Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
4 de maio de 2020

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Inciso XLVII – Restrições à ação punitiva do Estado

"Não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis."

INCISO XLVII – RESTRIÇÕES À AÇÃO PUNITIVA DO ESTADO

Você sabia que a nossa Constituição dispõe de mecanismos que proíbem o Estado de aplicar determinados tipos de pena? É sobre isso que trata o inciso XLVII do artigo 5º. Ele prevê que algumas formas de punição – que serão abordadas ao longo do texto – não são permitidas no Brasil, protegendo, assim, a dignidade da pessoa humana.

Quer saber mais sobre como a Constituição faz essa restrição e por que ela é tão importante, bem como a sua história  e aplicação na prática? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série do projeto Artigo Quinto.

Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros, por meio de textos com uma linguagem fácil.

O QUE É O INCISO XLVII?

O inciso XLVII do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:

não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis

O inciso XLVII do art. 5º da Constituição Federal de 1988 restringe a ação punitiva do Estado frente aos indivíduos. Assim, embora o Estado possa punir aqueles que praticam atos ilegais (com pena de prisão, por exemplo), a Constituição o proíbe de fazê-lo de maneira perpétua ou cruel, de modo que resulte em morte ou banimento, ou, ainda, impondo àquele que cometeu o crime a realização de trabalhos forçados.

TIPOS DE PUNIÇÃO VEDADOS AO ESTADO

Nesse contexto, trataremos abaixo as restrições previstas no inciso XLVII do artigo 5º, para que possamos entendê-las de maneira mais clara e acessível.

PENA DE MORTE

A pena de morte é a retirada da vida de um indivíduo como forma de punição por uma conduta considerada ilícita pelo Estado. No Brasil, tal punição só é permitida em caso de guerra declarada, um contexto completamente excepcional em que tal punição pode ser considerada legítima, desde que respeitados, ainda, os requisitos adicionais estabelecidos pelo Código Penal Militar. Em tempos de paz, não há hipóteses em que a aplicação da pena capital seja admitida pela legislação brasileira, posição alinhada com a maioria dos países democráticos do mundo.

PENA DE CARÁTER PERPÉTUO

A pena perpétua é aquela aplicada com duração ilimitada, que acompanhará o indivíduo até o momento de sua morte, fazendo com que o condenado tenha sua liberdade permanentemente restrita, não havendo possibilidade de sua reabilitação e reinserção no convívio social.

PENA DE TRABALHOS FORÇADOS

A pena de trabalhos forçados é aquela que obriga o indivíduo a trabalhar sem qualquer benefício ou remuneração, contra a sua vontade, e por vezes de maneira análoga à escravidão.

 Não se confunde, porém, com trabalho obrigatório, que pode acompanhar a execução de penas, em conformidade com a lei, caso em que deve ser remunerado e respeitar o limite máximo de oito horas por dia, com descanso em domingos e feriados, nos termos dos artigos 28, 29 e 31 a 35 da Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal). Essa modalidade faz parte da disciplina própria do regime prisional e busca auxiliar o indivíduo em seu processo de reabilitação e reinserção na sociedade.

PENA DE BANIMENTO

A pena de banimento corresponde à retirada compulsória da nacionalidade do indivíduo, banindo-o do território nacional, com o consequente afastamento do convívio de seus familiares e de sua pátria, ferindo a garantia de seus direitos fundamentais.

PENAS CRUÉIS

Por fim, as penas cruéis são aquelas equivalentes à tortura, por ação ou omissão, e que causem sofrimento físico ou psíquico ao indivíduo. Esse tipo de punição fere diretamente o artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, segundo o qual  “ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”.

Dessa maneira, a Assembleia Constituinte de 1987, ao formular o rol de normas que compõem nossa atual Constituição e proibir essa forma de punição, agiu em conformidade com os valores do sistema internacional de proteção aos direitos humanos.

HISTÓRICO DESSES TIPOS DE PUNIÇÃO

A história da proibição das punições aqui tratadas traçou caminhos diferentes ao longo do tempo e, dessa forma, deve ser discutida separadamente para cada uma das penas atualmente vedadas pelo inciso XLVII do artigo 5º.

HISTÓRICO DA PENA DE MORTE

A pena de morte atravessa a história da própria humanidade. Há registros desse tipo de punição em um dos primeiros sistemas de leis do mundo, o Código de Hamurabi, desenvolvido na Babilônia, por volta de 1700 a.C. A pena de morte também era prevista na República Romana, ao redor de 450 a.C., como punição estatal por crimes como roubo, incêndio criminoso e falso testemunho.

No mundo ocidental, o jurista e filósofo lombardo Cesare Beccaria (1738-1794) foi pioneiro na oposição à aplicação da pena de morte, condenando seu caráter tirânico e inútil. Ele foi seguido por outros pensadores iluministas da época e suas ideias influenciaram intelectuais e políticos de toda a Europa, dos quais se pode destacar o escritor Victor Hugo, autor de obras clássicas do romantismo francês como O corcunda de Notre Dame e Os miseráveis

Em 1829, ele publicou o romance pró-abolição da pena capital O último dia de um condenado. Na história legislativa, atribui-se ao Código Penal do então Grão-ducado da Toscana (atual região da Itália), de 1786, o pioneirismo na abolição da pena de morte.

