Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
8 de setembro de 2020

COMPARTILHE:

Inciso LXVI – Liberdade provisória

"Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”

LIBERDADE PROVISÓRIA

O inciso LXVI do artigo 5º da Constituição garante a liberdade provisória – com ou sem fiança – para os casos definidos em lei. Dessa forma, o presente inciso deriva da presunção de inocência e protege o direito à liberdade, concedendo a cidadãos investigados ou acusados da prática de crimes o direito de responder ao processo em liberdade.

Quer saber mais sobre como a Constituição define este direito e por que ele é tão importante, bem como a sua história e como é aplicado na prática? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série do projeto “Artigo Quinto”.

Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros, por meio de textos com uma linguagem clara.

O QUE É O INCISO LXVI?

O inciso LXVI do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:

“ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.”

Esse inciso possibilita que cidadãos investigados ou acusados da prática de crimes tenham o direito de responder ao processo em liberdade, até que uma decisão final estabelecendo e fundamentando a culpa – denominada sentença penal condenatória – seja tomada pelo juiz. Antes dessa decisão, existem fases processuais em que o acusado tem a oportunidade de se defender perante a Justiça.

Ressalte-se que há muitas críticas que estudiosos do direito – os “doutrinadores” – fazem à locução “liberdade provisória”. Elas partem da ideia de que o adjetivo “provisória” seria inadequado em um regime jurídico protetivo das liberdades individuais. Isso porque, na democracia, a liberdade é a regra, e o excepcional é sua privação, que somente pode ocorrer nos casos previstos em lei. De todo modo, a nossa Constituição manteve o uso da expressão, a qual já estava incorporada à nossa cultura jurídica desde legislações processuais penais de tempos anteriores.

Para compreender este inciso, vale lembrar de outro direito do artigo 5º, o princípio da presunção da inocência. Ele define que nenhum acusado pode ser considerado culpado até que a sentença final da condenação seja estabelecida (inciso LVII). Sendo a liberdade o estado natural da pessoa humana, ela é a regra, e a prisão é exceção. 

Dessa maneira, toda prisão em nosso sistema deve preencher requisitos previstos em lei e ser muito bem fundamentada. Do contrário, é uma prisão ilegal. Caso isso ocorra, o indivíduo deverá ser solto, respeitando o inciso LXV do artigo 5º, que abordamos no texto anterior.

Mesmo que uma pessoa seja pega cometendo um crime (flagrante delito), isso não significa necessariamente que ela será imediatamente presa e processada. A prisão é feita para interromper a prática do crime e encaminhar o suspeito às autoridades policiais. No entanto, esse momento é apenas o início da investigação das circunstâncias do crime. A pessoa pode ter agido em legítima defesa ou pode haver outras razões justificáveis para suas ações. Além disso, é possível que o policial tenha interpretado de forma equivocada a situação, vendo comportamento criminoso onde talvez não houvesse.

Assim, mesmo em casos de flagrante delito, a regra processual continua sendo a de devolver a pessoa à liberdade após devidamente registrados os fatos e identificado o suspeito. Depois disso, ele terá oportunidade de se defender em liberdade, salvo quando estiverem presentes os requisitos legais da prisão preventiva.

HISTÓRICO DESSA GARANTIA

A garantia da liberdade provisória originou-se no século XIII, na Inglaterra, quando já existia o entendimento favorável ao não encarceramento antes da condenação do réu. O artigo 29 da Magna Carta inglesa, de 1215, previa o direito fundamental à fiança, garantindo que se responda em liberdade às acusações postas contra si. Também a Declaração de Independência estadunidense (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa (1789) serviram de base para sua posterior inserção no nosso ordenamento jurídico.

Já no Brasil, este instituto esteve presente desde 1821, quando foi sido instituído que: “nenhuma pessoa livre no Brasil pode jamais ser presa sem ordem por escrito do juiz, ou Magistrado Criminal do Território, exceto somente no caso de flagrante delito, em que qualquer do povo deve prender o delinquente”. A partir desse momento – e com a posterior concretização na Constituição de 1824 –, todas as Constituições brasileiras asseguraram essa garantia à liberdade, ainda que em diferentes graus.

Entretanto, sua aplicação prática não foi, tampouco é plena. No histórico brasileiro, houve uma inversão alarmante entre a liberdade provisória e a prisão preventiva (que passou a ser “regra”). Isso lotou as prisões com réus não condenados, ou seja, em prisão preventiva, com frequência sem preencher os seus requisitos legais. Esse excesso fere a presunção de inocência e torna-se um tipo “antecipação da pena”.  

Prova disso é a pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2019, que revelou que 41,5% das 812 mil pessoas presas no Brasil não têm uma condenação criminal definitiva, ou seja, são presos provisórios.

