Cooperação norte sul

Cooperação Norte-Sul como parte da Cooperação Internacional

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Ex-presidentes Dilma Rousseff e Barack Obama em reunião (Foto: Amanda Lucidon | Official White House Photo)
Ex-presidentes Dilma Rousseff e Barack Obama em reunião (Foto: Amanda Lucidon | Official White House Photo)

Você já ouviu falar em “dar a vara de pescar, mas não dar o peixe?” Em outras palavras, dar o peixe não ensina a pessoa a conseguir outros peixes no futuro, ou seja, aprender a se sustentar sozinha. No âmbito internacional, os Estados mais desenvolvidos elaboraram ao longo dos últimos 60 anos uma forma de ajudar os países menos desenvolvidos. A Cooperação Norte-Sul para o Desenvolvimento, como ficou conhecida posteriormente, deu o pontapé inicial para a chamada Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID).

Ao longo dos anos, a CID sofreu mudanças importantes, porque sua ampla esfera de ações, principalmente promovidas pelos países do Norte, foram contestadas a todo instante. Assim, apenas doar ou emprestar a países do Sul Global se mostrou ineficiente para a promoção desenvolvimento. Vamos descobrir um pouco mais sobre a cooperação Norte-Sul?

O que é a cooperação norte-sul?

Quando se fala em uma cooperação pautada pelo Norte, o principal aspecto da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento a ser pensado é o financiamento de projetos e programas de desenvolvimento no Sul Global. Outros aspectos giram em torno disso: controle de qualidade dos projetos, prestação de contas, estabelecimento de prioridades de linhas de atuação e, dependendo do país doador ou organismo internacional envolvido, a imposição de condicionalidades, como veremos a seguir.

O início da cooperação norte-sul

O início da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, e o seu estabelecimento como um campo de atuação internacional específico deu-se primeiramente com a Cooperação Norte-Sul. Sendo assim, a CID começou com projetos assistencialistas, traduzidos na chamada ajuda oficial ao desenvolvimento (AOD). Os países do então “Primeiro Mundo” capitalista passaram a ser conhecidos como doadores tradicionais, enquanto os países do “Terceiro Mundo” foram identificados como beneficiários da cooperação internacional.

O primeiro grande programa de ajuda foi financiado pelos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial: o famoso Plano Marshall. Esse Plano consistia num programa de reconstrução da Europa Ocidental e contou com um total de US$ 13 bilhões investidos pelos Estados Unidos entre 1947 e meados da década de 1950. Ao configurar o primeiro programa de ajuda bilateral, os Estados Unidos exerceram importante papel no processo de consolidação da CID como um campo de atuação internacional.

Mais tarde, em 1971, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês), lançaria a metodologia da matriz do quadro lógico. Muito empregada na elaboração, execução e avaliação de projetos de desenvolvimento, a metodologia foi inclusive adotada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Aos poucos, ao comandar os primeiros programas nacionais de ajuda internacional, os Estados Unidos passaram a utilizar o termo ajuda oficial ao desenvolvimento, que mais tarde foi incorporado pela OCDE para classificar a ajuda prestada pelo Comitê de Assistência ao Desenvolvimento (CAD).

Além da grande influência estadunidense, o multilateralismo e o surgimento de diversas Organizações Internacionais foram de grande importância para o processo de institucionalização da CID. Em 1945 surge uma grande instituição internacional criada para promover e garantir a paz internacional: a Organização das Nações Unidas. A ONU, com o passar das décadas, aderiu a temas de desenvolvimento em sua agenda, os quais também foram incluídos nos planos das outras agências que foram emergindo. Entre elas destacam-se:

Além disso, em 1948, para gerir os recursos do Plano Marshall, os países da Europa criaram a Organização de Cooperação Econômica Europeia (OECE). Essa se tornaria, mais tarde, a Organização para o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Também foi crescente o número de países do Norte que passaram a criar agências de cooperação nacionais. Um exemplo é a Agência Canadense de Desenvolvimento Internacional (CIDA), criada em 1968, logo após a fundação da Agência Americana (USAID), em 1961.

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A questão migratória é uma das presentes na agenda de negociações entre países do Sul e do Norte.

Evolução da cooperação norte-sul: temas da agenda

No Ocidente, a consolidação da cooperação nas décadas de 50 e 60 esteve inserida na política do “Primeiro Mundo” como forma de combate ao comunismo do bloco soviético. A ideia era conter a expansão do comunismo no Terceiro Mundo, principalmente no pós Revolução Cubana.

Além disso, novas demandas surgiram com os países recém descolonizados e desenvolveu-se uma ideia de prestação de contas histórica para com as nações ex-colonizadas por parte dos países Europeus. Nesse sentido, os Estados Unidos pressionaram seus parceiros desenvolvidos da Europa a dividirem o peso político e financeiro da ajuda – que até então estava sobre os ombros dos EUA – e a criarem seus programas de cooperação na África e na Ásia.