No Brasil, sob a influência dos iluministas e de ideais estabelecidos com a Independência dos Estados Unidos (1776) e a Revolução Francesa (1789), a Constituição de 1824 já previa a proibição de açoites, tortura, marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis – muito embora estas ainda fossem comumente aplicadas contra os escravos. Contudo, não dizia nada sobre a pena de morte. 

Apesar do esforço dos abolicionistas, grande parte das nações ocidentais dessa época conviveu com a pena de morte em suas legislações. No Brasil, tal punição continuou presente até a promulgação da Constituição de 1891. A última pena de morte executada oficialmente pelo Estado brasileiro ocorreu em 28 de abril de 1876, e recaiu sobre um escravo, condenado por assassinar seu senhor.

Hoje, a pena de morte pode ser aplicada somente nas hipóteses de guerra declarada e em conformidade com requisitos específicos do Código Penal Militar, como traição, favorecimento ou auxílio ao inimigo, deserção e covardia.

HISTÓRICO DA PENA DE CARÁTER PERPÉTUO

Embora a aceitação de penas de morte tenha diminuído ao redor do globo, a utilização das prisões perpétuas não seguiu o mesmo caminho. E o que é ainda pior: até hoje não há qualquer convenção internacional que imponha limites a esse tipo de punição.

Especificamente no Brasil, a prisão perpétua foi primeiramente abolida por meio da Constituição de 1934, sendo brevemente reintroduzida durante o período da ditadura militar e  novamente banida pela  Emenda Constitucional n. 11 em 1979. Atualmente, a duração máxima da pena de restrição de liberdade no Brasil é 40 anos. Ela é fixada pelo artigo 75 do Código Penal, alterado pela lei n. 13.964/2019 — até a edição desta lei, o limite era 30 anos.  

HISTÓRICO DE PENAS COM TRABALHOS FORÇADOS

Historicamente, a imposição de trabalhos forçados foi muito comum. Contudo, desde o início do século XX, houve uma preocupação generalizada da comunidade internacional em abolir formas de trabalho análogas à escravidão. 

Nesse sentido, em 1930, a Convenção sobre Trabalho Forçado definiu que os Estados-membros da Organização Internacional do Trabalho (OIT) eliminassem “o emprego do trabalho forçado ou obrigatório sob todas as suas formas no mais curto prazo possível”. Em 1957, entrou em vigor a Convenção para Abolição do Trabalho Forçado, que veda a utilização de penalidades desse tipo, em especial quando se trata de sanção por opiniões políticas.

Essa proibição só foi prevista no Brasil na Constituição de 1988. . Antes disso, porém, a Lei de Execução Penal já previa a remuneração obrigatória do trabalho da pessoa condenada, com finalidade educativa e proativa, sustentando que o interesse em trabalhar deve partir do condenado.

HISTÓRICO DA PENA DE BANIMENTO

Durante grande parte do período da Ditadura Militar (1969-1978), a pena de banimento foi comumente aplicada no Brasil. Legalmente, a punição era sustentada pelo Ato Institucional n. 13 (AI-13), de 5 de setembro de 1969. Ele  garantia ao poder executivo a autoridade para banir do território nacional o brasileiro que, comprovadamente, se tornasse inconveniente, nocivo ou perigoso à segurança nacional, sendo que o ato de banimento não dependia de qualquer análise ou apreciação judicial prévia.

Em reação a essa prática, a vedação da pena de banimento foi endereçada de forma expressa pela Constituição Federal de 1988.

HISTÓRICO DAS PENAS CRUÉIS

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a comunidade internacional posicionou-se contra os tratamentos cruéis e desumanos. Essa postura foi consolidada na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), que proibiu tais formas de tratamento.

 Já o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966) foi além, proibindo expressamente a imposição de penas cruéis. Aos poucos, essa posição foi ganhando força, até que, em 1984, a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes condenou por completo a imposição dessas formas de punição, determinando sua abolição imediata por todos os países signatários.

No Brasil, desde 1824, a Constituição do Império já vedava a aplicação desse tipo de pena, muito embora, como já abordado, tal vedação não se estendesse a todos os brasileiros e ainda hoje encontre desafios na sua implementação. Afinal, o STF já reconheceu o estado do sistema prisional brasileiro como inconstitucional, dado que  as penas privativas de liberdade “convertem-se em penas cruéis e desumanas”, nas quais os presos “tornam-se ‘lixo digno do pior tratamento possível’, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre”.

A IMPORTÂNCIA DO INCISO XLVII

De acordo com dados oficiais do Monitor da Violência, em 2021, o Brasil tinha cerca de 682 mil pessoas em seu sistema carcerário (sendo que 31,9% destas não foram condenadas). Isso significa que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo em números absolutos, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.

