Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
18 de fevereiro de 2020

COMPARTILHE:

Inciso XXXVII – Princípio do juiz natural

"Não haverá juízo ou tribunal de exceção"

INCISO XXXVII – PRINCÍPIO DE JUIZ NATURAL

O inciso XXXVII do artigo 5º da Constituição Federal brasileira é um dos componentes do Princípio do Juiz Natural, que garante um julgamento justo aos cidadãos por órgãos independentes e imparciais. Este inciso impede a criação de novos juízos ou tribunais para julgar fatos ocorridos antes de sua criação. 

Parece complicado? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá esclarecer os detalhes sobre esse inciso que compõe nossos direitos fundamentais em mais um texto do projeto “Artigo Quinto”. Esse é um projeto que tem como objetivo simplificar o direito, de maneira a torná-lo mais acessível aos cidadãos e, assim, formar brasileiros mais conscientes sobre suas garantias, seus direitos e deveres. Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto e acesse nossos textos.

O QUE É O INCISO XXXVII?

O inciso XXXVII do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, decreta que:

Art 5º, XXXVI, CF – não haverá juízo ou tribunal de exceção;

 

O inciso XXXVII do artigo 5º da Constituição é um dos componentes do princípio do juiz natural, que garante um julgamento justo aos cidadãos por órgãos independentes e imparciais. Ele impede a criação de novos juízos ou tribunais para julgar fatos ocorridos antes de sua criação. Por isso, é uma regra relacionada à garantia do juiz natural o inciso LIII, segundo o qual “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.

Apesar de parecer distante do dia a dia, o inciso XXXVII é de extrema importância para que os processos jurídicos aconteçam de maneira imparcial e de acordo com a lei brasileira. 

Isso porque o inciso XXXVII está diretamente relacionado com o princípio do juiz natural, fundamento que determina que os juízes designados para julgar os processos devem ter competência preordenada para fazê-lo. Isso porque é nessa passagem da Constituição que a impossibilidade de haver juízos ou tribunais de exceção é definida. Mas, afinal, o que é um juízo ou tribunal de exceção?

Juízos ou tribunais de exceção são aqueles criados de forma excepcional, ou seja, fora da regra comum, em um momento posterior ao fato que será julgado, com o objetivo específico de fazer o tipo de julgamento para o qual foram instaurados. 

Imagine que, em determinado país, o ato de fumar cigarros em local proibido seja uma infração que é apurada e punida por agentes públicos de um município. Sabendo disso, João decide fumar em um local proibido, e esse fato é amplamente noticiado. Por causa da repercussão negativa, cria-se um tribunal especialmente para julgá-lo, e então ele é punido. Seria extremamente injusto, certo? Por isso o inciso XXXVII é tão importante, pois garante o que chamamos de segurança jurídica.

Portanto, a Constituição impede que se estabeleçam novos juízos ou tribunais com objetivo específico de julgar fatos ocorridos antes da sua criação, para que, assim, seja garantido o princípio do juiz natural. Logo, dizemos que os poderes de julgamento de juízes e tribunais devem estar pré-constituídos, na forma determinada pela Constituição e pela lei. 

Em outras palavras, a competência de um juiz ou tribunal deve estar previamente estabelecida pela legislação também. Dessa maneira, não restam dúvidas sobre os poderes daquele juiz ou tribunal.

Os juízos ou tribunais de exceção também podem ser chamados de ad hoc, uma expressão em latim que significa “para esta finalidade”. Em outras palavras, os juízos ou tribunais de exceção são aqueles criados para julgar uma situação específica.

Além disso, cabe esclarecer outro termo utilizado no inciso: competência. Essa é a expressão utilizada para indicar os poderes de atuação, delimitados em lei e na Constituição, de um juiz ou tribunal. Por exemplo, é da competência da Justiça do Trabalho julgar ações oriundas das relações de trabalho, pois os seus poderes de julgamento foram restritos a esse tipo de ações. Assim, garante-se que os casos julgados por esses tribunais específicos sejam realizados da maneira mais imparcial e competente possível.

HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL

O direito de que estamos tratando neste texto é tradicional em diversos países do mundo e já teve registros em diferentes legislações. 