O início da agenda da CID focou em programas de ajuda alimentar, reconstrução de infraestruturas e desenvolvimento agrícola. Além da reconstrução da Europa, passou-se a financiar o desenvolvimento rural e comunitário, com o compartilhamento de técnicas agrícolas primeiramente na Europa e Estados Unidos e depois nos países em desenvolvimento com o intuito de combater a fome no mundo. Nesse sentido, a década de 50 marcou a expansão da Revolução Verde, baseada na utilização de sementes transgênicas, produtos industriais como fertilizantes e agrotóxicos e mecanização da produção.

Em seguida, a agenda das décadas de 70 e 80 foi marcada pelas crises econômicas e ambientais que assolaram o mundo todo e passaram a mostrar novas necessidades de mudança. Em termos econômicos, os países do norte e o modelo capitalista de desenvolvimento deparavam-se com mais uma crise, relacionada ao modelo de acumulação associado ao Estado de bem estar social. O modelo de acumulação vigente na época era de acumulação de matérias-primas, chamado Fordismo, com produção em massa utilizando linhas de montagem. Foi sendo substituído pelo regime de acumulação flexível, ou toyotismo, cujos principais aspectos eram a não utilização de estoques e a dispersão da produção para gerar maior produtividade e eficiência. Tais crises impactaram os países do Sul Global, gerando, por exemplo, diversas crises de endividamento externo. A década de 80, por exemplo, foi considerada como perdida para muitos países em desenvolvimento da América Latina, incluindo o Brasil, que passou pela crise inflacionária que só foi resolvida com o Plano Real no final da década de 1990.

As décadas de 1970 e 1980 também foram marcadas pelo fortalecimento da participação de minorias no campo político internacional. Movimentos feministas, LGBT, antirracistas, de juventude, ambientalistas, entre outros, passaram a ser ouvidos. A partir disso, organizações da sociedade civil – como ONGs, institutos, fundações e associações – passaram a exigir participação social nas políticas públicas, dentre elas nos programas de cooperação internacional.

A percepção sobre a necessidade de preservação do meio ambiente também começou a ganhar força e espaço nessa época. Alguns eventos levantaram a discussão, como a chamada “Névoa Matadora”, em 1952, que resultou em mais de quatro mil mortes devido à poluição do ar. Outro caso foi o da Baía de Minamata, em 1956, no Japão, que por contaminação da água registrou 107 mortes oficiais e quase três mil casos em verificações.

Mais tarde, em 1972 com a publicação do Relatório do Clube de Roma sobre Os limites do Crescimento, o clima e o meio ambiente ganharam mais atenção internacional. Esse relatório alertava sobre problemas cruciais de energia, poluição, saneamento, saúde, ambiente, tecnologia e crescimento populacional. Com essas ideias ecoando no mundo, é realizada no mesmo ano a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, que foi um marco para o ambientalismo nas relações internacionais.

A imposição de condições para a cooperação norte-sul

A crise econômica das décadas de 70 e 80 resultou em corte de gastos e relativa redução da cooperação. Alguns fatores influenciaram que os países do Norte, bem como organizações que os representam – tal qual o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial –, passassem a exigir várias reformas estruturais como condição para prover a CID. Exemplos desses fatores são:

  • as crises de endividamento dos países do sul;
  • questionamentos a respeito da capacidade de desenvolvimento autônomo desses países; e
  • o fortalecimento das ideias neoliberais na esfera da economia.

Tais reformas mexiam com a estrutura econômica dos países –, as quais foram propostas pelas grandes instituições financeiras internacionais. Essas reformas consistiam em medidas como a redução de gastos públicos, reforma tributária, abertura comercial, privatizações de empresas estatais, dentre outras propostas alinhadas pelo chamado Consenso de Whasington. Essas reformas passaram a ser chamadas de condicionalidades para a ajuda, principalmente à concessão de empréstimos, mas que também foram impostas como condição para se prover a AOD.

43ª Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (Foto: Fernanda LeMarie | Cancillería del Ecuador)
43ª Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (Foto: Fernanda LeMarie | Cancillería del Ecuador)

Mudanças de rumo: a inserção de novos atores e novos transformações na CID

Com todas as mudanças das décadas passadas, os anos 1990 foram importantes para a consolidação de processos e de novos atores no sistema da CID. Além de ajuda alimentar e infraestrutura, os investimentos passaram a incluir outras áreas. Ainda ganharam espaço projetos de diálogos setoriais, favorecendo a troca de experiências de políticas em áreas específicas.

Ademais, desenvolvimento econômico passou a significar crescimento associado à justiça social. Nesse sentido, medir o crescimento apenas pelo Produto Interno Bruto (PIB) anual se tornou insuficiente. Como proposta alternativa, surge o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que passou a ser utilizado a partir de 1993 pelo PNUD em seus Relatórios de Desenvolvimento Humano anuais. Tal índice mede o desenvolvimento a partir de três aspectos:

  • expectativa de vida ao nascer;
  • escolaridade da população; e
  • PIB per capita.

A utilização do IDH para medir o desenvolvimento inseriu nos debates uma noção mais ampla sobre o que seria desenvolvimento. Assim, foram incluídas questões não tradicionais que contaminaram positivamente agendas tradicionais. A justiça e a participação social tornaram-se aspectos cada vez mais presentes na agenda, incluindo fatores de proteção à grupos vulneráveis, combate ao racismo e à desigualdade de gênero.