Nesse contexto, a superlotação e as condições desumanas de aprisionamento fazem parte da realidade carcerária brasileira. De tão frequentes as violações de direitos humanos que ocorrem no sistema carcerário brasileiro, essa situação foi denunciada pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário, de 2015, e, no mesmo ano, reconhecida como “estado de coisa inconstitucional” pelo Supremo Tribunal Federal (STF). 

Outro problema grave constatado por essa mesma CPI e intimamente ligado à superpopulação carcerária diz respeito à quantidade de presos provisórios. Hoje, 41,5% de todas as pessoas presas no Brasil não foram, ainda, condenadas em definitivo pela Justiça. 

A CPI constatou também que não se tem prestado a devida atenção ao caráter reintegrador da pena, pois  apenas 18,9% da população prisional do país trabalhava e somente 12,6% estudava. A prisão, na maioria dos casos, tem servido apenas à sua finalidade retributiva, de castigo, como uma forma de impor sofrimento para quem violou a lei penal.

Pior ainda, a negligência do Estado, aliada à presença de facções criminosas, ocasiona constantemente rebeliões e motins que compõem o cenário das mais graves tragédias do Brasil em número de mortes, como os casos do massacre do Carandiru, em São Paulo, com 111 mortos; do Centro de Recuperação Regional de Altamira, no Pará, com 57 mortos; do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, com 56 mortos; entre outros. Nesse contexto, estima-se que, entre 2014 e 2017, ao menos 6.368 homens e mulheres tenham morrido sob a custódia do Estado.

O INCISO XLVII NA PRÁTICA

Em 2017, o STF reconheceu o direito do preso à indenização por danos morais pelo Estado diante da situação degradante de encarceramento a que foi submetido. De acordo com o julgamento: 

Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento.

À parte isso, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) propôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 347, para reconhecer a violação de direitos fundamentais da população carcerária pelo Estado brasileiro. 

Diante das graves e sistemáticas violações a direitos humanos de presos provisórios e definitivos verificadas em todo o Brasil, o STF reconheceu a existência de um “estado de coisa inconstitucional” no sistema carcerário, instando as autoridades do poder executivo federal e dos governos estaduais a tomar providências para que a Constituição e as leis do país sejam cumpridas.

Uma das maneiras de se evitar a indignidade das penas de privação de liberdade no Brasil é a adoção de penas alternativas, de modo a mitigar a superlotação dos presídios e não expor ao sistema prisional os indivíduos que ainda não foram julgados ou que praticaram crimes de menor potencial ofensivo ou não violentos. Além disso, desde 2008, o CNJ vem realizando o Mutirão Carcerário, que visa à revisão de prisões de presos provisórios e definitivos e à inspeção de estabelecimentos prisionais do Estado. 

Desde então, cerca de 400 mil processos de presos já foram analisados e mais de 80 mil benefícios foram concedidos, como progressão de pena, liberdade provisória, direito a trabalho externo, entre outros. No âmbito do programa, pelo menos 45 mil presos foram libertados por já terem cumprido a pena decretada pela justiça. 

De fato, muitos são os cidadãos em todo o país que se encontram presos e têm violados seus direitos de progressão ou de livramento condicional previstos em lei. Essas violações frequentemente geram instabilidades no sistema e fazem com que a execução penal, em vez de ser ressocializadora como determina a lei, acabe por ter o efeito contrário, contribuindo para aumentar (em vez de prevenir) a dissipação da violência e da criminalidade no Brasil.

O CNJ também editou, em 2015, a Resolução n. 213, que dispõe sobre a audiência de custódia, exigindo que toda pessoa presa seja apresentada a uma autoridade judicial no prazo de 24 horas. Essa medida visa diminuir o contingente de pessoas presas provisoriamente, como forma de enfrentar a superlotação carcerária e evitar o aprisionamento desnecessário de indivíduos.

CONCLUSÃO

O inciso XLVII do artigo 5º apresenta mecanismos para regular a ação punitiva do Estado visando ao respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos e garantindo que o intuito das penas não seja a punição por si só, mas também uma maneira de reabilitar e ressocializar o condenado, bem como assegurar seu tratamento digno pelo Estado. 

Os princípios de restrição à ação punitiva do Estado são de extrema importância para que as penas sejam aplicadas de maneira adequada, respeitando a dignidade da pessoa humana, princípio indispensável para a consolidação democrática de qualquer nação.

  • Esse conteúdo foi publicado originalmente em abril/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.

Autores:
  1. Mariana Mativi
  2. Matheus Silveira
  3. Thales Dominguez

Fontes:
  1. Instituto Mattos Filho de Advocacia;
  2. Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;
  3. Código Penal – Planalto; 
  4. Lei de Execução Penal – Planalto;
  5. Declaração Universal dos Direitos Humanos – Nações Unidas;
  6. Artigo 09 DUDH – Direitocom;

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