Sua origem é atribuída à vedação da criação de tribunais de exceção à Magna Carta inglesa, de 1215, que, ao limitar os poderes do monarca – rei João Sem Terra –, determinava em seu Capítulo 39 que: “nenhum homem será detido ou preso, nem privado de seus bens, banido ou exilado ou, de algum modo, prejudicado, nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus pares ou segundo a lei da terra”. Nesse contexto, percebe-se que, na época, já se preocupava com a criação de uma legislação prévia para julgar fatos posteriores a ela. 

Além disso, o artigo 17 do título II da Lei Francesa de 24 de agosto de 1790 determinava que: “A ordem constitucional das jurisdições não pode ser perturbada, nem os jurisdicionados subtraídos de seus juízes naturais, por meio de qualquer comissão, nem mediante outras atribuições ou evocações, salvo nos casos determinados pela lei”. Dessa forma, nota-se que a lei francesa também se preocupou com o princípio do juiz natural, com referência expressa a esse instituto. 

A Constituição dos Estados Unidos também incorporou essa ideia em suas emendas V, VI e XIV, que definem a necessidade de um procedimento judicial justo e imparcial, com direito de defesa e juiz natural, embasado nas garantias legais. Assim, percebe-se que essas disposições influenciaram a legislação brasileira, como o próprio inciso XXXVII do artigo 5º da Constituição Federal. 

Após a Segunda Guerra Mundial, os tribunais de exceção ganharam destaque com os chamados Julgamentos de Nuremberg, em que os crimes cometidos pelos nazistas durante a guerra foram julgados por um tribunal especialmente criado para isso.

 Nesse contexto, o princípio do juiz natural foi ignorado em virtude das grandes atrocidades cometidas pelos nazistas. Esses julgamentos foram conduzidos pelo Tribunal Militar Internacional, órgão de exceção criado por Estados Unidos, União Soviética, Grã-Bretanha e França, especificamente para este fim. 

Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos traz, no seu artigo 10: “Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida”.

Mais recentemente, entre 2003 e 2006, a polêmica sobre os tribunais de exceção ressurgiu com a instituição do chamado Tribunal Especial Iraquiano para o julgamento de Saddam Hussein por violações aos direitos humanos durante seu governo.

No Brasil, quase todas as nossas Constituições (com exceção da Constituição de 1937) trouxeram algum tratamento sobre este direito fundamental, como podemos ver a seguir:

  • Constituição de 1824 (art. 179, inciso XVII): “A excepção das Causas que, por sua natureza pertencem a Juizos particulares, na conformidade das Leis, não haverá Foro privilegiado, nem Comissões especiais nas Causas civeis, ou crimes”;
  • Constituição de 1891 (art. 72, § 15): “ninguém será sentenciado, senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na fórma por ela regulada”;
  • Constituição de 1934 (art. 102, § 22): “Salvo as causas que, por sua natureza, pertençam a juízos especiais, não haverá fôro privilegiado, nem tribunais de exceção”;
  • Constituição de 1946 (art. 141, § 26): “Não haverá fôro privilegiado nem juízes e tribunais de exceção”;
  • Constituição de 1967 (art. 150, § 15) e EC nº 01/69 (art. 153, §15): “A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá fôro privilegiado nem tribunais de exceção”. 

Contudo, nos momentos ditatoriais do Brasil, esse direito fundamental foi descumprido por meio da criação de tribunais de exceção:

  • Estado Novo: em 1936, Getúlio Vargas criou um tribunal de exceção – o Tribunal de Segurança Nacional (TSN) – para julgar envolvidos no fracassado levante comunista de novembro de 1935. Com a implementação da ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937, o TSN deixou de se subordinar ao Superior Tribunal Militar (STM) e passou a desfrutar de um regramento especial e independente.
  • Ditadura militar: em 1964, foi criada a Comissão Geral de Investigação e as Comissões de Investigações Sumárias nos diferentes estados brasileiros para investigar, processar e punir os servidores públicos – e demais cidadãos – considerados subversivos. De acordo com Erinaldo Cavalcanti, “a criação da Comissão, os inquéritos abertos, as investigações desenvolvidas e as sentenças lavradas deixavam uma importante lição: os cidadãos não estavam livres da possibilidade de serem investigados por ela e, uma vez sendo investigados, não havia mecanismo para recorrer das sentenças nas instâncias judiciais”.

