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A história do aborto no Brasil e no mundo

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A prática do aborto já é milenar, porém pouca gente conhece sua história. Neste texto, a Politize! disseca os momentos mais importantes da história do aborto no  Brasil e no mundo, vem com a gente!.

Veja também: Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe: entenda!

O aborto na Antiguidade

Aborto no Brasil e no mundo. Imagem: R. Parrado.
Aborto no Brasil e no mundo. Imagem: R. Parrado.

Na Antiguidade (4000 a.C. a 476 d.C.), a função de abortista funcionava assim como a de parteira, e muitas vezes era exercida pela mesma pessoa. Apesar do ato ter sido comum na época, é difícil encontrar registros disso, já que foi proibido por diversos grupos em diversas épocas que tinham o interesse em desaparecer com registros de uma prática que eles rejeitavam.

A historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),  explica que há relatos de mulheres “que praticavam abortos tanto para prostitutas como para outras mulheres que engravidavam fora do casamento”.

Utilizavam ervas e outros frutos naturais que facilitavam o procedimento e não causavam danos permanentes às mulheres. Estas ervas e frutos eram estudados e utilizados a partir de conhecimentos ancestrais.

Rosin ressalta, por exemplo, que entre os indígenas pré-colombianos “não havia nenhuma restrição ao aborto”, e que a prática era “uma questão resolvida entre mulheres e, mais tarde, por parteiras”.

Veja também nosso vídeo sobre os direitos das mulheres!

Grécia e Roma Antiga

Nesse período, o aborto foi considerado imoral, apesar de amplamente praticado, especialmente entre mulheres preocupadas com a aparência física, socialmente muito importante. 

Com a popularização da prática, os legisladores passaram a considerar o aborto, um ato criminoso, através da Lei Cornélia. Essa lei punia com pena de morte a mulher que consentisse com a prática abortiva. A quem praticasse o ato, aplicava-se a mesma sanção, porém com a possibilidade de abrandamento caso a gestante não falecesse no processo abortivo.

Tanto na Grécia quanto na Roma antiga, o feto era considerado parte do corpo da mulher, e então parte da propriedade do homem. Desta forma, o aborto só podia ocorrer com autorização do marido.

Novo Mundo

Na América colonial, por exemplo, o aborto era um tabu. Isso se dava ao fato de a prática ter sido incorporada por famílias de colonizadores, especialmente no caso de interrupção de gravidezes oriundas de adultérios.

A ética do aborto ligada à moral religiosa surgiu nos primórdios do cristianismo. Por influência de Tomás de Aquino, achava-se que o feto recebia a alma após 60 dias de sua geração. Assim, se feito antes dos 60 dias, o aborto não era visto como pecado. Essa ideia permaneceu até 1588.

Além disso, muitas doutrinas religiosas medievais consideravam os movimentos da criança em gestação no ventre da mãe como um parâmetro para diferenciar quando a prática do aborto deixava de ser aceitável.

O historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, disse em uma entrevista à BBC News que a “questão religiosa foi sendo construída ao longo do tempo”. O mundo antigo era um mundo onde o aborto e o infanticídio eram práticas muito comuns. Isso aparece nos filósofos gregos e no mundo romano (…) O cristianismo se apresenta como uma tentativa de acolher mulheres que não queriam abortar.” Assim, a Bíblia traz em suas escrituras que deve ser punido quem praticar ou for complacente com a prática abortiva.

Século XIX

No século XIX, surgiram leis mais específicas contra o aborto, inicialmente na Inglaterra e países próximos. Em 1803 foi proibido na Inglaterra e podia ser punido até mesmo com a pena de morte. Lá, o aborto em caso de risco para a gestante só foi autorizado por lei a partir dos anos 1920.

A opinião social e religiosa sobre o aborto se concretizou quando, em 1869, o papa Pio IV declarou todos os abortos como assassinatos. A frase “a vida humana começa no momento da concepção” não foi criada pelo Vaticano, mas surgiu de uma campanha iniciada por médicos no século XIX e ganhou força com os católicos.

No decorrer do século XIX, no auge da revolução científica, médicos, o clero e reformadores sociais, entre outros, conseguiram aprovar leis que proibiram totalmente a prática do aborto.