A IMPORTÂNCIA DO INCISO LXVI

O inciso LXVI do artigo 5º protege os direitos de liberdade e de defesa do indivíduo contra a arbitrariedade do Estado, visto ser mais difícil preparar uma defesa eficaz quando se está preso. Também assegura o cumprimento de um dos direitos fundamentais mais importantes do nosso sistema democrático, o direito à liberdade de locomoção, popularmente conhecido como “direito de ir e vir”. 

A norma ainda protege o direito à dignidade humana e o princípio da presunção de inocência. Esse princípio dita que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, permitindo que o indivíduo, por meio da liberdade provisória, responda o processo criminal em liberdade. Ou seja, ninguém será considerado culpado até que o processo passe por todas as instâncias a que o condenado tem direito, resguardando, dessa forma, o direito de ampla defesa.

Além disso, é importante relembrar que a prisão preventiva, que seria a prisão durante o curso do processo criminal, não pode se confundir com a pena, a qual tem a finalidade de punir e ressocializar o indivíduo, pois o condenado sequer é considerado culpado ainda. 

Nesse sentido, a prisão preventiva tem a finalidade de garantir a ordem pública, a ordem econômica, a aplicação da lei penal, ou ainda a conveniência da instrução criminal, sempre em hipóteses em que apareçam demonstradas nos autos perturbações a esses valores que sejam atribuíveis ao investigado (por exemplo, constrangimento de testemunhas, destruição de provas e tentativa de fuga). 

Todos esses itens são previstos em lei como requisitos para a prisão preventiva e, caso não estejam presentes, a prisão não se faz necessária e o juiz deverá conceder ao indivíduo o direito da liberdade provisória. Portanto, por violar diretamente a liberdade do indivíduo, a prisão deve ser vista como a última alternativa a ser adotada e apenas no caso da observação de todos os requisitos previstos na lei.

O INCISO LXVI NA PRÁTICA

O direito previsto no referido inciso é colocado em prática, em um primeiro momento, por meio da audiência de custódia prevista no artigo 310 do Código de Processo Penal (CPP). 

Tal audiência é realizada em até 24 horas após a prisão em flagrante do indivíduo. Um de seus objetivos é conferir ao cidadão o direito da liberdade provisória caso o juiz entenda que, embora a prisão inicial tenha sido legal, não há os requisitos para que ela seja mantida. Em outras palavras, a audiência de custódia decide por decretar ou não a prisão preventiva, sempre observando os requisitos legais.  

Olhando por esse ângulo, uma maneira de efetivar o exercício do direito à liberdade provisória é a revisão periódica de todos os processos criminais em que haja presos preventivos. 

Na prática, contudo, em razão da grande quantidade de processos criminais em nosso sistema judiciário, afirma-se que as revisões seriam inviáveis. Por isso a importância de instituir políticas públicas de cooperação entre distintos órgãos. 

Um exemplo é a parceria entre a Secretaria da Administração Penitenciária e  a Defensoria Pública do Estado do Ceará entre maio e junho do ano de 2019, praticando mais de sete mil revisões processuais e penais. Essa ação garantiu o direito ao regime semiaberto a 1.187 pessoas, que estão sob o regime de monitoramento e não precisam mais voltar às unidades prisionais.

Nesse sentido, novas políticas são incentivadas pelo CNJ, buscando superar as barreiras do sistema penal brasileiro, almejando ampliar o acesso à justiça de qualidade e afastando a atual necessidade de apaziguar o anseio popular por justiça que acaba, muitas vezes, colocando atrás das grades inocentes, ou privando cidadãos de um processo penal adequado e justo.

Mais recentemente, por força de inovações trazidas pela  Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime), modificou-se o CPP para prever um prazo de revisão obrigatória sobre a manutenção da presença dos pressupostos que autorizam a decretação da prisão preventiva. 

O CPP passou a prever, em seu artigo 316, parágrafo único, que, “decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”. 

Assim, a legislação agora tem mais cuidado com a proteção do direito à liberdade de que cuida este inciso, obrigando que juízes revisem prisões processuais a cada três meses em todos os casos.

CONCLUSÃO

Conclui-se que o inciso LXVI do artigo 5º é de grande importância para que o ideal de justiça imparcial e de qualidade seja posto em prática por meio do respeito a outros direitos e princípios fundamentais, como, respectivamente, o da liberdade e da presunção da inocência. 

  • Esse conteúdo foi publicado originalmente em setembro/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.

Autores:
  1. Gabriela Teixeira Pereira
  2. Mariana Mativi
  3. Matheus Silveira da Silva

Fontes:
  1. Instituto Mattos Filho;
  2. Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;
  3. BULOS, Uadi LMMÊGO. Curso de direito constitucional, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
  4. SARLET, Ingo Wolfgang; PETTERLE, Selma Rodrigues. “A prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro: evolução e perspectivas em face da recente orientação adotada pelo STF”, in: Revista da Ajuris, n. 116, dezembro 2009

A Politize! precisa de você. Sua doação será convertida em ações de impacto social positivo para fortalecer a nossa democracia. Seja parte da solução!

Pular para o conteúdo