostrado preocupado com os rumos do Brasil, especialmente diante de desafios econômicos e sociais. Em entrevista de 2021, ele afirmou que o país está enfrentando um retrocesso significativo, comparando a situação atual com a de mais de cem anos atrás, e destacou a necessidade de dinamizar o gasto social, os investimentos em infraestrutura e a reestruturação da indústria para a reconstrução do país.

O capitalismo tardio é um conceito central para entender o mundo contemporâneo. Ele nos ajuda a compreender por que o trabalho se tornou mais instável, por que o consumo se tornou uma forma de identidade, e por que as crises sejam econômicas, sociais ou ambientais, parecem mais frequentes.

Entender esse conceito é um passo importante para refletir sobre os limites do sistema atual e imaginar alternativas. Afinal, se o capitalismo tardio é uma fase histórica, ele também pode ser superado. A história continua sendo escrita, as escolhas políticas e sociais de hoje moldam o futuro de todos.

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Conteúdo escrito por:

Maicon Araújo Nunes de Jesus

Jequieense, filho de Maria Lúcia e apaixonado por esportes. Tutor da cadelinha Amora, sigo um estilo de vida vegano e mantenho uma postura anticapitalista. Como estudante de direito, trago a perspectiva de quem vive na periferia e carrega uma identidade étnico-racial forte, almejando uma justiça processual que se cumpra. Influenciado pelo Hardcore, que molda minha escrita e reflexão em prol de um mundo mais digno.
Jesus, Maicon. Você conhece o capitalismo tardio e a era do cansaço?. Politize!, 28 de outubro, 2025
Disponível em: https://www.politize.com.br/capitalismo-tardio/.
Acesso em: 28 de out, 2025.

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