Século XX

No final do século XIX e no início do século XX, surgiram na Europa, especialmente na Inglaterra e França, movimentos feministas defendendo o direito da mulher ao aborto. A partir da década de 1920, nos países escandinavos e socialistas, houve flexibilidade maior na legislação. Na Rússia, com a Revolução de 1917, o aborto deixou de ser considerado crime e essa legislação influenciou os demais países socialistas nos anos 50. A Suécia e a Dinamarca, países predominantemente protestantes, por volta de 1930, conseguiram uma lei a cerca do aborto com mais facilidade que os países católicos.

O marco mais conhecido aconteceu somente em 1967, no estado do Colorado, nos Estados Unidos, quando foi aprovada a primeira lei permissiva do aborto. Entre 1967 e 1970, cerca de metade dos estados americanos legalizaram o aborto. Porém, o aborto só poderia acontecer se fosse legalmente concedido até um determinado estágio da gestação, geralmente em torno do primeiro trimestre.

Em 1973, a Suprema Corte de Justiça dos EUA obrigou todos os estados americanos a adotarem a prática do aborto durante todos os nove meses de gravidez. Neste momento, o aborto se tornou um direito constitucional da mulher nos EUA.

Isso aconteceu devido ao caso Roe versus Wade, em 1970, quando  Norma McCorvey, uma garçonete de Dallas, demandou o  direito de abortar uma gestação fruto de estupro. Henry Wade, promotor do Texas, era completamente contra o aborto. O caso chegou ao Supremo Tribunal, que em janeiro de 1973 decidiu, sete votos contra dois, a favor de Norma, garantindo o aborto até a 23ª semana. Porém, o resultado do processo chegou tarde e McCorvey deu à luz a uma menina em junho de 1970, que deu em adoção.

Sob o pseudônimo com que denunciou, Jane Roe, se transformou em um símbolo da luta pelos direitos reprodutivos das mulheres e é conhecida hoje como a “decisão mais controversa da história do Supremo”.

A decisão foi contestada inúmeras vezes ao passar dos anos, sendo derrubada em 24 de junho de 2022, quando, por seis votos a três, a Corte retirou o status constitucional deste direito, que passou a ser regulado a nível estadual. Com essa decisão, estados americanos estão, aos poucos, derrubando este direito. No dia seguinte à decisão, diversas clínicas que realizavam o procedimento foram fechadas.

Aborto como direito constitucional na França

Se a Suprema Corte dos Estados Unidos retirou o status constitucional do direito ao aborto, o evento também acendeu alertas e levou a França a fazer exatamente o oposto. Lá, o procedimento é legal desde 1975. Contudo, considerando que alterações de leis e regulações infraconstitucionais são possíveis, o parlamento francês decidiu proteger ainda mais esse direito de terminar uma gestação ao incluí-la como uma “liberdade garantida” no artigo 34 da Constituição.

Com isso, a França tornou-se o primeiro país do mundo a incluir o direito ao aborto explicitamente na Constituição. A decisão, que se deu por incríveis 780 votos favoráveis versus 72 contrários, reflete a opinião pública no país, onde 85% da população é favorável à mudança.

Além de protestos de setores conservadores a nível nacional, a decisão também repercutiu internacionalmente. O Vaticano, por exemplo, disse que “inexiste ‘direito’ de retirar uma vida humana” e pediu que “todos os governos e todas as tradições religiosas façam o seu melhor para que, nesta fase da história, a proteção da vida se torne uma prioridade absoluta”.

De toda forma, o evento é um ponto de inflexão para as liberdades individuais – especialmente os direitos reprodutivos – ao redor do mundo. Sua importância pode ser melhor compreendida ao saber que emendas constitucionais, por demandarem um processo muito difícil, são extremamente raras na França. Desde a promulgação da Constituição, em 1958, houve apenas 17 emendas, sendo a última em 2008.

O aborto no Brasil: uma linha do tempo

1940

A primeira vez em que o aborto foi tema no sistema legal foi em 1940, quando o Código Penal estabelece, oficialmente, que aborto é crime, com exceções a casos de estupro ou quando a vida da gestante estiver em risco.

1987

A primeira mudança nesse tema aconteceu há quase 50 anos, na mesma época em que a nova Constituição entrou em pauta. A discussão sobre o aborto surgiu durante a Assembleia Constituinte, quando feministas debatiam a interpretação do direito ao aborto como parte do direito à saúde.

Ao mesmo tempo, a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) tentou incluir na Constituição a proteção do direito à vida desde a concepção. A decisão acabou sendo algo intermediário, resultando em um acordo das feministas de não mencionar aborto no texto constitucional nem estabelecer um marco de proteção inicial à vida.