QUAL É A RELEVÂNCIA DESTE PRINCÍPIO E COMO ELE FUNCIONA NA PRÁTICA?

Podemos dizer que a importância desse direito fundamental é a garantia de um julgamento justo a partir de três pontos:

  • fonte: só a lei pode criar o juízo ou tribunal e fixar-lhe a competência, isto é, o ato de algum cidadão somente pode ser julgado por meio da criação democrática de uma lei;
  • período: o juízo ou tribunal e a sua competência devem ser estabelecidos por lei anterior ao ato que será julgado. De maneira análoga, se um cidadão cometer um ato que não era considerado crime, ele não poderá ser julgado por uma lei surgida em momento posterior à consumação de seu ato; e
  • competência: a lei, anterior ao fato, deve prever especificamente a competência do juízo que fará o julgamento.

Na prática, a divisão de atribuições começa na própria Constituição Federal, que, além de estabelecer as competências do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), divide o poder judiciário em diferentes órgãos, cada um com sua respectiva competência:

  • Justiça Federal (art. 106 a 110);
  • Justiça do Trabalho (art. 111 a 116);
  • Justiça Eleitoral (art. 118 a 121);
  • Justiça Militar (art. 122 a 124); e
  • Justiça Comum (art. 125 a 126).

A esses órgãos cabe também a obediência das legislações específicas chamadas de Leis de Organização Judiciária (LOJ). Além disso, cada uma dessas cinco divisões do poder judiciário é subdividida em uma série de instâncias para distribuição de competências, e a Constituição permitiu que os tribunais elaborassem seus próprios regimentos internos para a organização de procedimentos específicos de funcionamento. 

Contudo, atualmente, há ao menos dois temas polêmicos relacionados ao inciso XXXVII do artigo 5º: a criação de varas especializadas e os julgamentos em foro privilegiado.

A criação de varas especializadas (por exemplo, em lavagem de dinheiro e organizações criminosas ou em direito de família) não pode ter como consequência o direcionamento intencional de um fato prévio para a análise de um juízo específico, configurando um juízo de exceção e violando a imparcialidade que se espera do poder judiciário. Assim, tais varas devem observar as leis e os critérios preestabelecidos na Constituição, garantindo a imparcialidade e a independência.

O foro privilegiado (também chamado de foro por prerrogativa de função) significa que determinados membros dos poderes legislativo, executivo e judiciário serão julgados por um órgão específico em caso de prática de crime no exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas. Dessa forma, há discussão se o foro privilegiado seria uma forma de instituição de um tribunal de exceção, criado para julgamentos especiais de pessoas específicas. 

Entretanto, como está previsto na própria Constituição, não há como alegar sua inconstitucionalidade, até mesmo porque as hipóteses de competência dos órgãos responsáveis pelo julgamento nesses casos foram previstas antes da prática dos atos que lhes compete julgar.

CONCLUSÃO

A criação de tribunais e juízos de exceção é um ato injusto e antidemocrático, visto que, como são estabelecidos com uma finalidade específica, tendem a tomar decisões parciais, direcionadas à punição dos praticantes dos atos analisados por eles, e por isso a Constituição brasileira optou por expressamente proibi-los. 


Esse conteúdo foi publicado originalmente em fevereiro/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.


Autores:

Bianca Lopes Rodrigues

Mariana Mativi

Matheus Silveira

Philippe Santos Cirilo Macedo


Fontes:

Instituto Mattos Filho 

Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;

O que é um tribunal de exceção? – O Processo Penal;

Constituição brasileira de 1824 – Planalto;

Constituição brasileira de 1891- Planalto;

Constituição brasileira de 1934 – Planalto;

Constituição brasileira de 1946 – Planalto;

Constituição brasileira de 1967 – Planalto.

Magna carta de 1215 – Senado

Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. v. 1. P. 221 e 442.

Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. v. 1. P. 157

FRAGA, Vitor Galvão . Devido Processo Legal: história e conteúdo. REVISTA JURÍDICA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE PERNAMBUCO , v. 11, p. 403-429, 2018. P.. 406 e 407

A Politize! precisa de você. Sua doação será convertida em ações de impacto social positivo para fortalecer a nossa democracia. Seja parte da solução!

Pular para o conteúdo