No entanto, na primeira década do novo milênio houve a retomada de assuntos de segurança com extrema ênfase na agenda internacional, graças aos atentados terroristas de 11 de Setembro nos Estados Unidos. A luta contra o terrorismo, questões de migrações, tráfico de pessoas, armas e drogas, passaram não só a serem debatidas nos âmbitos tradicionais de alto nível e militares, mas foram também incorporados na agenda de cooperação.

A esperança do multilateralismo: eficácia da CID e objetivos de desenvolvimento comum

Outra discussão sobre a CID corria desde a década de 1960: doações, empréstimos, e, consequentemente, projetos e programas realizados em países em desenvolvimento estariam gerando de fato algum impacto na erradicação da pobreza? Em 1962, um dos relatórios do CAD da OCDE demonstrava essa preocupação, mas foi somente nos anos 2000, que voltou a se falar em eficácia e efetividade da CID.

A questão principal debatida foi se as taxas de crescimento econômico haviam aumentado nos países que haviam recebido assistência. Na África, por exemplo, apesar de U$1,8 trilhão destinados como dinheiro de ajuda desde 1950, a pobreza no continente continuava a se expandir. Assim, após reunirem-se países desenvolvidos e em desenvolvimento em um Fórum de Alto Nível, emitiu-se a Declaração de Paris de 2005, que estabeleceu princípios, indicadores e metas para garantir o funcionamento da CID. Essas metas e indicadores centraram-se nas questões de apropriação do desenvolvimento, alinhamento das ações com as prioridades nacionais de cada país, reforço das capacidades das instituições e dos indivíduos, responsabilidade compartilhada (países doadores e países receptores da ajuda) e gestão orientada para resultados.

Além disso, as propostas da Declaração de Paris e em seguida a de Acra (2008), enfatizaram que a CID deveria dar prioridade à harmonização das estratégias e práticas para o desenvolvimento. Nesse sentido, o novo milênio trouxe importantes ferramentas que serviram para articular a concentração de esforços. Nessa trilha, as Nações Unidas articularam os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) para os anos de 2000 a 2015, assim como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a serem realizados entre 2015 e 2030.

A Declaração do Milênio, que estabeleceu os ODM no ano 2000, foi assinada pelos 189 Estados-membros das Nações Unidas. O documento estabeleceu oito grande objetivos de desenvolvimento, que todos os países deveriam seguir, para que até 2015 se reduzisse pela metade a fome e a pobreza extrema no mundo. Para isso, seria essencial a participação social e as parcerias estabelecidas entre os governos, com organizações da sociedade civil e o setor privado.

15 anos depois, a Agenda 2030 estabeleceu os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, incorporando a ideia de que os problemas globais envolvem várias áreas de forma integrada. Problemas de desigualdade e vulnerabilidade social podem estar ligados à saúde, à água e questões sanitárias, por exemplo, e as ações para resolver esses problemas devem unir esforços e para encontrar soluções duradouras e sustentáveis. A construção dos ODS se deu com amplo esforço de inclusão da participação da sociedade civil organizada, com extensos processos de consulta.

Em resumo, após passar por diversas revisões, quanto à sua eficácia e quanto à aplicação de condicionalidades, a Cooperação Norte-Sul é ainda um mecanismo em constante mudança. Novos contextos foram exigindo novas medidas, e assim meio ambiente, gênero, segurança, migrações, entre outros, passaram a ganhar devida importância na atuação da CID. Do mesmo modo, novas abordagens para erradicar a pobreza foram sendo inseridas, como o foco na capacitação dos indivíduos para gerar processos de desenvolvimento dentro dos próprios países.

No entanto, muito do que se discute sobre dependência do Sul em relação ao Norte ainda coloca a Cooperação Norte-Sul em cheque. Seria a Ajuda Oficial ao Desenvolvimento, com os países desenvolvidos destinando 0,7% de seu PIB anual, como estabelece o ODS 17.2, efetiva? Mesmo com boas ferramentas de gestão e cumprindo com os princípios da boa governança? Qual seria a melhor forma de gerar desenvolvimento internacional?

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REFERÊNCIAS DO TEXTO:
GIFE – Participação da sociedade civil é fundamental para atingir nível de desenvolvimento estabelecido pela ONU

ICTSD – Os antecedentes da reforma do Fundo Monetário Internacional

IPEA – Repensando a cooperação internacional para o desenvolvimento

ONU – Novo relatório da ONU avalia implementação mundial dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)

Oxford – International Cooperation Theory and International Institutions

RETS – O marco de desenvolvimento pós-2015 exige aquilo que faltou nos ODM: Participação e supervisão cidadã

Rosana Tomazini – Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e Cooperação Sul-Sul: uma análise comparativa de seus princípios e desafios de gestão

David E. Bell – The quality of aid (A qualidade da ajuda) – Artigo em inglês

The Guardian – IMF’s four steps to damnation

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Conteúdo escrito por:
Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina. Apaixonado pelos temas de desenvolvimento internacional, direitos humanos e migrações.

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18 mar. 2024

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