1990 e 2000

É apenas nas décadas de 1990 e 2000 que o Brasil recebe seus primeiros serviços de aborto legal. Para efetuar um aborto, mulheres precisam recorrer à justiça individualmente, porém apenas em caso de malformações fetais incompatíveis com a vida. Demandas foram feitas no Congresso Nacional para expandir as hipóteses do aborto legal já previstas, mas nenhuma foi atendida.

2004

A primeira demanda individual de acesso ao aborto chegou ao Supremo Tribunal Federal para um caso de anencefalia. Com a demora da justiça em seguir com o caso, a mulher acabou passando por um parto e o feto não sobreviveu. O caso inspirou uma ação constitucional pedindo que  interrupção da gestação em caso de anencefalia não seja considerada aborto.

2008

O Supremo decide que, seguindo a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) n. 3510, a pesquisa de células-tronco embrionárias não viola o direito à vida. Apesar do caso não ser sobre aborto especificamente, é importante para o tema por diferenciar  fases de desenvolvimento: embrião, feto e pessoas nascidas.

2012

O Supremo autoriza a interrupção da gestação para os casos de anencefalia, marcando a primeira alteração à Lei Penal do aborto desde o Código Penal de 1940. O tribunal entende que essa autorização protege os direitos à vida, à dignidade da pessoa humana, à saúde e ao direito de não ser submetida a tortura.

Outubro de 2016

No julgamento do Recurso Especial n. 1.467.888 de Goiás, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) afirmou que a decisão de autorizar o aborto nos casos de anencefalia se aplicava também a outras malformações incompatíveis com a vida.

Isso porque o tribunal condenou um padre a pagar indenização de danos morais a uma mulher e seu marido por haver impedido, com uso indevido de habeas corpus, um aborto que havia sido autorizado pela justiça.

A mulher teve sua gravidez diagnosticada com uma síndrome grave, incompatível com a vida fora do útero, razão pela qual obteve autorização para interrompê-la. Sem jamais ter conhecido o casal, o padre impetrou habeas corpus para interromper o procedimento. A mulher passou 11 dias em trabalho de parto como consequência disso. Ao reconhecer que a mulher tinha direito a ter realizado o aborto e que o padre deveria indenizá-la, o STJ estendeu a decisão do Supremo de 2012 a outras malformações incompatíveis com a vida, e não só anencefalia.

Novembro de 2016

No julgamento do habeas corpus n. 124.306, o Supremo entendeu que não cabia a prisão preventiva de funcionários de uma clínica de aborto clandestina no Rio de Janeiro. Além disso, a maioria da turma da corte seguiu o voto-vista que argumentou pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto nos três primeiros meses de gestação, por violar direitos fundamentais das mulheres.

Apesar de não ter efeito vinculante, a decisão representa a primeira vez que a tese foi defendida durante um julgamento da corte.

Leia também: Direitos da mulher: avanços e retrocessos na legislação e políticas públicas

2017

É apresentada ao Supremo a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação por violar direitos fundamentais das mulheres, especialmente o direito à dignidade e à cidadania. A ação, que foi discutida em audiências públicas do Supremo em agosto de 2018, segue pendente de julgamento.

Atualmente

No Brasil, a interrupção da gestação somente é permitida em três casos:

  • Casos de estupro;
  • Risco de morte para a gestante;
  • Feto diagnosticado com anencefalia fetal.

Porém, mesmo nos casos que se encaixam no perfil, há muitos obstáculos para concretizar o aborto. Vítimas de violência sexual, por exemplo, são discriminadas e não conseguem interromper a gestação resultado de estupro por negligência, omissão e desinformação, segundo uma reportagem do portal Catarinas.

Veja também nosso vídeo sobre violência contra a mulher!

Além disso, muitas vezes, as pessoas grávidas que buscam um aborto podem desistir do processo por vergonha ou intimidação, algo que acontece com certa frequência quando essas são crianças ou não têm acesso à informação. E há projetos de lei no Congresso que buscam tanto descriminalizar o aborto quanto fortalecer ainda mais as regras para o aborto já previstas na legislação brasileira, mas não houve grandes mudanças no cenário nos últimos anos.

Como foi dito acima, a história do aborto é complexa e cheia de nuances. Ficou com alguma dúvida? Gostou do conteúdo? Comente aqui!

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Jornalista e defensora dos direitos humanos, acredito que uma boa comunicação e acesso a informação podem mudar o mundo. Sou paulista e descendente de árabe. Meu coração dividido por essa duas culturas é inteiramente apaixonado pelas pessoas e pelas artes.

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22 abr. 2024

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